Sudão e Gaza: ecos do terror eurocêntrico

O mundo desperta para o genocídio no país africano. O padrão é o mesmo da Palestina: fragmentar, explorar, dominar. O rastro do dinheiro também: Emirados Árabes financiam o massacram civis, com armas dos EUA – que cortam ajuda e depois lucram com os escombros

Crédito: Jérôme Tubiana/Médicos Sem Fronteiras
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Por Rima Awada Zahra, na Le Monde Diplomatique Brasil

As tragédias do nosso mundo não são separadas. Gaza, aqui, é chamada de “conflito”; o Sudão, ali, é reduzido a uma “guerra civil” que mal merece ser mencionada. Mas, se seguirmos o rastro do dinheiro, das armas e da propaganda, encontraremos as mesmas marcas ensanguentadas em ambos os crimes.

Os Emirados Árabes Unidos financiam as Forças de Apoio Rápido que massacram civis sudaneses, enquanto mantêm voos para Tel Aviv durante todo o genocídio. A Grã-Bretanha vende armas que acabam nas mãos da RSF, ao mesmo tempo em que abastece a campanha de extermínio de Israel. E os Estados Unidos, que declaram a crise do Sudão um genocídio, enviam mais 14,3 bilhões de dólares em ajuda militar a Israel – justamente no momento em que este conduz o seu próprio ataque genocida.

Em Gaza, pelo menos 63 mil palestinos foram assassinados e 1,9 milhão foram forçados a deixar suas casas. No Sudão, centenas de milhares de pessoas morreram, milhões estão deslocados e a insegurança alimentar já está em níveis de emergência ou fome extrema.

Em ambos os lugares, pais e mães veem os corpos de seus filhos se consumirem pela fome, enquanto aqueles que dizem combater a miséria continuam armando seus assassinos. A Dra. Tanya Haj-Hassan, que atuou como voluntária em Gaza e no Sudão, afirmou em entrevista ao Democracy Now: “As atrocidades na Palestina e no Sudão relacionadas à desnutrição e à fome são consequência de estruturas subjacentes que permitem que essas coisas aconteçam.”

As estruturas a que ela se refere têm nomes próprios: Charles George Gordon, Herbert Kitchener, Arthur James Balfour. O mesmo Império Britânico que dividiu o Sudão e a Palestina, que massacrou 12 mil sudaneses em Omdurman com metralhadoras contra lanças, e que prometeu a Palestina aos colonos sionistas enquanto silenciava a população indígena da terra.

Em 1898, Kitchener observou pelos binóculos os corpos sudaneses empilhados, comentou que haviam recebido uma “boa limpeza” e então se retirou para o dia. Essa brutalidade banal – essa convicção de que certas vidas não contam como perda – não morreu com o Império Britânico. Ela se transformou, espalhando-se nas estruturas de poder que hoje matam de fome Gaza e armam os senhores da guerra do Sudão.

Tanto a Grã-Bretanha quanto seu império sucessor, os Estados Unidos, mantiveram deliberadamente suas colônias em estado de dependência. No Sudão, negaram a formação de um Estado centralizado forte, limitaram a economia à produção agrícola marginal subordinada aos interesses britânicos e aplicaram táticas de divisão e dominação, sustentadas por doutrinas raciais. Na Palestina, entregaram a terra aos colonos europeus sob o pretexto de “autodeterminação” e, nos 77 anos seguintes, financiaram o regime de apartheid de Israel. O padrão é o mesmo: fragmentar, explorar, dominar – e, por fim, deixar que as populações se destruam enquanto se lucra com os escombros.

E onde está o mundo? O apelo da ONU para o Sudão foi financiado em apenas 12%. A USAID sofreu cortes drásticos, enquanto a ajuda militar a Israel segue ininterrupta. A Europa reduz a assistência humanitária ao Sudão, mas continua vendendo armas que acabam nas mãos da RSF. Os mesmos governos que vetaram todas as resoluções de cessar-fogo da ONU para Gaza ignoram completamente o Sudão, a não ser quando há ouro a extrair ou rotas comerciais a proteger.

