Paes Manso: no Rio, o governo é a facção

A ação mais letal das polícias mirou no vazio. Em quarenta anos, operações em morros não afetaram o crime organizado. Métodos erráticos e improvisados do governador o igualam aos próprios criminosos, sem atingir a estrutura horizontal e capilarizada destes

Fernando Frazão/Agência Brasil
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Por Bruno Paes Manso, na Piauí

O Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital atuam há décadas no mercado bilionário de drogas e aprenderam, com o passar do tempo, a multiplicar seu capital e preservar seu poder na ilegalidade.

Ambas estão presentes em quase todas as unidades da federação brasileira, com modelos de negócios bem diferentes (apenas o Rio Grande do Sul não tem a presença de nem uma nem outra).

No caso do PCC, o grupo se estruturou a partir do controle das prisões. Do lado de fora, eles estenderam sua rede de parceiros para atuar principalmente no mercado atacadista de drogas.  O lucro depende da capacidade da facção em garantir o transporte da cocaína dos Andes para os mercados internacionais.

O quilo de cocaína, comprado nas fronteiras a menos de 1.000 dólares, chega a ser vendido por 80 mil dólares na Europa, na Ásia e na Oceania. Para abastecer esse mercado, o PCC precisa manter o fluxo de mercadoria nas estradas, rios, portos e aviões, dividindo as tarefas a partir de um amplo networking que se estende de dentro dos presídios para o lado de fora. Tem conexões com máfias internacionais, como a dos Balcãs e a italiana ‘Ndrangheta, a principal distribuidora de drogas no mundo. Um dos principais desafios do grupo é lavar e movimentar a enxurrada de dólares que passou a ingressar no país, o que eles fazem com apoio de especialistas em contabilidade e finanças.

Já o modelo de negócio do Comando Vermelho é diferente, flagrantemente danoso para o cotidiano das cidades. Apesar de também atuarem no atacado da droga, eles apostam sobretudo no crime do varejo e no controle armado de áreas pobres de onde vem o faturamento e a autoridade de seus inúmeros representantes locais. Nesses lugares, eles extraem receitas de diversas atividades ilegais, como venda de cigarro pirata, internet, grilagem, venda e aluguel de imóveis, drogas, entre outros ramos, reproduzindo o modelo que aprenderam com as milícias.

A expansão da bandeira do CV por estados do norte e do nordeste acabou produzindo confrontos com grupos rivais locais, muitos deles apoiados pelo PCC ou por outras facções. Nesse mercado, o controle territorial passou a ser disputado para ampliar mercado, lucro e poder, produzindo combates frequentes.

Por depender do controle dos bairros, o modelo do CV exerce o uso ostensivo de pistolas e fuzis, cuja munição chega, em parte, desviada das forças policiais, militares e de donos de clubes de tiro. Já o PCC usa armamentos pesados para atividades específicas, como os grandes roubos que paralisam cidades. Ambos, contudo, negociam esse arsenal no mercado ilegal.

As operações policiais no morro do Rio, que ao longo de mais de quarenta anos não foram capazes sequer de diminuir a força local desses grupos, deixa fazer sentido diante desse quadro nacionalizado e complexo. As diversas áreas controladas pelo CV funcionam de forma horizontal e autônoma. Para continuar a faturar, não dependem da ação pulverizada dos soldados rasos que portam fuzis e vestem bermudas, mas da preservação do fluxo dos negócios dessa rede.

Por mirar no vazio, a ação de 28 de outubro e suas 125 vítimas serviu para expor a fragilidade das instituições políticas e policiais do Rio. A falta de estratégia, a desinteligência. A barbárie dos corpos abandonados na mata para serem retirados por seus familiares escandalizaram o Brasil e o mundo. Uma tragédia que não atingiu em nada essa estrutura horizontal e capilarizada do crime.

A gravidade do quadro aumentou diante do oportunismo das autoridades locais. Entre 2021 e 2022, as polícias do governador Cláudio Castro, que concorria ao seu segundo mandato, fizeram três operações em áreas controladas pelo Comando Vermelho – Jacarezinho, Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão. Somadas, causaram 67 mortos.

Em vez de ser rechaçado pela opinião pública, diante da letalidade e do despropósito de ações fadadas a enxugar gelo, Cláudio Castro acabou sendo eleito no primeiro turno.

O mesmo contexto político estava por trás do massacre atual. A impopularidade do governador ameaça sua eleição para o senado e dificulta a escolha de um nome competitivo para sua sucessão. Era preciso dar um sinal ao eleitor desamparado.

Dessa vez, contudo, o Comando Vermelho reagiu, convocando uma ampla rede de aliados para paralisar a cidade. Repetindo seus métodos erráticos, o governo parecia pedir uma reação brutal do crime, que interditou as vias, paralisou mais de 50 ônibus para usar de barricada em diferentes áreas e atingiu o cotidiano dos moradores de toda a cidade. 

A perda da autoridade do Estado levou o crime a tratar as instituições democráticas de igual para igual, como se fosse um conflito entre facções. Em vez de produzir a ordem desejada, a política do governador, mais parecida com a forma improvisada de criminosos, promove o caos. 

Bruno Paes Manso é jornalista, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP e autor dos livros A Fé e o Fuzil – crime e religião no Brasil do século XXI e A República das Milícias – dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, ambos da editora Todavia

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