Paulo Amarante responde a uma deturpação
Em audiência na Câmara, funcionário do Ministério do Desenvolvimento Social alega que veterano da Reforma Psiquiátrica defende “comunidades terapêuticas”. Paulo Amarante responde em carta pública, denunciando deturpação de sua obra e pedindo retratação
Publicado 03/11/2025 às 16:28 - Atualizado 03/11/2025 às 16:38

Há muito tempo, o movimento de luta antimanicomial no Brasil critica as chamadas “comunidades terapêuticas”, entidades (na maioria das vezes, religiosas) que se vendem como espaços de tratamento ao uso abusivo de álcool e drogas, mas constantemente associadas a casos de morte, tortura, escravidão e outros crimes. Esta crítica se acentuou quando, em 2023, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), encabeçado por Wellington Dias (PT-PI), passou a contar com um departamento que oferece guarida a essas entidades muito denunciadas por violações de direitos humanos.
Recentemente, um funcionário deste departamento do MDS afirmou em audiência pública que as “comunidades terapêuticas” seriam defendidas até mesmo por Paulo Amarante, pesquisador da Fiocruz e veterano militante da Reforma Psiquiátrica. Respondendo à fala, Amarante rebateu o “uso conscientemente deturpador” de seu trabalho e pede retratação. Entendendo que sua veiculação ajuda a esclarecer a defesa do cuidado em liberdade no Brasil, Outra Saúde publica a seguir a carta de Paulo Amarante. Boa leitura! (Redação Outra Saúde)
Título original: Nota de repúdio e indignação
Assisti, indignado, à apresentação do Sr. Diego Mantovaneli do Monte, funcionário público do Departamento de Entidades de Apoio e Acolhimento da Secretaria Executiva do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), na Audiência Pública “Políticas sobre drogas nas comunidades terapêuticas”, em 21 de outubro do corrente ano. O funcionário cita meu nome e o título do meu livro para justificar a existência e a importância daquilo que ele denomina de “comunidade terapêutica”. A expressão é aqui propositadamente colocada entre aspas para chamar a atenção dos aspectos que passarei a explicitar mais adiante.
Digo tudo isso porque considerei que sua manifestação na audiência pública não foi ingênua. Minha trajetória em defesa do cuidado em liberdade é amplamente conhecida. É impossível que o senhor, como alto funcionário público dedicado ao tema do uso de substâncias, não tenha tido contato com minhas formulações, especialmente com minhas críticas à deturpação da experiência das Comunidades Terapêuticas. Tenho escrito muitos artigos e livros; tenho publicado em vários periódicos científicos, assim como em veículos de acesso público, gratuito e aberto; tenho concedido várias entrevistas e proferido dezenas de conferências, palestras e aulas, também de acesso público e gratuito expressando minha opinião sobre a apropriação indevida, comercial, “religiosa” e fraudulenta dos princípios da Comunidade Terapêutica, com C e T maiúsculos e sem aspas.
Sou um profissional indignado com o uso inadequado que se faz destes princípios e da nobre e fundamental referência científica e ética dos mesmos para a profunda transformação do cuidado no campo, o que exatamente estais tais “comunidades terapêuticas” estão a fazer regredir, com a adoção de práticas radicalmente opostas ao que foi iniciado por Tom H. Main, Maxwell Jones, Karl Menninger e tantos outros. Fico indignado toda vez que vejo notícias de mortes, maus tratos, abusos, trabalho escravo, torturas etc., em instituições que usurparam o verdadeiro projeto da Comunidade Terapêutica.
Na ocasião da regulamentação das “comunidades terapêuticas” para sua inclusão na RAPS, eu era presidente da Associação Brasileiro de Saúde Mental (Abrasme) e, por decisão desta entidade, decidimos não participar da comissão de regulamentação na medida em que já conhecíamos o que vinha sendo realizado e denominado de “comunidade terapêutica” e não aceitávamos que tal regulamentação ocorresse porque sabíamos, por antecipação e conhecimento dos problemas já então existentes, o que estaria por vir em termos de agravos à saúde pública e aos Direitos Humanos no Brasil.
As Comunidades Terapêuticas e as “comunidades terapêuticas”
O termo Comunidade Terapêutica foi proposto por Tom H. Main, no final dos anos 40 do século XX, no Reino Unido, para expressar um conjunto de princípios éticos, políticos e epistemológicos que visavam combater as práticas hierarquizadas, institucionalizantes e anti terapêuticas dos hospitais psiquiátricos daquela época. O projeto foi ainda mais explorado e desenvolvido por um outro grande psiquiatra escocês, Maxwell Jones, que publicou muitos textos sobre Comunidades Terapêuticas e inclusive publicou um icônico livro que leva este título.
Como Comunidade Terapêutica era considerada não uma instituição ou serviço, mas um conjunto de determinadas estratégias terapêuticas de práticas e princípios de autogestão e cuidado mútuo, de coletivismo, de solidariedade, de horizontalização e democratização (termo adotado por Jones) das relações interpessoais na instituição; enfim, de práticas que configurassem um verdadeiro espírito comunitário que, em resumo, se traduzissem em estratégias de combate à segregação e à violência institucional, sendo, portanto, práticas terapêuticas. Uma Comunidade (verdadeiramente de cuidado de si e dos demais) Terapêutica!
