Jaime Breilh: Saúde não rima com Capital
Um grande epidemiologista latino-americano sustenta: Ciências estão cegas por um cartesianismo que só permite enxergar fragmentos da realidade. Pandemia foi a prova dos nove. Mas para reagir, é preciso superar as lógicas do lucro e do individualismo
Publicado 27/10/2025 às 10:59 - Atualizado 27/10/2025 às 13:31

Entrevista a Gabriela Leite e Gabriel Brito
Pensar o mundo em uma nova chave crítica. Essa é a grande mensagem do equatoriano Jaime Breilh, médico e referência histórica do campo da Saúde Coletiva. Em sua passagem pelo Brasil, este pensador da medicina social apresentou seus estudos epidemiológicos a partir de uma perspectiva crítica, o que significa entender a saúde como processo social — muito mais amplo do que o mero direito a serviços.
Segundo suas reflexões, ao se deixarem dominar pela lógica reprodutiva capitalista, as ciências se tornaram convenientemente cartesianas. Aparentemente centradas numa lógica de eficiência e praticidade, na realidade os diversos campos de conhecimentos tornam-se compartimentados, o que Breilh considera uma alienação proposital.
“A ciência cartesiana está acostumada a trabalhar na ponta do iceberg. O que é saúde para essa ciência cartesiana? É tratar as pessoas quando ficam doentes. Mas o processo de adoecimento não vem ao acaso. Tem uma determinação social, atinge mais duramente certos grupos e classes sociais”, explicou em entrevista ao Outra Saúde.
Sua passagem pelo Brasil se deveu à participação no Simcol 2025, o Simpósio Discente da Pós-Graduação em Saúde Coletiva, promovido na Faculdade de Medicina da USP. Na ocasião, ele, que foi reitor da Universidade Andina Simon Bolívar, aproveitou para lançar seu livro Epidemiologia crítica e a saúde dos povos – ciência ética e corajosa em uma civilização doentia.
“Se queremos entender as doenças que vêm por toxicidade, não podemos só receber pacientes e resolver tudo no hospital. Se sabemos que na agroindústria há um uso maciço de químicos, os trabalhadores estão expostos, há um uso descomunal de agrotóxicos, que estão nos alimentos e chegam ao consumidor urbano, devemos agir em outras frentes”, disse, ao explicar a forma de raciocínio crítico que propõe.

Sua obra é uma crítica implacável do capitalismo, metabolismo social que tem destruído culturas e saberes por todo o mundo, o que significa o que muitos chamam de “epistemicídio”. Isto é, mata-se formas de pensar não submissas ao lucro, o que atinge fortemente os campos científicos.
Breilh convoca a universidade a retomar seu compromisso ético em favor da humanidade e, sem cerimônia, uma politização da atividade científica. Para ele, tal atitude é urgente frente a um mundo que derrete a olhos vistos enquanto aliena e afasta as pessoas da ação.
“A ciência cartesiana faz um bom negócio. Ela considera que deve estudar as pessoas doentes. Faz modelos matemáticos muito sofisticados sobre a ponta do iceberg. E diz quais medicamentos e tratamentos levam à cura. Prescreve uma forma de prevenção, mas há uma manipulação desta prevenção. Até as vacinas seguem tal lógica. A pandemia foi uma escandalosa mostra”, refletiu.
Em sua visão, o capitalismo a partir da centralidade das big techs e apropriação de praticamente todo o conhecimento gerado pela humanidade entram num novo estágio de agressividade. Mesmo sob boas intenções, nem estados e governos conseguem se defender de sua força, menos ainda pessoas comuns afundadas na rotina imposta pelo sistema socioeconômico.
“Há uma força que nos induz a um individualismo muito forte. A juventude não quer nem ter filhos agora. Pode ter dois cachorros, três gatos, mas não pode ter um filho. Por quê? É muita responsabilidade, que não se quer assumir. Isso é um signo do tempo. Preocupante. Porque indica uma noção de que quem tem filhos não pode ter uma boa vida. O princípio é: ‘tenho que fazer minha carreira’. Até os relacionamentos afetivos se tornaram reflexo disso”, lamentou.
