Lei do Streaming: e os riscos ao cinema independente
Aprovado na Câmara, projeto obriga, enfim, plataformas a contribuir com o audiovisual. Mas desvirtua o modelo que promoveu inovações e pluralidade no cinema brasileiro. Corporações podem escolher onde aplicar boa parte dos recursos – inclusive, nelas próprias
Publicado 10/11/2025 às 19:22 - Atualizado 10/11/2025 às 20:34

No momento em que o Congresso Nacional aprovará um Projeto de Lei (PL 8.889/2017) que pode ter a força de modificar a indústria audiovisual nacional, cabe refletir o que nos trouxe até aqui e o que estamos votando.
O audiovisual é uma indústria de números impressionantes. De acordo com o Anuário Estatístico do Audiovisual Brasileiro 2024, foram R$ 32,7 bilhões em valor adicionado à economia brasileira. Qualquer projeto de lei que pretenda modificar ou criar mecanismos de intervenção nesse mercado possui uma responsabilidade enorme.
O Brasil tem um sistema de investimento público no audiovisual sólido e estruturado, apesar de operacionalmente muito falho, com uma legislação robusta e complexa, fruto de décadas de discussão e aprimoramento da política pública. Seu mecanismo mais moderno e abrangente é o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).
Este é o principal mecanismo público de fomento ao cinema e ao audiovisual no Brasil, destinado a financiar a produção, distribuição e exibição de obras nacionais. É alimentado pela Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional), que recolhe recursos da própria cadeia audiovisual para reinvesti-los no desenvolvimento do setor. A Condecine, que financia o FSA, é uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre atividades ligadas à exploração comercial de obras audiovisuais no Brasil.
A modernidade tributária do FSA consiste em não criar uma carga tributária externa ao setor, recolhendo apenas uma fração da receita das próprias atividades econômicas do audiovisual (TV, telecomunicações, publicidade, streaming etc.) e realocando esses recursos dentro do próprio setor. Parte da receita gerada pelo setor, portanto, retorna ao próprio setor, fortalecendo a produção independente e a diversidade de conteúdos. Sem cadeia operante, não há CIDE; e sem CIDE, não há fomento.
Essa relação de interdependência circular entre o mercado e a política pública é justamente o que torna o modelo brasileiro único: ele não cria impostos novos, mas realimenta o ecossistema com parte da riqueza que ele mesmo gera. Os recursos captados pela Condecine são aplicados em editais públicos, linhas de crédito e investimentos diretos, com o objetivo de equilibrar o mercado, fortalecer produtoras independentes e estimular a produção nacional. Desde o início do recolhimento, uma generosa parcela é contingenciada pela Fazenda e vai para os cofres públicos.
Atualmente, existem três modalidades principais: Condecine Título, Condecine Remessa e Condecine Teles — esta última sendo a principal fonte de recursos do FSA. Até agora, o único segmento não regulado era o vídeo sob demanda (VoD). Portanto, é natural e necessário que essa contribuição exista — por razões de equilíbrio de forças, interesse público, política cultural e industrial, soberania, mercado e isonomia entre os players.
O PL 8.889/2017 propõe a criação da Condecine-Streaming, justamente para integrar o segmento de streaming ao ecossistema regulatório. É neste final de terceiro ano do presidente Lula que, finalmente, um projeto de lei dessa importância é colocado em votação. O substitutivo atual altera de forma sensível o equilíbrio do modelo, permitindo abatimentos e investimentos diretos pelas plataformas, reduzindo os repasses ao FSA e transferindo poder de decisão sobre recursos públicos para agentes privados.
Neste texto, procuro destacar alguns dos aspectos dessa discussão que considero relevantes, considerando o contexto e o momento político de sua votação.
O PL define uma alíquota muito baixa — 4% contra os 12% recomendados pelo Conselho Superior de Cinema e os 6% negociados pelo Ministério da Cultura — e permite que grande parte da aplicação dos recursos da contribuição seja gerenciada pelos próprios regulados. Também concentra recursos nas produtoras já integradas comercialmente às plataformas e abre um precedente histórico e perigosíssimo de desvio da função pública do fomento, permitindo que empresas não independentes (com vínculo com canais, operadoras ou plataformas que exibem seus próprios conteúdos) acessem recursos oriundos de contribuição pública para produção própria.
Trata-se, em termos técnicos e simbólicos, de uma inflexão no modelo de política audiovisual brasileira, onde o dinheiro público passa a servir para reforçar o poder dos grandes players, em vez de promover diversidade, regionalização e independência criativa.