Simultaneamente, na França, uma outra iniciativa estava se desenvolvendo no mesmo sentido. Liderada por François Tosquelles, mas com a participação de psiquiatras como Lucién Bonnaffé, Jean Oury, Frantz Fanon, Jacques Lacan, dentre outros, e artistas e intelectuais como Salvador Dalí, Paul Eluard e Antonin Artaud. Denominado de coletivo terapêutico, uma espécie de versão francesa da ideia do comum, o projeto passaria a ser conhecido internacionalmente com a denominação de psicoterapia institucional.
Ambas as experiências tiveram influências de autores e atores muito reconhecidos tais como Simon e Sivadon, da Terapêutica Ocupacional, de Bion e Richmann, dos Grupos Operativos, Grupos Terapêuticos e Grupos de Reflexão. O objetivo era possibilitar práticas comunitárias/coletivas de cuidado mútuo, de cooperação e solidariedade, estimulando o protagonismo e a participação do conjunto dos atores sociais envolvidos.
Nos EUA, Karl Menninger adotou e desenvolveu importantes experiências exitosas de Comunidade Terapêutica, mas também Ronald Laing, David Cooper e Aaron Esterson, na Inglaterra a adotaram, assim como Franco Basaglia e suas equipes de Gorizia e Trieste iniciaram seus processos de reforma psiquiátrica a partir dos princípios da Comunidade Terapêutica.
É fundamental destacar que os princípios da Comunidade Terapêutica foram fundamentais no início dos processos de reforma psiquiátrica, assim como seguem sendo atualmente, por desencadearem processos de tomada de consciência crítica quanto ao papel de produção de violência dos hospitais psiquiátricos que institucionalizaram milhares de pessoas em condições de extrema carência, submetidos à violência permanente, às práticas de exclusão e mortificação.
Deturpação no Brasil: é preciso retratação
As bases da Comunidade Terapêutica, sem aspas, indicaram um caminho a ser seguido pela reforma psiquiátrica, que é o do protagonismo dos usuários, do cuidado em liberdade, da participação social, da escuta, dos tratamentos não invasivos, do respeito aos Direitos Humanos e à dignidade das pessoas, da cidadania, dos princípios da democracia, muito bem expressos pelo movimento Psiquiatria Democrática, liderado por Franco Basaglia, e que está na base do processo brasileiro de reforma psiquiátrica: por uma psiquiatria em defesa da vida e do cuidado em liberdade!
No Brasil os princípios da Comunidade Terapêutica inspiraram trabalhos como o de Nise da Silveira, Oswaldo dos Santos, Marcelo Blaya, José Onildo Contel e muitos outros. Daí decorre nossa indignação quando uma determinada modalidade de instituição utiliza de maneira absolutamente deturpada, e até mesmo, absolutamente ao contrário daquilo pelo qual trabalhamos, uma expressão e um projeto que têm tanto significado no campo da saúde mental, da saúde coletiva, dos direitos humanos e da democracia.
Temos lido regularmente uma série de reportagens, denúncias e manifestações da própria imprensa, de órgãos e colegiados públicos (Ministério Público, Defensoria Pública, conselhos de saúde, conselhos e ordens profissionais), ou ainda de entidades sociais, de relatos de violência nas autodenominadas “comunidades terapêuticas”, que incluem mortes, trabalho escravo, repressão, assédio moral, assédio sexual, assédio religioso, dentre outros. Também a mercantilização de tais negócios é evidente e preocupante, na medida em que recebem recursos vultosos da união, estados e municípios, além de denúncias e reclamações de familiares que se dizem pressionados a contribuir com o custeio das mesmas.
Há exatamente 30 anos publicamos o livro Loucos pela Vida, fruto de um longo e consistente trabalho de pesquisa da equipe do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (Laps/Fiocruz), que identificou e analisou os antecedentes históricos, éticos e epistemológicos do processo da reforma psiquiátrica brasileira e que constatou a inegável e fundamental importância dos princípios da Comunidade Terapêutica.
O Sr. Diego se utiliza de um livro lançado há 30 anos e que se tornou uma referência quase que obrigatória na reforma psiquiátrica brasileira, descontextualizando o teor e a situação histórica e política do conteúdo. Com base neste livro foram formados alguns milhares de trabalhadores e trabalhadoras do campo da saúde mental e atenção psicossocial que vêm operando os processos de mudança no país. A citação do texto descontextualizando-o do período e da originalidade da experiência raiz, desconhecendo as críticas que temos feito quanto à descaraterização e até mesmo ao uso fraudulento da experiência da Comunidade Terapêutica, é no mínimo, um ato de irresponsabilidade ou de má fé. Por tais motivos, aguardo do Sr. Diego uma retratação pelo uso conscientemente deturpador de meu trabalho e de minha atitude ética.
Paulo Amarante
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