A urgência de cuidar de quem cuida

Condições de trabalho cada vez mais precárias empobrecem o cuidado, que deve ser uma força transformadora. Sua reconstrução exige valorizar profissionais da saúde – com redução de jornada, apoio psicológico e melhorias salariais

Foto: Breno Esaki/Secretaria de Saúde do Distrito Federal
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Por Luis de Souza e Souza, autor convidado

“Trabalhar na saúde te ensinou a salvar vidas, menos a sua”. A frase ecoa o esgotamento silencioso de milhares de profissionais que, diariamente, sustentam o sistema de saúde com o corpo e com a alma. No imaginário coletivo, o profissional de saúde é símbolo de abnegação e força. Contudo, por trás do jaleco e da postura resiliente, há histórias de exaustão, ansiedade, depressão e perda de sentido.

A formação em saúde ensina protocolos, técnicas e condutas éticas, mas raramente ensina o autocuidado. Aprender a lidar com o sofrimento alheio, sem espaço para processar o próprio, é uma das marcas da cultura profissional no setor. O cuidado, que deveria ser um ato relacional e humanizador, muitas vezes se transforma em mecanismo de alienação.

Discute-se aqui como a estrutura organizacional, a cultura do heroísmo e a precarização do trabalho em saúde contribuem para o colapso emocional e ético de quem cuida.

O cuidado, na tradição filosófica e ética, é entendido como uma atitude de atenção, responsabilidade e solidariedade para com o outro. O filósofo alemão Martin Heidegger via no “cuidar” uma dimensão constitutiva do ser humano, enquanto o sanitarista brasileiro José Ricardo Ayres o compreende como prática relacional, que articula técnica, ética e afeto.

Contudo, o modo como o cuidado é institucionalizado nas organizações de saúde frequentemente o transforma em trabalho mecânico e exaustivo, mediado por protocolos, metas e indicadores de produtividade. Essa redução do cuidado a uma técnica gera o que Ayres chama de “empobrecimento do encontro clínico”, que é quando o sujeito deixa de ser reconhecido como humano para se tornar um caso, um número, uma tarefa.

O paradoxo do cuidado: entre a vocação e o sacrifício

Nesse contexto, o profissional de saúde passa a viver o paradoxo de cuidar do outro enquanto se desconecta de si. A doação constante, sem reciprocidade simbólica ou reconhecimento institucional, leva ao desgaste físico e psíquico. A ética do cuidado é, então, atravessada pela lógica do sacrifício.

Em 1992, Dejours definiu o sofrimento ético como aquele que emerge quando o trabalhador sabe o que seria o melhor a fazer, mas encontra barreiras que o impedem de agir segundo seus valores. Em hospitais e unidades de saúde sobrecarregadas, o profissional se vê obrigado a atender rapidamente, negar acolhimento, ou omitir gestos de humanidade em nome da eficiência.

Esse descompasso entre o ideal vocacional e a realidade institucional corrói o sentido do trabalho. O sofrimento ético, quando não é nomeado nem compartilhado, transforma-se em sofrimento patogênico: uma dor muda que se converte em fadiga crônica, apatia e burnout.

A invisibilidade do sofrimento do cuidador é reforçada pela cultura do heroísmo. Espera-se que o profissional seja incansável, resiliente, forte. Admitir o cansaço ou o medo é visto como fraqueza. Essa cultura produz o silenciamento da dor e impede a construção de redes de apoio.

Burnout e o colapso emocional da linha de frente

A síndrome de burnout foi reconhecida pela OMS (2019) como um fenômeno ocupacional resultante de estresse crônico não administrado. Entre profissionais de saúde, ela se manifesta por exaustão emocional, despersonalização e perda de realização profissional.

Pesquisas brasileiras mostram prevalências de burnout entre 25% e 60% em categorias como enfermagem e medicina (Lopes et al., 2019; Silva et al., 2021). Durante a pandemia de COVID-19, a sobrecarga e o medo ampliaram o adoecimento psíquico. Médicos relataram insônia, ataques de pânico e sentimentos de impotência; enfermeiros desenvolveram quadros depressivos e ideação suicida (Souza et al., 2022).

A lógica produtivista do trabalho em saúde (metas, controle de tempo, precarização) reforça esse colapso. O tempo do cuidado humano não cabe no tempo da gestão neoliberal. O trabalhador se vê obrigado a atender 40 pacientes por turno, a preencher planilhas em vez de conversar, a suportar agressões e perdas sem espaço de escuta.

O corpo que adoece: sofrimento, gênero e desigualdade

O adoecimento dos trabalhadores da saúde não é neutro: tem gênero, raça e classe. Mulheres representam mais de 70% da força de trabalho em saúde no Brasil, segundo o IBGE de 2023, concentradas em funções de cuidado direto, como enfermagem, limpeza e acolhimento.

