Hospital do servidor de SP: história do desmonte
Promotora denuncia crise no instituto que gere rede de 17 hospitais que atendem 1 milhão de paulistas. Uma de suas unidades é referência de alta complexidade na capital. Mas não há recomposição de equipe e repasses do governo são exíguos – em 2024, foram de R$ 10
Publicado 19/11/2025 às 10:58 - Atualizado 19/11/2025 às 11:01

São Paulo: de um lado, isenções bilionárias e um megaescândalo de corrupção na secretaria da Fazenda, a partir da descoberta do pagamento de propinas para auditores. De outro, precarização sistemática de tudo que seja público, agenda de desestatização e redução de patrimônios e instituições do Estado.
Eis o monótono noticiário da administração pública do estado mais rico da federação nos últimos anos, em especial nos governos de João Doria (PSDB) e agora Tarcísio de Freitas (Republicanos). Como Outra Saúde vem retratando, o direito à saúde é cada vez mais castigado no estado. Perdem os cidadãos e os trabalhadores do setor.
Um dos focos de agravamento desta crise que parece projeto é o IAMSPE (Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual de São Paulo) e sua rede de hospitais credenciados. Autarquia do governo estadual, gere o Hospital do Servidor Público Estadual (HSPE), referência de alta complexidade localizado no eixo hospitalar da zona sul da cidade.
“Em 2024 foram 10 reais de contribuição do governo estadual, sem reposição de pessoal. O IAMSPE vem encerrando os exercícios financeiros com déficits e acumulam-se reclamações dos conveniados que não conseguem agendar cirurgias e consultas. A consequência do desfinanciamento da saúde, e do IAMSPE particularmente, é resultado de uma política que dá as costas a um direito fundamental”, contou Dora Martin Strilicherk, promotora de justiça que acompanha este e outros casos vinculados à Saúde no estado.
No ano passado, Strilicherk já havia pedido esclarecimentos ao governo estadual sobre a falta de repasses financeiros. A rede do IAMSPE administra 17 hospitais que atendem mais de 1 milhão de servidores e beneficiados pelo estado, além de estabelecer convênios com clínicas e laboratórios. Seu financiamento se dá quase todo pelo bolso dos servidores. Por lei, cabe ao estado complementar seu custeio, inclusive com recursos do tesouro. Mas Tarcísio descumpre e não presta quaisquer esclarecimentos.
“A rede credenciada do interior, para ser eficiente, precisa contratar bons prestadores, mas como o governo do estado reduz o repasse ano após ano, vários credenciados rompem o contrato”, resume a promotora.
O resultado é atraso, espera e sofrimento. O desfinanciamento do HSPE resulta em maior demora para realização de procedimentos, o que significa ampliação da fila de cirurgias do SUS e, consequentemente, mais adoecimento.
Como retratado pelo Outra Saúde em outras reportagens (1, 2), a justificativa financeira não se sustenta. O estado inclusive bate recordes orçamentários. Mas, tal como em outras histórias de desmonte e desfinanciamento de estruturas públicas fundamentais ao SUS, trata-se de fidelidade dos herdeiros políticos do bolsonarismo aos dogmas neoliberais na administração pública.
“O HSPE tem capacidade física para prestar mais atendimentos, mas a política de não complementação dos recursos necessários impede uma prestação de serviço mais ágil, com fila de espera para cirurgias complexas hoje na casa de 8.000 pessoas e sem renovação de equipamentos e modernização necessária a todo servidor de saúde”, denuncia a promotora do Ministério Público.
Para Dora Strilicherk, não há nenhuma resistência real na Assembleia Legislativa, onde o assunto recebeu pouca atenção nos últimos anos, como se pode ver pelos seus próprios registros oficiais.
“Por estar tratando com carteira predominantemente de idosos e de baixa renda, sem poder político ou pressão, o governo do estado ignora a necessidade de complementar as receitas e permitir investimentos mínimos necessários ao atendimento”.
Enquanto é pintado na mídia como liderança nacional, Tarcísio toca em frente seu desmonte programado do Estado. Como mostra a peça orçamentaria de 2026, estão previstos R$ 85 bilhões em isenções. E mais redução de financiamento da rede de hospitais do IAMSPE. “Como permitem os senhores deputados que o repasse do tesouro ao IAMSPE venha sendo reduzido de 28% a 10% entre 2020 e 2026?”, indigna-se Strilicherk.
Na entrevista a seguir, a promotora de justiça explica a história deste desmonte. Confira.
Em 2024 você publicou nota com duras cobranças sobre a ausência do governo estadual no financiamento do IAMSPE. Houve resposta? Qual a postura do governo Tarcísio e da secretaria estadual de Saúde neste tema?
