Elogio ao estranhamento social

Poesia das cidades está, há séculos, no encontro entre os diferentes, suas chispas, seus estímulos. Seriam as redes, num mundo de tempo escasso, a armadilha que estimula o convívio sem atrito entre os iguais? Um gueto digital que amplia muros?

Foto: Manoel Almeida/IMS
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Por Lisa Bubert, no Revista Noema | Tradução: Rôney Rodrigues

Por fora, o bar não tinha nada de especial. Por dentro, fervilhava com a coleção mais peculiar de pessoas: uma mistura socioeconômica de universitários e yuppies, idosos e casais com os filhos já criados, motociclistas e caubóis, liberais e conservadores, locais e turistas. Era isso que eu mais amava no Crossroads — era o tipo de lugar que aceitava “todo tipo” de gente.

Agora extinto, ele tinha todas as marcas de um grande “dive bar” [bar pequeno, informal e geralmente antigo, caracterizado por sua falta de glamour, bebidas baratas e um ambiente autêntico] do sul: luzes de néon verde e azul; garrafas de cerveja alinhadas nas prateleiras do bar, todas nacionais e baratas; um chão perpetuamente grudento; ventiladores oscilantes presos nas paredes para espantar o calor. O lugar era minúsculo, um único cômodo com um palco elevado a 60 centímetros do chão num canto e o bar ao longo da parede do fundo. Havia um punhado de mesas para duas pessoas espalhadas, mas quase tudo era empurrado para as bordas para dar espaço para dançar e para a farra. Faz dez anos desde que estive lá pela última vez.

Beyonca Deleon, a drag queen que operava a máquina de karaokê, ainda se lembra de sua primeira noite lá. “Olhei para a multidão e pensei: ‘Minha nossa, alguém vai morrer aqui’. Porque tinha motociclistas, caipiras, gays efeminados andando por aí, todo tipo de pessoa”, recorda Deleon, que hoje se identifica como uma mulher trans. Logo, porém, ela percebeu que seu medo era infundado. “Era um bar do tipo ‘venha como você é'”, ela diz. “Ninguém ligava.”

Todos com quem converso e que frequentaram o Crossroads se lembram dele da mesma forma: uma celebração de amor da humanidade cantando a plenos pulmões, um lugar que fazia você acreditar que aquele experimento estadunidense doe caldeirão cultural poderia realmente funcionar.

Infelizmente, o bar não conseguiu resistir à pandemia; ele fechou em 2021. Mas há uma lição em seu legado. Hoje, numa época em que estamos cada vez mais segregados por classe, raça, política e algoritmos, lugares como o Crossroads prestam um serviço sagrado. Eles nos convidam a abraçar algo essencial para o nosso bem-estar coletivo: o atrito social.

Nós, humanos, podemos ter uma tolerância baixa para o atrito social, a tensão que pode surgir quando pessoas de origens, visões de mundo ou valores diferentes interagem. Pode ser estranho, desconfortável e perturbador. Esses sentimentos de ansiedade intergrupal às vezes derivam de coisas como preconceito e medo de rejeição ou julgamento. De forma subconsciente ou não, tendemos a evitar grupos externos e, em vez disso, nos apegamos a pessoas e experiências que nos parecem familiares e seguras. Damos a volta por cima se isso significar que não encontraremos obstáculos.

E assim, por uma variedade de razões, nos dividimos. A maioria dos estadunidenses brancos relata que suas redes sociais centrais incluem apenas outras pessoas brancas, de acordo com um estudo de 2020 do Survey Center on American Life. Da mesma forma, a pesquisa constatou que a maioria das redes sociais centrais dos negros estadunidenses é composta apenas por outros negros. O mesmo padrão é verdadeiro para republicanos e para democratas. Esses tipos de redes sociais homogêneas podem resultar no reforço de crenças partidárias que tratam estereótipos e suposições como fatos.

As mídias sociais exploram esse impulso humano de nos classificarmos por fatias de nossas identidades. Em nosso mundo online, temos acesso a uma gama praticamente ilimitada de pessoas e ideias na palma da nossa mão. E, no entanto, muitas vezes somos atraídos para bolhas de filtro e câmaras de eco que reforçam nossas crenças, vieses e ideais existentes. Agora que podemos acessar o que (e quem) quisermos na palma da mão – o jantar perfeito, os produtos mais finos, um amor ideal – é fácil evitar qualquer coisa que não atenda às nossas preferências explícitas ou que esteja fora da nossa zona de conforto.

