“Os jovens querem diagnósticos psiquiátricos”
Indústria farmacêutica, psiquiatria tradicional e redes sociais influenciam a juventude a definir sua identidade pelo uso de remédios – assumindo-se “ansiosos” ou “depressivos”. Para Robert Whitaker, Fiocruz pode construir novo paradigma que enfrente essa visão
Publicado 10/11/2025 às 08:00 - Atualizado 10/11/2025 às 09:38
O rápido crescimento dos diagnósticos psiquiátricos e do uso de medicamentos antidepressivos no Brasil, apresentado como uma resposta à crise de sofrimento psíquico, não pode ser chamado de um consenso na sociedade. Se, por um lado, a indústria farmacêutica e a psiquiatria tradicional defendem essa proposta, o movimento antimanicomial e a reforma psiquiátrica propõem que é possível desmedicalizar a saúde mental – oferecendo alternativas a partir da arte, cultura, trabalho, renda, esporte e outras práticas de cuidado em liberdade.
Autor de livros como Anatomia de uma Epidemia (Editora Fiocruz, 2017), Desmedicar — A Luta Global Contra a Medicalização da Vida (Zagodoni, 2024) e Psychiatry Under the Influence (ainda sem tradução para o português), o jornalista Robert Whitaker acredita que há um novo desafio para o debate crítico sobre o tema: “As redes sociais transmitem e difundem essa ideia de que os jovens devem se ver através das lentes dos diagnósticos. Isso é realmente desencorajador. Quando você começa a se entender a partir desse ângulo, o diagnóstico lentamente passa a ser sua identidade. Passa a definir como será o seu futuro, como será sua resposta a momentos difíceis. É uma coisa triste ver até mesmo crianças se entendendo através dessa lente patologizante”.
Whitaker cobre os temas da psiquiatria em profundidade há três décadas, e esteve no Brasil para participar do 9º Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, realizado nos dias 30 e 31 de outubro na Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz). No espaço, apresentou estudos sobre as evidências da eficácia das drogas psiquiátricas e o panorama global das iniciativas desmedicalizantes.
Entrevistado por Outra Saúde e pelo portal Mad in Brasil, Whitaker refletiu sobre o papel que o Brasil pode cumprir em uma mudança no atual cenário: “Se o governo brasileiro ou a Fiocruz desenvolvessem novos protocolos sobre o uso de drogas psiquiátricas, isso seria algo grande. Uma mudança no Brasil impactaria a América Latina e, possivelmente, o mundo. É como a desinstitucionalização, um processo que, a partir do êxito da experiência na Itália, se espalhou pelo globo, chegando inclusive no Brasil. Este Seminário pode ser a semente de uma revolução – extremamente necessária, tendo em vista a piora global nos problemas de saúde pública – no modo de pensar as drogas psiquiátricas.”
Fique, a seguir, com a íntegra da entrevista com Robert Whitaker, jornalista e editor. Não deixe de conferir os vídeos de suas apresentações no Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, disponíveis nesta página.
Você acha que os questionamentos que você levanta, assim como fizeram outros jornalistas e cientistas, estão ajudando a mudar a forma como as drogas psiquiátricas são vistas?
A narrativa está mudando, não há dúvidas quanto a isso, particularmente nos Estados Unidos. Escrevi três livros sobre o assunto, mas acredito que o motivo pelo qual esses livros tiveram algum impacto é porque contam sobre as pesquisas deles, das pessoas mais prestigiadas da psiquiatria ou do Instituto Nacional de Saúde Mental [NIMH, na sigla em inglês]. Muitas vezes, quando eles encontram resultados que não gostam, tendem a não promovê-los para o público.
