Como Israel sabota o cessar-fogo
Tel Aviv acumula precedentes de que pode retomar a guerra a qualquer momento. Por que não insuflar uma guerra civil em Gaza? Quais as táticas de Netanyahu para armar grupos, desestabilizar população e saquear comboios humanitários
Publicado 27/10/2025 às 16:36

Por Joan Cabasés Vega, com tradução na Revista Opera
As autoridades israelenses lideradas por Benjamin Netanyahu demonstraram, durante os primeiros dias do cessar-fogo em Gaza, que têm sempre à disposição uma saída para retomar a ofensiva caso a evolução da trégua não lhes satisfaça. No domingo (19), depois que um incidente sobre o qual há diferentes versões terminou com a morte de dois soldados israelenses em Rafah, o governo sionista ordenou dezenas de bombardeios sobre o enclave palestino e um bloqueio medieval à ajuda humanitária.
Horas depois, anunciou que encerrava os ataques e que voltava a aplicar os termos da trégua, mas a manobra lembrou aos palestinos que o exército israelense também pode encerrar a trégua por conta própria, depois de tê-la abafada nos dias anteriores, espalhando o caos no enclave por meio de seus aliados, sejam eles milícias palestinas na Faixa que não sejam pró-Hamas ou os EUA.
Derrubar a trégua de forma direta
Na manhã de domingo, depois que o exército israelense denunciou que combatentes palestinos haviam lançado um ataque com “mísseis antitanque” contra seus soldados, que resultou na morte de dois deles, Israel retomou sua maquinaria de guerra. Primeiro bombardeou Rafah, onde as tropas afirmavam ter ocorrido essa “violação flagrante” do cessar-fogo, e em seguida espalhou os bombardeios de norte a sul do enclave, numa escalada que resultou no anúncio do corte do fluxo humanitário.
Ao longo do caminho, o suposto descumprimento da trégua por parte do Hamas ofereceu a alguns líderes israelenses a oportunidade de expressar seu desejo de acabar com o cessar-fogo. O primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, divulgou um comunicado que não fazia alusão à existência de um cessar-fogo, no qual advertia que o Hamas continuava sendo “a maior ameaça” para o povo israelense, acrescentando que Israel agiria “com força” para impedir sua sobrevivência. O ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, um declarado supremacista, exigiu que o exército retomasse os combates “em grande escala” em Gaza. “A falsa crença de que o Hamas cumprirá o acordo de cessar-fogo é perigosa para a nossa segurança”, afirmou.
Após algumas horas, o discurso israelense começou a apresentar fissuras. Informantes independentes, como o analista palestino Younis Tirawi, ou jornalistas da mídia árabe ou anglo-saxônica – Al Jazeera ou Drop Site News – começaram a difundir a teoria de que o Hamas não tinha “nada a ver” com o incidente em Rafah. Segundo essa versão, a morte dos soldados estaria relacionada com a passagem de um bulldozer israelense sobre munições não detonadas que estavam há tempos naquele local, e não com um suposto aparecimento de militantes do Hamas saindo de túneis, como havia afirmado Israel.
Alguns desses jornalistas afirmaram inclusive que a Casa Branca crê nessa versão. Em público, no entanto, o governo de Donald Trump se aproxima da posição israelense e argumenta que o incidente não tem relação com a liderança do Hamas, sugerindo que a agressão foi realizada por milicianos rebeldes que desobedeceram à trégua. “O Hamas agora é composto por 40 células fragmentadas”, disse o vice-presidente JD Vance na madrugada de segunda-feira (20). De qualquer forma, o incidente demonstra a constante busca israelense por pretextos que abram caminho para retomar a ofensiva.
De volta aos mortos
A maneira como o governo israelense instrumentaliza a devolução dos corpos dos reféns é outro exemplo dessa busca por desculpas. O acordo de cessar-fogo obriga o Hamas a libertar os 20 reféns que mantinha vivos — algo que já fez no início da trégua — e também a devolver os 28 que morreram desde outubro de 2023. Embora o texto acordado contemple a possibilidade do grupo precisar de um tempo indeterminado para encontrar alguns restos mortais em meio a uma Gaza devastada, os líderes israelenses o acusam de ter corpos que poderiam ter sido devolvidos imediatamente. Na quinta-feira, Netanyahu sugeriu que Israel poderia retomar a guerra por esse motivo: “A luta não acabou. Estamos decididos a garantir o retorno de todos os nossos reféns”, disse ele, sem dar detalhes sobre como pretende fazer isso caso o Hamas não os encontre. Jared Kushner, genro e assessor de Trump, declarou à imprensa que acredita que o Hamas está agindo de boa fé.
Para além dos pretextos, Israel tensiona o cessar-fogo com ações no terreno, até tornar sua sobrevivência improvável. O exército sionista matou 97 palestinos em pleno cessar-fogo desde o início da trégua em 11 de outubro, de acordo com o Gabinete de Imprensa do Governo de Gaza. Até o surto de violência de domingo (19), em que Israel matou 44 habitantes de Gaza em dezenas de bombardeios, as tropas israelenses haviam assassinado dezenas de pessoas em incidentes relacionados à aproximação da imaginária “linha amarela”, que determina o território que o acordo de trégua concede a Israel durante a primeira fase da trégua.