Essas funções são historicamente desvalorizadas, associadas ao “instinto feminino” e à ideia de vocação — o que legitima baixos salários e longas jornadas. Assim, o cuidado é atravessado por desigualdades estruturais.

As trabalhadoras vivem o duplo fardo do cuidado profissional e doméstico, muitas vezes sem apoio. A precarização é mais intensa entre mulheres negras, que enfrentam jornadas mais longas e menor reconhecimento (Oliveira, 2022).

O corpo cuidador, nesse contexto, se torna território de exaustão. A saúde de quem cuida é sacrificada no altar da moral do dever.

Apesar do cenário adverso, o cuidado também pode ser um ato de resistência. Para Foucault (1988), o “cuidado de si” é uma prática ética e política: conhecer-se, escutar-se e cuidar do próprio corpo são gestos de liberdade. No campo da saúde coletiva, cuidar de si é um modo de reapropriar-se do sentido do trabalho e de reconstituir vínculos de solidariedade.

Essa reconstrução passa por três dimensões interdependentes: 1) Subjetiva: o profissional precisa legitimar suas emoções, reconhecer seus limites e abandonar o ideal de perfeição. A escuta terapêutica, o descanso e o lazer não são luxos, mas formas de autopreservação; 2) Coletiva: a saúde mental não se reconstrói isoladamente. Grupos de escuta, rodas de conversa e espaços de apoio entre equipes podem transformar o sofrimento em potência compartilhada; 3) Institucional e política: é urgente que políticas públicas de saúde do trabalhador sejam efetivamente implementadas — com redução de jornada, apoio psicológico e valorização salarial. A humanização da gestão é parte do cuidado.

Cuidar de si, portanto, não é um gesto individualista, mas uma ação política contra a lógica que transforma o trabalhador em recurso descartável.

Daí, surgem as políticas públicas e o desafio da saúde do trabalhador. O Programa Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSST) e a Política Nacional de Humanização (PNH) são marcos importantes, mas ainda insuficientemente implementados. Falta transversalidade e continuidade entre os níveis de gestão.

A literatura (Minayo-Gomez & Thedim-Costa, 1997; Paim, 2006) mostra que o modelo biomédico de gestão do trabalho continua a prevalecer, priorizando metas e resultados em detrimento do bem-estar do trabalhador.

É necessário reconhecer que a saúde dos profissionais é parte da qualidade do cuidado. Um profissional exausto não pode cuidar com empatia; um sistema que adoece seus trabalhadores é estruturalmente insustentável.

Propor políticas de cuidado ao cuidador implica repensar a própria ideia de saúde como bem coletivo, e não como mercadoria ou indicador de produtividade.

Trabalhar na saúde te ensinou a salvar vidas — mas o sistema, tal como está, te impede de salvar a sua. Esse paradoxo traduz a crise ética e existencial que atravessa o trabalho em saúde. Entre o ideal do cuidado e a realidade da precarização, o trabalhador se vê dividido, adoecido e, muitas vezes, silenciado.

O cuidado, no entanto, continua sendo força transformadora. É possível reconstruí-lo a partir do reconhecimento da vulnerabilidade como parte do humano. Salvar vidas deve incluir salvar quem salva — cuidar de quem cuida. O futuro da saúde depende de romper o ciclo do sacrifício e instaurar o cuidado como prática recíproca, afetiva e política.

Reaprender a cuidar de si é, talvez, o gesto mais radical de resistência.


REFERÊNCIAS

AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, v. 13, n. 3, p. 16–29, 2004.

DEJOURS, C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 5. ed. São Paulo: Cortez, 1992.

FOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes, 1927.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: trabalho e rendimento na área da saúde. Rio de Janeiro, 2023.

LOPES, A. P. et al. Síndrome de burnout em profissionais de saúde: revisão integrativa. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 72, n. 1, p. 293–301, 2019.

MINAYO-GOMEZ, C.; THEDIM-COSTA, S. M. F. A construção do campo da saúde do trabalhador: percurso e dilemas. Cadernos de Saúde Pública, v. 13, n. 2, p. 21–32, 1997.

OLIVEIRA, A. L. Trabalho, gênero e cuidado na saúde: desigualdades e resistências. São Paulo: Hucitec, 2022.

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Burn-out an occupational phenomenon: International Classification of Diseases (ICD-11). Genebra: OMS, 2019.

PAIM, J. S. Modelos de atenção e vigilância da saúde: questões contemporâneas. Salvador: EDUFBA, 2006.

SILVA, F. R. et al. Burnout e saúde mental em profissionais de enfermagem durante a pandemia de COVID-19. Acta Paulista de Enfermagem, v. 34, eAPE00581, 2021.SOUZA, M. L. et al. Sofrimento psíquico e estratégias de enfrentamento entre profissionais da saúde na pandemia. Revista de Saúde Pública, v. 56, n. 22, 2022.

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