Essa otimização tem um custo. Quando podemos escolher com quem nos relacionamos, clique a clique, nos tornamos ainda mais segregados em tribos frágeis, exploradas por ressentimentos que nos afastam. Perdemos a capacidade de atravessar as águas turvas do perdão e do reparo, da responsabilidade e da justiça. E quando somos incapazes de navegar pelo atrito social, perdemos nossa capacidade de funcionar como sociedade e como democracia.

Também estamos segregados em nosso mundo offline, onde a segregação residencial por classe está em ascensão há décadas. Entre 1970 e 2009, a porcentagem de famílias estadunidense vivendo em áreas predominantemente de baixa renda ou ricas mais do que dobrou, com famílias em comunidades marginalizadas experimentando um isolamento residencial desproporcional. (Em Nashville, onde vivo agora, 99% dos imóveis de preço mediano estão financeiramente inacessíveis para famílias negras e hispânicas.)

Cada vez mais, comunidades ricas permanecem ricas enquanto comunidades pobres permanecem pobres, uma estratificação perpetuada pelo que os pesquisadores chamam de “lacuna de oportunidade”. A promessa estadunidense de mobilidade ascendente tornou-se em grande parte um mito para as comunidades mais pobres, perpetuado pela segregação entre as classes.

Essa falta de interação entre classes impacta a maneira como vemos uns aos outros. O contato limitado entre grupos pode gerar desconfiança e contribuir para a polarização num momento em que já estamos ferozmente divididos. Quase metade do eleitorado dos EUA acha que os membros do partido político oposto são “maus”, mostram pesquisas recentes, e um número crescente de estadunidense acredita que a violência política é “necessária” para restaurar os valores estadunidenses.

As pessoas muitas vezes pensam que o trabalho de fortalecer a democracia significa colocar pessoas numa sala para ter conversas profundas e críticas. Mas, de acordo com Bridget Marquis, diretora da organização sem fins lucrativos Reimagining the Civic Commons, isso é um equívoco.

“A infraestrutura cívica – parques, trilhas, bibliotecas, centros comunitários, ruas principais dos bairros e similares – tem o poder único de servir como um terreno comum literal em nossas comunidades para combater tanto a solidão quanto a segregação socioeconômica”, diz ela.

E isso serve para fortalecer nossa vida cívica. Comunidades com maior acesso a espaços socialmente compartilhados, como parques, bibliotecas, museus e centros comunitários, relatam se sentir mais conectadas à sua comunidade, têm mais amigos íntimos em quem confiar e participam mais civicamente na forma de reuniões locais, eventos sociais e voluntariado.

No entanto, reunir fisicamente as pessoas não é suficiente. Os lugares onde as classes socioeconômicas mais se misturam, de acordo com novas pesquisas, são as redes de restaurantes casuais como o Olive Garden. Mas, dentro desses estabelecimentos, os clientes geralmente interagem quase apenas com os de sua própria mesa. O que Marquis descobriu é que, dentro dos espaços comunitários, atividades compartilhadas como cantar e dançar potencializam a criação de laços e a construção de confiança entre diversos grupos socioeconômicos.

É uma ideia com raízes na teoria do contato intergrupal, que sugere que o contato entre grupos distintos serve para reduzir os efeitos do preconceito entre eles, desde que condições apropriadas sejam atendidas. Em outras palavras, sob as circunstâncias certas, pode haver um poder curativo no atrito social.

Essa era a mágica do Crossroads. Ele não tinha uma única identidade e não pertencia a um único grupo. Motociclistas vestidos de couro se misturavam com gays em “crop tops” e spandex. Caubóis dançavam “two-step” com universitários se alguém estivesse cantando uma música country com uma batida boa. Meu amigo, Hutch, arrasava todas as noites com sua versão de “Shoop”, do Salt-N-Pepa. Nós vivíamos pela parte em que ele cantava a letra “Meninas, qual é a minha fraqueza?” e o bar inteiro gritava de volta: “Homens!”

Era realmente o karaokê que tornava o Crossroads tão especial, argumenta seu ex-proprietário, Richard Underwood. “Todo mundo sempre me perguntava se o Crossroads era um bar gay”, ele diz. “Eu sempre dizia que era um bar de karaokê. Sim, eu sou gay, mas é um bar de karaokê.” Underwood agora administra um bar diferente, o Dusty’s, que se tornou outro caldeirão de identidades centrado na música do karaokê.

“Ainda nos misturamos do mesmo jeito”, ele diz. “Tive um show [recentemente] com motociclistas e caubóis, uma mesa de lésbicas e uma mesa de pessoas só tomando cerveja, e todo mundo se dava bem e se divertia.”

