A insulina nacional e a soberania sanitária
No Dia Mundial da Diabetes, autoras provocam: retomada da produção local do hormônio é um marco, mas não o ponto de chegada. Além de atender à demanda do Brasil, indústria pública deve tornar-se fornecedora a preços justos para toda a América Latina
Publicado 14/11/2025 às 09:28

Por Nathália Rodrigues Alvarez, Débora Alighieri, Sara Helena Gaspar e Nina Tousch, autoras convidadas
Cem anos após a descoberta da insulina, o medicamento que salvou milhões de vidas ainda é um privilégio. Uma em cada duas pessoas com diabetes que dependem dele para sobreviver não têm acesso garantido.
A concentração da produção da insulina em três farmacêuticas transnacionais, combinada com políticas de saúde que não priorizam o fornecimento sustentável para sistemas de saúde, o que faz com que pacientes tenham que arcar com custos exorbitantes e, no pior dos casos, racionar a insulina para fazer o tratamento durar.
Além disso, o acesso à insulina não se resume ao medicamento. Significa ter o dispositivo certo – como as canetas, mais precisas e confortáveis, ou a bomba de infusão contínua – e acessar a educação terapêutica, para que o uso seja seguro e eficaz.
Segundo a nova Pesquisa de Gastos do Próprio Bolso da T1International, os pacientes gastam em média 15% de sua renda familiar com insulina e materiais para medir a glicose. Em países de renda baixa e média, esse percentual sobe para 62%. Na América Latina, os números são alarmantes: o gasto médio chega a 36% da renda média; na Guatemala, ultrapassa 100%.
Os altos custos tornam o racionamento de insulina e de materiais de testagem uma prática comum. Entre 2018 e 2024, o número global de pessoas que precisa racionar dobrou. As estatísticas internacionais sugerem que a insulina é “amplamente acessível”, mas a realidade dos pacientes mostra o contrário.
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) é ferramenta fundamental para garantir o acesso à insulina. No entanto, o fornecimento enfrenta uma série de barreiras: limitação ao acesso às insulinas análogas; entraves burocráticos; dificuldade de compra das insulinas no mercado privado; diminuição do fornecimento pela indústria transnacional e despriorização política. Essas dificuldades revelam a fragilidade estrutural do abastecimento e a vulnerabilidade de depender quase exclusivamente de multinacionais para garantir um insumo vital.
Produção pública de insulina para todos
O Brasil apresenta uma característica vista em poucos países: a existência de laboratórios públicos nacionais com a finalidade de produzir medicamentos para o sistema público de saúde. Nos últimos anos, a indústria biotecnológica brasileira voltou a crescer e, em 2025, o Brasil retomará a produção pública de insulina, um passo estratégico para enfrentar desabastecimento, reduzir a dependência do setor privado e garantir fornecimento sustentável para sistemas de saúde. A iniciativa é parte da nova Estratégia Nacional para o Desenvolvimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), um dos eixos do programa Nova Indústria Brasil (NIB), conjunto de medidas para impulsionar a indústria nacional até 2033.
Nos anos 1980, a Biobrás Bioquímica do Brasil, em parceria com a Eli Lilly, produzia a maior parte da insulina usada no país. Mas, em 2001, a Biobrás foi vendida à Novo Nordisk, e desde então a insulina brasileira passou a ser importada.
Posteriormente, Farmanguinhos/Fiocruz e Bahiafarma retomaram a produção e distribuição, ainda importando o princípio ativo da ucraniana Indar S.A., por meio de Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs), acordos que buscam ampliar o acesso, reduzir custos e fortalecer a autonomia tecnológica do SUS.
Em 2025, o Ministério da Saúde anunciou o primeiro lote de insulina 100% nacional. A iniciativa resulta de uma PDP entre a farmacêutica indiana Wockhardt, o laboratório público Fundação Ezequiel Dias (Funed) e a indústria brasileira Biomm. As insulinas NPH e regular produzidas serão distribuídas gratuitamente no SUS, dentro do Componente Básico da Assistência Farmacêutica.
No mesmo ano, outra parceria entre Bio-Manguinhos/Fiocruz, Biomm e a farmacêutica Gan & Lee, foi aprovada para fabricação nacional da insulina glargina, com produção do insumo farmacêutico ativo (IFA) na fábrica da Fiocruz no Ceará. Esses passos sinalizam uma recuperação da capacidade produtiva nacional e uma tentativa de reduzir a dependência externa que marcou as últimas duas décadas, garantindo a soberania sanitária na produção de insulina.
Apesar dos avanços, os desafios permanecem significativos. É preciso ampliar os investimentos na produção pública, internalizar a fabricação de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFA) e garantir recursos sustentáveis para inovação e distribuição da produção.
A retomada da produção nacional é um marco, mas não é o ponto de chegada. É preciso que a produção nacional atenda toda a demanda do SUS, inclua todos os tipos de insulina e concretize o princípio constitucional de cooperação com outros países latino-americanos.
Construir uma produção em escala regional exigirá mais: ampliar a capacidade produtiva nacional, fortalecer o diálogo regulatório e as parcerias com países e organizações regionais. Essa expansão deve ter como objetivo claro a redução da dependência externa e a criação de uma rede latino-americana de produção e fornecimento de insumos essenciais.
O Brasil pode, e deve, tornar-se um fornecedor regional de insulina a preço justo, contribuindo para a segurança sanitária da América Latina.
Se o século XX foi o da descoberta da insulina, o desafio do século XXI é garantir que ninguém precise racioná-la para sobreviver.
O Brasil tem agora a oportunidade, e a responsabilidade, de liderar esse caminho.
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