Em um desses ataques, soldados bombardearam, a leste da Cidade de Gaza, um carro da marca Peugeot. No veículo viajavam 11 membros da família Sha’ban, que se aproximaram do limite da zona controlada pelos israelenses. Todos morreram. Seis deles eram crianças entre 5 e 13 anos de idade, e outras duas eram mulheres.
Outra ferramenta que o Estado sionista tem para complicar as coisas é a intervenção na ação humanitária. As autoridades israelenses mantiveram controle sobre o fluxo humanitário durante toda a trégua, limitando-o à metade do acordado na trégua ou, em todo caso, impedindo que o acesso de suprimentos ao enclave fosse maciço, como exigem os especialistas em um território que a ONU declarou em estado de fome em agosto.
Os dois milhões de palestinos no enclave — dos quais metade são crianças e apenas algumas dezenas de milhares são membros do Hamas — sabem que Israel retomará a guerra sem pretextos, se necessário. O precedente de 18 de março, quando o exército rompeu a trégua que existia desde janeiro e que deveria evoluir para uma paz duradoura, assombra uma população que não ousa olhar para o futuro com confiança. Naquele dia, Israel massacrou mais de 400 pessoas em uma ofensiva que começou do nada, enquanto dormiam de madrugada.
Desestabilizar por meio da ação dos aliados
Historicamente, as autoridades israelenses promovem o surgimento de grupos armados nos territórios fronteiriços com Israel para provocar sua desestabilização e até mesmo o conflito civil. A Gaza de hoje não é uma exceção. Desde os primeiros momentos da trégua, ficou claro que a existência de grupos aliados a Israel e seu impasse com o Hamas poderiam desgastar o cessar-fogo até comprometer sua viabilidade.
Os primeiros sinais de alerta surgiram no segundo dia do cessar-fogo. Por um lado, depois que a ofensiva israelense matou quase 200 jornalistas no enclave, em 12 de outubro, um jornalista de Gaza, Saleh Aljafarawi, foi morto por palestinos. O Comitê de Proteção aos Jornalistas explica que o repórter morreu na Cidade de Gaza quando eclodiram combates entre o Hamas, a milícia de Yasser Abu Shabab e o clã Doghmush. “Ele estava documentando a destruição e homens armados que cooperam com Israel atiraram nele”, denunciou seu pai, Amer.
Por outro lado, o Hamas começou a aproveitar a retirada israelense de metade do enclave para restabelecer seu domínio. Essa demonstração de poder incluiu, no mesmo dia, a execução extrajudicial de vários membros do clã Doghmush, que o Hamas acusa de colaborar com Israel.
Horas depois, Trump reconheceu à imprensa que essas execuções não lhe importavam “muito”, já que as gangues atacadas eram “muito más”, e até admitiu que os EUA haviam dado luz verde ao Hamas para assumir o controle do território “por um tempo”.
Israel arma e protege os milicianos leais a Abu Shabab. Em junho, Netanyahu não negou que estava fortalecendo esse grupo como um método para supostamente enfraquecer o Hamas. A milícia conseguiu tomar um território de 50 hectares em uma zona sob controle do exército israelense a apenas cinco quilômetros de uma das passagens fronteiriças para Israel, perto da rota por onde circula a ajuda humanitária.
Lá, enquanto o resto do enclave caía no radar da fome, os milicianos de Abu Shabab ofereciam barracas e comida às famílias de Gaza que quisessem se mudar para essa Gaza “livre do Hamas”. Um relatório interno da ONU acessado pela Sky News afirma que a milícia é o maior responsável pelos saques contra os comboios humanitários, dos quais Israel acusa o Hamas. Atualmente, 1.500 pessoas residem na zona. O grupo cresce em todo o território e aspira disputar o controle do enclave, o que submeteria o território a um conflito civil.
Os Doghmush são o outro clã que se destaca em Gaza. Embora eles neguem, há suspeitas de que, durante o conflito, tenham negociado com Israel uma possível governança em que os israelenses ocupariam o território enquanto alguns clãs se encarregariam dos assuntos cotidianos de Gaza.
A presença de grupos armados em Gaza dependentes de Israel oferece ao governo israelense a possibilidade de aumentar o volume da violência no enclave quando for conveniente. Também de realizar ações – como assaltos a caminhões humanitários – que podem ser apresentadas como violações da trégua por parte do Hamas e como pretextos para retomar a ofensiva.
Longe da lama de Gaza, Netanyahu também demonstrou sua capacidade de arrastar seu aliado americano para suas posições. A última mudança radical de postura por parte da Casa Branca é uma prova disso. Quatro dias depois de Trump garantir que não se importava com as execuções realizadas pelo Hamas, Washington emitiu um comunicado em que descrevia esse tipo de incidente como uma violação da trégua e até sugeria o reaparecimento de uma ofensiva em grande escala se o Hamas voltasse a atacar “o povo de Gaza”. A paz, por enquanto, continua parecendo distante.
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