O Crossroads era o que é conhecido como um “espaço-abraço”. Os espaços comunitários tendem a se formar em torno de três “E”s, diz Marquis: espaços de escape, espaços de encontro e espaços-abraço [“havens, hangouts and hugs”, no original]. Espaços de escape são áreas protegidas de pertencimento, onde a identidade importa e a exclusividade dessa proteção é o que cria segurança para aqueles dentro do grupo. Espaços de encontro são áreas neutras onde as pessoas podem simplesmente estar, mas podem não interagir. Espaços-abraço são os locais que incentivam a polinização cruzada de identidades e a mistura socioeconômica entre raça, classe e linhas ideológicas.

Comunidades saudáveis precisam de um equilíbrio dos três tipos de espaço, diz Marquis. Mas a classificação algorítmica e outras formas de segregação efetivamente nos empurram para caixas, potencialmente fazendo com que todo espaço com o qual nos identificamos pareça um refúgio, desprovido de atrito social, e todo espaço fora dessa experiência pareça uma ameaça.

Os terceiros espaços – os espaços-abraço – precisam ser fisicamente projetados para a distância conversacional (o esbarrão literal de cotovelos) e precisam incorporar uma programação intencional que crie oportunidades para comunicação e conexão espontâneas e imprevisíveis. O trabalho necessário de superar as divisões sociais para fortalecer a democracia, então, pode ser alcançado não apenas por meio de intervenções políticas, mas talvez dentro do seu bar de karaokê, pista de boliche, biblioteca, transporte público ou igreja local.

Quando penso na igreja da minha infância, a religião não é o que me vem à mente. O que mais me lembro são os hinos, o zumbido atonal de dezenas de vozes de agricultores cantando desafinados, o organista errando notas-chave, mas acertando a maioria, a recitação em grupo do Pai-Nosso antes dos adultos se alinharem para receber a comunhão, o formato das botas enlameadas dos homens aparecendo sob suas calças sociais enquanto se ajoelhavam no altar e o pastor lhes derramava vinho nos lábios de um cálice compartilhado.

Éramos uma pequena congregação numa igreja de madeira de um só cômodo no meio do Texas Central, uma comunidade de criação de gado com casas esparsas e terras abertas. A igreja foi construída na década de 1900 com a chegada dos trilhos de trem, e os mesmos descendentes daquela congregação original (minha família incluída) ainda frequentam hoje. Quando volto para aquela igreja, sou envolvida pela história, pela memória geracional e pela tradição.

Imagino minha igreja de infância sem o canto dos hinos, os rituais da comunhão, os piqueniques, churrascos e orações. Pessoas quietas mantendo-se cada um do seu lado da cerca, talvez desconfiadas dos vizinhos do outro lado do arame farpado. Imagino o Crossroads sem o karaokê e me esforço para sentir a mesma quantidade de amor entre as comunidades distintas. Imagino as pessoas agrupadas e segregadas, olhando nervosamente para a sala antes de decidir que não pertencem, jogando alguns dólares na mesa e indo embora. Ambos seriam lugares mais silenciosos, mais tristes, mais assustadores e incertos. Uma peça integral estaria faltando.

A tecnologia se gaba de uma existência sem atritos, mas o atrito é parte do que faz a vida valer a pena ser vivida. Cada vez que trocamos nosso mundo falho e cheio de atrito por uma experiência mais suave, mais conveniente e mais previsível, estamos corroendo o que nos torna humanos: nossas almas.

Esquecemos que temos almas. O que é compreensível, considerando quanto de nossas vidas passamos interagindo com a tecnologia. Nossas telas não têm alma. O ChatGPT não tem alma, não importa o quanto ele diga que entende nossa frustração. Apelamos para nossos telefones como se fossem amigos, mediadores, mentores e terapeutas, rolando a tela em busca de alguma semelhança de boas notícias, algo para rir, algo que nos faça sentir vistos. Puxamos o feed para baixo para atualizar com os polegares, da mesma forma que puxamos a alavanca de um caça-níqueis. Talvez desta vez seja o jackpot. Talvez desta vez eu veja algo que me faça sentir completo.

Mas o que é uma alma? Como uma alma é diferente de uma consciência? Para mim, uma alma e uma consciência são duas entidades completamente diferentes, a consciência sendo aquela voz interior incômoda do seu dever para com os outros, e a alma sendo aquela voz interior incômoda do dever para com você mesmo. Mas a alma exige que você cuide dos outros, porque cuidar dos outros é como curamos a nós mesmos.

Cuidar dos outros é inconveniente. Não podemos agendar uma catástrofe para coincidir com nossa agenda pessoal. Não podemos colocar um prazo no luto. Não podemos prever com 100% de certeza que sempre diremos a coisa certa na hora certa. Temos que abraçar o atrito da incerteza. Temos que operar com base na fé.

