Chacina do Rio: Qual a resposta das esquerdas?

O banho de sangue nas favelas cariocas é exemplar na disputa por seu significado na luta política. Ouvir as maiorias é imperativo – mas não se deve abdicar de liderar, pedagogicamente, o repúdio radical a atos execráveis contra a vida: o massacre é inaceitável

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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No massacre do dia 28 de outubro, no Rio de Janeiro, foram mortas 121 pessoas -a contagem pode aumentar-, muitas delas com a extravagância de quem não se limita a matar: manifesta o desejo de comentar o assassinato, acrescentando ao crime um superlativo e uma assinatura, produzindo excesso de significação (decapitação, mutilação, esfaqueamento, desmembramento) que, paradoxalmente, anula o significado objetivo e utilitário da prática homicida, redefinindo o gesto como um movimento além do ato, destinado a comunicar outro sentido, não contido na cena “operacional”. Mais uma vez, compulsão à repetição como “política de segurança”, em escala crescente: está em jogo, novamente, o endereçamento da abjeção social -para que lado olhar, onde  identificar a fonte do mal e do medo, mobilizando quais afetos? É aí que se instala, e intensifica, o racismo. Há um locus privilegiado, um território. O racismo é uma geografia, uma geopolítica urbana -viva Milton Santos! A operação policial não visava prover segurança, mas qualificar a insegurança.

Sabemos que uma incursão bélica num bairro popular não restaura a ordem, não promove segurança pública, não altera dinâmicas criminais em curso. Sabemos pela observação de eventos análogos ao longo das décadas. Nesse caso, tratava-se de mudar a agenda política, que vinha se desenhando favorável ao governo federal, em parte por erros grosseiros da extrema direita, cuja irresponsabilidade anti-nacional ultrapassara todos os limites. Tratava-se também de salvar o governador, às vésperas de seu julgamento no TSE. Além disso, a insistência no léxico trumpista do “narco-terror” serviu para inscrever o discurso da extrema direita brasileira na gramática geopolítica global, sacrificando a soberania e abrindo as portas do Brasil a quaisquer veleidades imperiais. Senha e passaporte foram emitidos. Pode-se imaginar a festa de robôs e algoritmos, no ano eleitoral. Mesmo que a Faria Lima e a mídia corporativa não embarquem na aventura neofascista, lhes convém manter sob chantagem o governo federal.

Isso tudo é bastante evidente e tem sido destacado. O que talvez esteja sendo subestimado é o fato de que, ante o banho de sangue no Alemão e na Penha, está sendo levado às últimas consequências o processo de transformação das esquerdas (e que a tem degradado) de emissora em receptora, no vasto campo da cultura política. Sendo mais breve do que a análise exigiria e indo ao ponto, porque o momento exige incidência urgente e forte: na Rússia do século XIX, os marxistas se afirmaram contra o populismo narodniki, adotando posição que revindicava a vanguarda e a pedagogia, apontando o rumo, descrevendo a realidade em seus próprios termos e convertendo a militância em instância de educação popular. Lenin não foi ao povo para ouvi-lo e adaptar-se a seus valores e à sua vontade espontânea, mas para disputar a hegemonia intelectual e moral, transformando a tradição e criando condições para liderar as lutas populares.

Sim, claro que estou ciente dos riscos implicados e dos efeitos deletérios. O custo da vitória foi o autoritarismo stalinista e a coragem de afirmar valores acabou degenerando em dogmatismo e silenciamento da sociedade. Por isso mesmo, consciente do preço histórico, a tendência que se originou na autocrítica foi esmerar-se em ouvir o povo e adaptar-se à sua vontade. Entretanto, dada a consolidação da hegemonia capitalista e de estruturas estatais permeáveis ao domínio econômico, a competição política neutralizou a disputa ideológica e acabou abduzida pelo imperativo eleitoral, subordinando a interesses táticos quaisquer considerações estratégicas.

Esse percurso não conduziu da cúpula a mediações antropologicamente orientadas, radicalmente democráticas, mas, ao contrário, conduziu da convicção ao oportunismo, pois quem opera a mediação -além de algoritmos, mecanismos midiáticos e púlpitos venais (nem todos os são, por óbvio)- é o mercado, cujos bens incluem cestas de votos.

A tradução sintética dessa trajetória que nos trouxe da intenção vanguardista -pedagógica e ideológica- à escuta absolutizada foi o triunfo do marqueteiro, aquele agente que introduziu pesquisas qualitativas, grupos focais e o almanaque prático (e pusilânime) do sucesso eleitoral. Seus cálculos substituíram avaliações políticas, fundadas não em slogans para o consumo, mas em valores, visões de mundo, projetos comuns de futuro. Evidentemente, quem apostar unilateralmente nas convicções e descurar das condições em que se estrutura a receptividade popular, será riscado do mapa pela história. Mas ouso dizer que a vitória de candidaturas à esquerda viabilizada por adaptabilidade ao que está dado se condenará a auto-anular-se.

O caso do massacre no Rio é exemplar. As reações da sociedade ao banho de sangue estão em aberto, dependem de uma vasta multiplicidade de fatores, e se modificarão ao longo do tempo. A disputa por seu significado se confunde com a luta política. Por esse motivo, sustento que a resposta das esquerdas, em sua pluralidade irredutível, não deve priorizar propostas alternativas de políticas públicas (de segurança e outras), mas apoiar-se numa só referência: o valor, o valor da vida, o valor da dignidade. Como tem dito, entre outros e outras, meu colega Alexandre Werneck, da UFRJ -e não estendo a ele as implicações aqui extraídas deste postulado-, a questão é política, sim, mas inapelavelmente, fundamentalmente moral. O que se passou é inaceitável, simplesmente inaceitável, absolutamente inaceitável. As esquerdas devem ouvir a maioria, ouvir a sociedade, sempre, mas não podem se furtar a liderar, pedagogicamente, educativamente, o repúdio radical aos atos execráveis contra a vida e a dignidade. É política, esta posição, é constitucional, é legal, sim, é tudo isso, mas sobretudo expressa um valor que cumpre defender sem hesitação, qualquer que seja o preço político a pagar. A luta sendo moral é ideológica; sendo intelectual e moral, é por hegemonia. É preciso agora assumir os custos de ser radical, assumir a vanguarda da luta pela vida e por uma pedagogia da dignidade. A história dá voltas e há de reencontrar o fio perdido que as minorias saberemos preservar.

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