Em 2024, o governo limitou-se a liberar verba contingenciada, mas continuou ignorando a necessidade de investimento e reposição de pessoal no IAMSPE, que conta com uma carteira de 1,1 milhão de conveniados, funcionários públicos e agregados, sendo que 49,07% são idosos.
O IAMSPE tem 3.807 funcionários públicos ativos e 3.693 terceirizados que atendem numa rede de 162 municípios, com clínicas e hospitais contratados para prestar o atendimento onde não há hospital próprio.
Qual a dimensão do trabalho do Hospital do Servidor Público e sua rede em todo o sistema de saúde do estado?
O HSPE (Hospital do Servidor público estadual), na avenida Ibirapuera, é patrimônio do funcionalismo. Atende alta complexidade, conta com quadro médico reconhecido e tem 701 residentes (residência concorrida e de alto nível).
No ano de 2024, HSPE atendeu 460 mil pessoas em consultas, fez 300 mil atendimentos no Pronto Socorro (PS), 17 mil cirurgias, 4 mil exames. A rede credenciada por todo o estado atendeu 353 mil pessoas no PS, fez 63 mil internações, 2,2 milhões de consultas ambulatoriais e 4,2 milhões de exames.
O que desfinanciamento do instituto significa no estado de São Paulo?
A rede credenciada do interior, para ser eficiente, precisa contratar bons prestadores, mas como o governo do estado reduz o repasse ano após ano, vários credenciados rompem o contrato.
Por sua vez, o HSPE tem capacidade física para prestar mais atendimentos, mas a política de não complementação dos recursos necessários impede uma prestação de serviço mais ágil, com fila de espera para cirurgias complexas hoje na casa de 8 mil pessoas e sem renovação de equipamentos e modernização necessária a todo servidor de saúde.
Mais: mesmo com a contratação de terceirizados para prestação de serviço no HSPE, há 1.000 cargos vagos de médicos, e quase o mesmo número para enfermeiros e técnicos de enfermagem. Ora, se o governo não abre concurso para o IAMSPE, não há como reduzir filas de espera para atendimento.
Em meio a isso, um governo envolto em denúncias de corrupção sobre propina na concessão de isenções fiscais e tributárias. Como responder às invariáveis alegações de que o estado não tem dinheiro suficiente para cumprir suas funções essenciais?
O IAMSPE firmou contrato com os servidores e cabe ao tesouro efetuar os repasses necessários à prestação de serviços de direito fundamental. Todavia, por estar tratando com carteira predominantemente de idosos e de baixa renda, sem poder político ou pressão, o governo do estado ignora a necessidade de complementar as receitas e permitir investimentos mínimos necessários ao atendimento dos conveniados/consumidores.
Detalhe: O IAMSPE está no organograma da Secretaria de Gestão e não da Saúde, como se pudesse ser olhado como um mero negócio. Não é negócio: filas de espera resultam em agravamento das doenças e mortes. Fruto da insensibilidade que não olha os servidores públicos de São Paulo com carinho e respeito, e efetua propostas orçamentárias alheias aos déficits orçamentários, às filas de espera e à vida dos conveniados.
Não há discricionariedade administrativa quando uma das partes não cumpre um contrato, mas sim abuso, opção administrativa desarrazoada e ineficiente, ensejando a redução de atendimento dos pacientes e redução contínua dos recursos humanos do HSPE.
Houve alguma resposta positiva nos últimos dias para cobrir os déficits acumulados?
Não há investimento. Em 2024 foram 10 reais de contribuição do governo, sem reposição de pessoal. O IAMSPE vem encerrando os exercícios financeiros com déficits e acumulam-se reclamações à Promotoria de Justiça dos conveniados que não conseguem agendar cirurgias e consultas. A consequência do desfinanciamento da saúde e do IAMSPE particularmente é resultado de uma política que dá as costas a um direito fundamental.
E qual a atitude na Assembleia Legislativa?
Inércia. Defender o IAMSPE não se exaure na criação de várias comissões na Alesp que se dizem defensoras dos servidores públicos, mas sim na fiscalização do orçamento para que as dotações orçamentárias não sejam mera peça de ficção, dissociada das propostas orçamentárias da própria autarquia. Afinal, como permitem os senhores deputados que o repasse do tesouro ao IAMSPE venha sendo reduzido de 28% a 10% entre 2020 e a Lei Orçamentário Anual de 2026?
A Promotoria de Justiça encaminhou os questionamentos à Secretaria da Fazenda e a vários deputados, sem retorno, e aguarda, em nome da coletividade de usuários, que os senhores deputados cumpram a atribuição fiscalizadora que lhes cabe quanto aos repasses orçamentários para garantia do direito à saúde e cumprimento do contrato do estado com os servidores.
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