“Existe uma relação horizontal e vertical da nossa vida e fé”, diz o Pastor Nate, o pastor da minha antiga igreja. Ele é um jovem apenas um ano mais velho que eu. Ele veio para nossa igreja há uma década, no final de seus 20 anos. Lembro-me de pensar que ele teria uma trabalheira para lidar com aqueles veteranos, especialmente meu pai – um caubói texano de puro-sangue com uma longa veia teimosa.

Mas o Pastor Nate não teve dificuldade em se entrosar, uma prova de sua capacidade de fazer todos se sentirem bem-vindos, independentemente de suas crenças ou identidade – não muito diferente de Underwood, o colecionador não oficial de almas perdidas no Crossroads e no Dusty’s.

“A relação vertical são as partes da nossa vida vividas em direção a Deus; a horizontal são as partes da nossa vida vividas em direção ao nosso próximo”, diz o Pastor Nate. “Você precisa da vertical para não se decepcionar com a horizontal.”

Quer queiramos admitir ou não, os humanos vivem em um reino físico, emocional e espiritual. Cuidamos prontamente da saúde física e emocional do nosso ser, mas quando se trata da saúde da nossa alma? Nós, que não buscamos comungar de alguma forma com um sentido maior além de nós mesmos, nos encontraremos divagando, isolados e perdidos.

Parei de frequentar a igreja há muito tempo. Embora eu não tenha sentido falta da igreja em si, senti falta da sensação de igreja. O que realmente desejo é a sensação de uma experiência encarnada de comunhão. Estar em espaço físico com outros humanos. Não preciso conhecer todos esses humanos, me identificar com eles ou mesmo concordar com eles, mas preciso me sentir acolhida por eles. Eles precisam estar dispostos a cantar comigo.

Atualmente, encontro essa sensação num “dive bar” chamado Fran’s. Assim como o Crossroads era, o Fran’s é um lugar modesto do tipo venha e seja você mesmo com noites de karaokê descontraídas. Meus amigos e eu chegamos cedo porque, uma vez que a música começa, é impossível conversar. O que é bom, porque o objetivo deste bar não é conversar, é extravasar, gritar e cantar com uma tripulação heterogênea de foliões.

O Fran’s costumava ficar no lado mais interior do East Nashville, mas foi expulso pelos preços para os arredores da Dickerson Pike, uma parte da cidade ainda em fluxo, com condomínios de luxo semi-construídos pairando sobre motéis de diária. Dentro há duas mesas de sinuca com luz baixa, uma mistura de mesas de carta e cadeiras de metal e um balcão comprido com uma mulher (não a Fran) preparando as bebidas. Eles servem apenas garrafas e latas e aceitam apenas dinheiro, sinto muito, querida.

Pego o equivalente a US$ 2,50 em moedas de 25 centavos do meu bolso porque US$ 2,50 te dão uma PBR e US$ 10 neste bar ainda podem me deixar bem bêbada. Os frequentadores assíduos se sentam no canto e importunam a mulher, que os importuna de volta. Eles são uma coleção de homens idosos, brancos, negros, todos com cara de que este bar é a casa deles e que estão felizes por ter companhia.

O karaokê abre oficialmente. Lendo a sala, escolho “Blue”, de LeAnn Rimes. Afinal, estamos em Nashville e este ainda é um bar country – mas não por muito tempo, porque os gays chegaram e estão clamando por Britney e Chappell Roan. As mesas de sinuca enchem; alguns pais millennial mais velhos correm para cantar “Teenage Dirtbag” entre os goles. Minha amiga Yurina canta sua favorita, “Maniac”, enquanto chicoteia o cabelo dramaticamente em círculo e faz o “running man” com grande aclamação. Volto ao palco e canto “Neon Moon”, mantendo minhas raízes country, e os frequentadores assíduos acenam com a cabeça e brindam para mim.

Um deles pega o microfone e a sala enlouquece por ele. Ele tem uns 50 e poucos anos, embora pareça uma década mais velho por causa de uma vida dura. Ele é magro, com os ossos aparecendo sob a camiseta surrada, jeans sujos sustentados por um cinto. Ele canta falando “I Love This Bar”, de Toby Keith, e nem precisa olhar para a tela para ver a letra. Olhos fechados, sorriso eufórico, a mão no coração – a personificação de um homem cantando para seu amor, e todos nós sentimos isso, todos nós torcemos por ele.

É difícil imaginar essa coleção estranha de pessoas se encontrando fora deste bar e sentindo o mesmo tipo de amor que sentimos aqui. Mas depois desta noite, se nos encontrássemos na rua, haveria sorrisos, possivelmente até abraços. Talvez um acordo para nos vermos novamente em breve no microfone. Somos muito melhores quando estamos cantando juntos.

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