Estrutura resumida do modelo
A grosso modo, deixando de lado aspectos de descontos e tabelas mais detalhadas, o substitutivo propõe que as plataformas de vídeo sob demanda (VoD) recolham míseros 4% de sua receita bruta no Brasil, com a seguinte repartição:
- 60% podem ser deduzidos da contribuição quando da contratação de direitos de exploração comercial, de licenciamento ou de pré-licenciamento de conteúdos brasileiros independentes;
- 40% desses 60% podem ser aplicados em produção própria, na hipótese de o contribuinte qualificar-se como produtora brasileira registrada na Ancine;
- De 1% a 3% podem ser deduzidos para formação e capacitação.
- A porcentagem restante vai para o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), destinado a editais públicos e linhas de fomento.
É relevante dizer que logo de partida há um erro conceitual relevante na definição de valor bruto: o percentual de 4% é apresentado como incidente sobre a “receita bruta”, mas exclui da base de cálculo os tributos indiretos (PIS, Cofins, ISS e ICMS) que incidem sobre ela. Essa exclusão reduz a base efetiva de recolhimento, podendo diminuir em até 19% o valor total da contribuição.
Um dos aspectos que mais me chama a atenção, do ponto de vista de questionar a utilidade pública do PL, é que o controle da destinação dos 60% dos recursos — ou seja, a decisão sobre onde, como e em quais obras investir — fica inteiramente nas mãos das próprias empresas que deveriam ser reguladas pelo poder público.
Isso inverte o princípio de governança do fomento audiovisual, transferindo a função regulatória e de planejamento cultural do Estado para as plataformas privadas, que passam a definir a aplicação do recurso de natureza pública segundo seus interesses comerciais.
O Projeto de Lei deveria criar, em tese, um equilíbrio entre iniciativa privada e política pública. Mas, na prática, o modelo institucionaliza a intermediação privada de recursos públicos, deslocando o eixo do fomento estatal para o investimento condicionado por plataformas e conglomerados.
O verdadeiro efeito do abatimento de 60%
Os 60% de abatimento favorecem quem já está dentro da engrenagem comercial das plataformas — as grandes produtoras independentes, que já mantêm contratos recorrentes com plataformas de streaming nacionais e internacionais.
Essas empresas passam a captar diretamente o dinheiro que seria tributo, convertendo obrigação fiscal em investimento dirigido. Ou seja, a lei garante financiamento público para contratos privados entre grandes conglomerados globais e grandes produtoras nacionais.
Veja, é natural que o contato comercial estabelecido na prestação de serviços para originals seja o caminho utilizado pelas plataformas para escolher de quem licenciar e pré-licenciar novas obras. Isso é prática comum em todas as relações comerciais. É natural, se dada a opção para qualquer um de nós, que prefiramos trabalhar com aqueles que já conhecemos e com quem tivemos boas relações profissionais.
É fato que o dinheiro que vai entrar no mercado diretamente através desses 60% é significativo e vai aquecer o próprio mercado e a indústria. Isso é positivo para a economia do setor e para técnicos, artistas e fornecedores contratados, pois haverá aumento de demanda de trabalho e fluxo financeiro na cadeia produtiva.
No entanto, o problema central não é só desconsiderar as práticas de mercado que deixarão de fora as produtoras que não mantêm relação com as plataformas. O problema é que, ao permitir 60% de desconto na obrigação de recolhimento, destina-se muito pouco recurso ao FSA, que é justamente o mecanismo que poderia beneficiar essas produtoras — médias, regionais ou emergentes — por meio de editais públicos e políticas de redistribuição.
É, portanto, uma falácia dizer que o setor de produtoras independentes na totalidade se beneficia desse modelo de abatimento. O que de fato ocorre é que um seleto, experiente e muito competente grupo de produtoras independentes — aquelas já inseridas na cadeia comercial das plataformas — sai beneficiado, enquanto a maioria do setor permanece à margem do acesso a recursos públicos.
Além do mais, é justamente quando o produtor tem liberdade editorial e autonomia criativa — livre de demandas de encomendas e padrões de conteúdo impostos por plataformas e seus algoritmos pasteurizantes — que surgem novas propriedades intelectuais e novos talentos, a base de uma indústria perene e soberana, capaz de gerar valor autoral, artístico e econômico de longo prazo. É daí que vieram filmes como “Cidade de Deus”, “Que Horas Ela Volta”, “2 Filhos de Francisco”, “O Cheiro do Ralo”, entre tantos outros filmes brasileiros independentes.