Foi isso que a Dra. Tanya Haj-Hassan testemunhou ao atravessar os campos agrícolas do Sudão para tratar crianças desnutridas: “Você pensa: como, neste mundo moderno?”. Ela recordou ter visto a fome na Etiópia quando era criança, acreditando que fosse causada pelo clima, um ato de Deus. “E então você cresce, amadurece e percebe que essas coisas são causadas pelo homem.”

Causadas pelo homem, sim. Mas por quais homens? Por aqueles mesmos arquitetos imperiais que decidiram que algumas populações merecem um Estado, enquanto outras merecem passar fome. Pelos fabricantes de armas que lucram com ambas as máquinas de morte. Pelas potências ocidentais que instalam ditadores, armam milícias e depois lavam as mãos quando os corpos se acumulam. Pelos Emirados Árabes Unidos, que disseminam propaganda divisória em todo o mundo muçulmano para conter a luta anti-imperialista, ao mesmo tempo em que colaboram com Israel para desmantelar qualquer forma de resistência à ocupação.

Alguns dirão que Gaza e o Sudão são diferentes – um seria um caso de colonialismo de povoamento; o outro, uma guerra civil entre milícias. Mas, se deixarmos de lado os rótulos, veremos os mesmos métodos de violência: potências externas armando representantes locais, usando a fome como arma, atacando civis de forma sistemática, bloqueando a ajuda humanitária e, depois, culpando as próprias vítimas por sua tragédia. É a mesma “comunidade internacional” que poderia pôr fim a ambos os “conflitos” amanhã, se quisesse – mas que lucra demais com a matança para fazê-lo.

Não podemos permitir que a visibilidade de Gaza ofusque a invisibilidade do Sudão. O mesmo fantasma assombra ambos. O legado de extração e dominação do Império Britânico sobrevive em cada comboio de ajuda bloqueado, em cada carregamento de armas, em cada cessar-fogo violado por aqueles que jamais tiveram a intenção de cumpri-lo.

Não podemos escolher quais demônios nomear. Os embargos de armas devem atingir não apenas Israel, mas também todos os governos que sustentam os senhores da guerra do Sudão. Devemos exigir sanções até que haja a retirada completa das forças de ocupação na Palestina e o julgamento dos criminosos de guerra do Sudão em Haia.

Mais do que isso, precisamos rejeitar a mentira de que se trata de crises isoladas, que pedem lutas e movimentos separados. Cada piquete que bloqueia o envio de armas a Israel deve também bloquear o fluxo de armas para a RSF. Cada sindicato que entra em greve pela Palestina deve fazê-lo também pelo Sudão. Cada apelo por responsabilização em Gaza deve incluir a responsabilização por Darfur. A solidariedade não pode ser seletiva, porque o sistema que mata ambas as populações tampouco é seletivo em quem devora.

Infelizmente, a revolta é abundante; a solidariedade, porém, é infinita. As conexões entre essas lutas não são exercícios teóricos: são fatos materiais escritos em remessas de armas, nas transações financeiras e nos despachos diplomáticos.

Enquanto não desmantelar por completo esse sistema, enquanto não rompermos as cadeias de abastecimento da morte que conectam Tel Aviv a Cartum, Londres e Washington, o padrão continuará se repetindo: novas populações, os mesmos fantasmas, os mesmos túmulos.

Rima awada Zahra é libanesa brasileira, psicóloga, escritora, e coordenadora da pós-graduação do curso de Psicologia e Migração da PUC MG. Organizou e traduziu o livro Sumud em tempos de genocídio da psiquiatra palestina Drª Samah Jabr e traduziu os Diários de Gaza, ambos pela editora Tabla.

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