Vou dar um exemplo sobre essa mudança de narrativa. Antes, a linha que se difundia era que os antipsicóticos melhoram a qualidade de vida dos pacientes, e de que haveria muitas provas disso. Eles seriam essenciais para viver bem a longo prazo, dizia-se. Atualmente, o que se lê nos periódicos de psiquiatria dos Estados Unidos é que não há prova de que esses medicamentos melhoram a qualidade de vida. Hoje, se ouve cada vez mais que os antidepressivos até mesmo pioram a qualidade de vida, com o passar do tempo.
Se pudermos fazer essas evidências científicas mais recentes serem conhecidas, isso começará a ter um impacto nas narrativas mais amplas sobre as drogas psiquiátricas. Os Estados Unidos são uma potência que exporta suas ideias ao redor do mundo. Com sorte, essa “contra-narrativa” também pode acabar sendo exportada também.
O que a Fiocruz faz, ao organizar o Seminário Internacional A Epidemia das Drogas Psiquiátricas, é muito importante. É um evento recorrente, que anualmente ajuda a fortalecer essa contra-narrativa. Isso tem um peso no grande esquema das coisas.
Que papel o Brasil pode cumprir na mudança de narrativa sobre as drogas psiquiátricas?
A Fiocruz é uma das instituições de saúde mais respeitadas de todo o mundo, além de ser a mais conhecida da América Latina. A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem publicando relatórios em que diz que é preciso uma “mudança de paradigma” [sobre os medicamentos psiquiátricos], mas o único país a realizar um seminário anual sobre os problemas dessa medicalização é o Brasil, em uma instituição com o prestígio e o impacto da Fiocruz. Não existe algo parecido nos Estados Unidos ou nos países da Europa, enquanto aqui isso já está acontecendo há nove anos seguidos.
Se o governo brasileiro ou a Fiocruz desenvolvessem novos protocolos sobre o uso de drogas psiquiátricas, isso seria algo grande. Uma mudança no Brasil impactaria a América Latina e, possivelmente, o mundo. É como a desinstitucionalização, um processo que, a partir do êxito da experiência na Itália, se espalhou pela Europa e pela América Latina, chegou inclusive no Brasil. Este Seminário pode ser a semente de uma revolução no modo de pensar as drogas psiquiátricas. Uma revolução extremamente necessária, tendo em vista a piora nos problemas globais de saúde pública dos últimos anos.
Quais você acredita que são os principais desafios para mudar a narrativa sobre as drogas psiquiátricas e “fazer uma revolução” no modo como pensamos, como você disse mais cedo?
O único momento em que me senti um pouco pessimista durante o Seminário foi quando ouvi que a juventude do Rio de Janeiro está querendo ser diagnosticada e aumentando seu uso de drogas psiquiátricas. Nos Estados Unidos, essa narrativa também chegou, principalmente através das redes sociais. Os jovens dizem que querem um diagnóstico de ansiedade, depressão, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), autismo… Nas redes sociais, ser patologizado é visto como algo bom!
Acho que há três principais desafios: a indústria farmacêutica, a psiquiatria enquanto uma guilda e as redes sociais.
A indústria farmacêutica, é claro, quer vender seus produtos.
No que se refere aos psiquiatras, é preciso entender porque eles resistem a essa mudança de perspectiva sobre as drogas psiquiátricas. Nos Estados Unidos, o que esses profissionais fazem é basicamente prescrever medicamentos. Você procura um psicólogo ou outro profissional para receber aconselhamento ou fazer terapia, mas não um psiquiatra. Assim, eles não querem dizer que esses fármacos podem fazer mal, afinal, se fizerem isso, sua profissão não faz sentido.
Já quanto às redes sociais, são elas que transmitem e difundem essa ideia de que os jovens devem se ver através das lentes dos diagnósticos. Isso é realmente desencorajador. Quando você começa a se entender a partir desse ângulo, o diagnóstico lentamente passa a ser sua identidade. Passa a definir como será o seu futuro, como será sua resposta a momentos difíceis. É uma coisa triste ver até mesmo crianças se entendendo através dessa lente patologizante. Penso que as redes sociais cumprem um papel muito negativo.
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