O novo precedente: inclusão de empresas brasileiras de comunicação
O ponto mais sensível do texto — e que altera a lógica histórica do fomento audiovisual brasileiro — é a autorização para que até 40% dos 60% de abatimento possam ser aplicados em conteúdos próprios, produzidos pelo contribuinte que se qualificar como produtora brasileira registrada na Ancine.
Na prática, isso significa que grupos como Globo, SBT, Record, Band, RedeTV e outros conglomerados nacionais, desde que formalmente registrados na Ancine como produtoras brasileiras, poderiam utilizar parte do tributo abatido para investir em suas próprias obras.
Isso representa um precedente inédito na história da política de fomento: é a primeira vez, desde a criação da Ancine (2001) e do FSA (2006), que se admite o uso de recursos de natureza pública em empresas não independentes. Esse precedente é imoral.
O efeito prático é o mesmo: transferência de recursos públicos para conglomerados integrados verticalmente, com produção, distribuição e exibição dentro do mesmo grupo econômico. Essa brecha rompe o princípio fundacional do fomento audiovisual brasileiro de promover diversidade e corrigir assimetrias estruturais, convertendo política pública em instrumento de reforço do poder privado.
Consequência política e estrutural
O que está em jogo aqui é a natureza da Condecine: ela não existe apenas para arrecadar, mas para corrigir desequilíbrios e promover equilíbrio de forças dentro de um determinado setor econômico. A destinação dos recursos é tão ou mais importante do que o valor arrecadado.
Ao permitir o investimento próprio e reduzir a transferência para o FSA, o texto cria brechas enormes para judicializações futuras, justamente porque rompe o princípio da isonomia entre contribuintes e distorce o propósito original da CIDE. Estamos, na prática, financiando o catálogo das plataformas com dinheiro público, ao autorizar que invistam parte da contribuição em obras de sua própria escolha ou produção.
Enquanto isso, os CABEQs — Canais Brasileiros de Espaço Qualificado — não podem usar esse tipo de recurso: eles precisam investir dinheiro próprio para adquirir licenciamentos e alimentar seus catálogos. Ou seja, a política proposta favorece quem já tem poder de investimento, em detrimento de quem efetivamente promove diversidade de conteúdo nacional.
Além disso, nenhum outro contribuinte da Condecine — seja Condecine Teles, Condecine Título ou Condecine Remessa — tem a prerrogativa de produzir conteúdo próprio com o dinheiro da contribuição. Podem, sim, escolher aplicar recursos em Obras Independentes de Produtoras Brasileiras independentes em troca de porcentagem patrimonial. A exceção criada para o Condecine-Streaming rompe a isonomia tributária e regulatória do setor, abrindo uma brecha grave que enfraquece a coerência jurídica e política do sistema audiovisual brasileiro.
Considerações adicionais sobre o processo e os custos da negociação
Existem ainda diversos detalhes técnicos e políticos — e não menos importantes. Alguns deixei de lado e foco nos mais essenciais para o objetivo deste artigo, mas os cito aqui rapidamente: entre eles, a divergência sobre a alíquota a ser aplicada às plataformas — há propostas variando entre 12% e o mínimo acordado previamente de 6%, o que demonstra ausência de consenso dentro do próprio setor e arbitrariedade da proposta.
Houve também a redução da contribuição dos serviços de compartilhamento de conteúdo (plataformas como Youtube e Tik Tok), que caiu de 2% para 0,8%, bem como aumento dos percentuais de abatimento e descontos, diminuindo significativamente o potencial arrecadatório e o alcance redistributivo da política. Equiparou-se também, para fins de cota de tela, um episódio de uma série a um longa-metragem, o que enfraquece mais uma vez o cinema.
No geral, as concessões do PL refletem questões cruciais: a que custo se negocia? Quais são as batalhas que precisamos perder? Quais vitórias são de Pirro?
Estamos, de fato, aprovando um marco fundamental para o cinema e a economia audiovisual brasileira. A criação da Condecine-Streaming e a instituição de uma regulação específica para o segmento são medidas necessárias e compatíveis com as práticas de todos os países que possuem produção audiovisual relevante. Chamo atenção não só ao mérito da regulação, mas à forma e ao momento em que ela está sendo conduzida.
Há um legado nefasto nessa aprovação de última hora, no último momento do ano pré-eleitoral: é sintomático que o país só agora consiga pautar um tema que deveria ter sido regulamentado há quase uma década e que era o que mais se esperava do atual governo pelo setor. E o pior, a urgência política está nos levando a aprovar um texto enfraquecido e desequilibrado, sob o argumento verdadeiro de que o calendário eleitoral de 2026 impede qualquer avanço legislativo no próximo ano.
Na prática, isso significa que, se o projeto não for aprovado ainda em 2025, qualquer aprovação só ocorreria a partir de 2027, com a primeira arrecadação efetiva de recursos apenas em 2028, o que representaria mais dois anos de paralisia para o setor.
Essa pressa é compreensível diante do vácuo de política audiovisual do Poder Executivo, mas não deixa de ser trágica. Hoje, a política pública para o audiovisual é ineficiente, desarticulada e politicamente negligenciada. Não há, de fato, investimento político real por parte das lideranças do governo federal — Lula, Haddad e Alckmin — para reconhecer o peso econômico e simbólico do audiovisual brasileiro no PIB e na cultura nacional. As mesmas lideranças que se beneficiam em suas redes sociais com o discurso ufanista do sucesso do cinema nacional. Filmes como “Ainda Estou Aqui”, “O Agente Secreto” e “O Último Azul” são produtos diretos de resultados passados da política cultural quando esta permitiu o desenvolvimento de roteiristas, diretores, elenco e produtores.
Além disso, o Ministério da Cultura, a Secretaria do Audiovisual (SaV) e a Ancine demonstram falta de coordenação, agilidade e capacidade de operação. A SaV age constantemente de forma reativa, relatando-se pega de surpresa pelos movimentos políticos que deveria estar capitaneando. As convocações do CSC (Conselho Superior do Cinema) e do CGFSA (Comitê Gestor do FSA), pilar da política audiovisual, foram poucas, mal conduzidas e ineficientes, e a burocracia da Ancine atingiu níveis paralisantes. Um exemplo concreto: já se passou mais de um ano desde a abertura do último edital do FSA sem que os resultados tenham sido sequer anunciados. Nada aconteceu no longínquo edital da EBC, e acumulam-se derrotas e retrocessos administrativos que comprometem qualquer tentativa de reconstrução institucional.
Esses fatores ajudam a explicar por que o setor aceita negociar em condições desfavoráveis para além do benefício econômico direto de poucos, motivado pelo medo e pela inércia política do governo. Estamos todos batalhando para que algo seja aprovado sem termos campeões da causa como tivemos no passado, seja no governo ou fora dele.
No entanto, esse desequilíbrio de forças, somado ao conservadorismo ignorante do Congresso e à miopia da própria classe audiovisual, com extrema dificuldade de ver e entender pontos de vista e interesses daqueles que não os seus, cria um ciclo permanente de antagonismo, onde ideologias desinformadas prevalecem sobre dados concretos — dados que, aliás, são de difícil acesso devido à falta de transparência e sistematização das informações públicas.
A ausência de indicadores confiáveis e de dados abertos sobre faturamento, investimentos, impacto econômico e resultados das políticas culturais impede qualquer debate qualificado e mantém o setor refém de narrativas distorcidas e simplificações políticas e matemáticas.
Nesse ambiente, a polarização substitui o diagnóstico técnico, e a discussão sobre o audiovisual passa a ser pautada por ressentimentos, disputas de ego e alianças circunstanciais. Reina o “farinha pouca, meu pirão primeiro”.
A falta de unidade interna da classe, somada à incapacidade institucional do Estado de produzir informação e coordenar políticas de longo prazo, transforma o audiovisual brasileiro num campo fragmentado, onde os interesses imediatos prevalecem sobre a construção de uma política sólida e sustentável.
Assim, a ganância de poucos — amparada por conveniências políticas e pelo pânico de paralisia — acaba por justificar o apagamento progressivo das políticas públicas, reduzindo o papel estratégico do Estado e comprometendo o futuro de uma das áreas mais dinâmicas e simbólicas da economia criativa nacional.
Ainda, fomento público é uma escolha de país — como me disseram recentemente — e, no fundo, é isso que está em jogo.
Em um ambiente verdadeiramente republicano, onde o FSA fosse de fato capitaneado e executado com planejamento por uma Ancine tal qual foi um dia, onde a previsibilidade fosse uma realidade e os tributos fossem recolhidos e geridos pelo poder público, não cometeríamos o erro de aprovar um projeto de lei que transfere de forma desproporcional o poder de decisão para as plataformas. Estamos muito distantes deste ambiente.
Aprovaremos uma lei que tem de muito importante a criação da Condecine-Streaming e, também, um aporte de recursos pessimamente distribuídos. O simples fato de ela existir nestes termos revela a dimensão do nosso fracasso como país em estruturar uma política audiovisual coerente, soberana e à altura de seu potencial econômico e cultural.
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