Jaime Breilh faz um chamado à ação das comunidades científicas, pois simplesmente “não há mais sentido em viver assim”.
Seu livro reivindica a Epidemiologia como uma ciência crítica. Como dito na própria obra, aplica uma ideia, trazida ao Brasil por Naomar Almeida Filho, segundo a qual este campo do saber passou, após a pandemia, “de ciência tímida à ciência crítica”. O que isso significa em termos práticos?
É um grande dilema, pois pressiona as universidades, o pensamento e cria um modelo de ensino que capacita as juventudes para um pensamento do poder, que é linear. A epidemiologia é uma ciência valente, uma universidade deve enfrentar a realidade complexa e definir com soberania o que são as necessidades de uma população. E precisamos da universidade em suas diferentes especialidades para cumprir o papel que lhe foi dado em pelas sociedades.
O problema é que até os organismos de cooperação internacional estão num outro tempo histórico; foram criados na década dos 40 do século passado, que representavam Estados e governos. Este tempo acabou. Porque os pressupostos das entidades de cooperação internacional estão completamente controlados por grandes empresas.
Mesmo onde há filantropia, não é ingênua. É uma filantropia que busca condicionar tudo, inclusive as universidades, os jornais, as publicações. Ela define o que se apoia, não se apoia, se proíbe ou persegue.
Outra ideia fortemente defendida por você diz respeito aos limites da “ciência cartesiana” e suas conclusões lógicas que ignorariam condições históricas em seus objetos e locais de aplicação. Como superar essa ciência cartesiana, chamada explicitamente de “bolha” em sua elaboração?
Estamos nadando contra a corrente. Porque todos os impulsos econômicos estão indo em outra direção. Assim, a ciência cartesiana está acostumada a trabalhar na ponta do iceberg. O que é saúde para essa ciência cartesiana? É tratar as pessoas quando ficam doentes. Mas o processo de adoecimento não vem ao acaso. Tem uma determinação social, atinge mais duramente certos grupos e classes sociais.
Dessa forma, vejo que a ciência cartesiana faz um bom negócio. Ela considera que deve estudar as pessoas doentes. Faz modelos matemáticos muito sofisticados sobre a ponta do iceberg. E diz quais medicamentos e tratamentos levam à cura. Prescreve uma forma de prevenção, mas há uma manipulação desta prevenção.
Até as vacinas seguem tal lógica. A pandemia foi uma escandalosa mostra. A crise sanitária acabou por se tornar o grande negócio das vacinas e dos antivirais, em lugar de uma inversão integral de tudo que deveria ser feito para se evitar os contágios. Ou se evitar as próximas pandemias.
Como um processo sociológico, ou social, é uma luta que reflete a pressão de interesses muito fortes. Agora, intensifica-se tal lógica com a entrada em cena da inteligência artificial, da saúde digital e cibernética. A ameaça ficou ainda maior. Porque Big Data significa também uma grande pressão e capacidade de definir a realidade. E quem são os donos dessa informação? A população, os nossos países?
Nem mesmo nossos governos controlam isso. Os governos têm de defender-se, inclusive um país grande como o Brasil, que, por sorte, tem um governo que já colocou algumas condições. Mas isso não está acontecendo no resto do mundo e mesmo o Brasil não pode lidar com toda a enorme pressão. É uma etapa da humanidade muito complexa.
No entanto, cabe ponderar que no discurso cotidiano de governos (mesmo progressistas) e da cidadania comum, o direito à saúde aparece como direito a serviços de saúde. Além disso, não podemos ignorar que seus resultados são mais rapidamente observáveis, o que influencia toda a agenda política e administrativa do setor. Como atrelar a discussão aqui posta aos temas mais imediatos desta área da vida social?
Nós precisamos entender as razões fundamentais, definir o espaço e o território da ação e da gestão. A cura é importante. Os hospitais são fundamentais. Tudo o que se faz nos centros de saúde e no SUS é absolutamente importante. Mas não é tudo. Por exemplo, se queremos entender as doenças que vêm por toxicidade, não podemos só receber pacientes e resolver tudo no hospital. Se sabemos que na agroindústria há um uso massivo de químicos, os trabalhadores estão expostos, há um uso descomunal de agrotóxicos, que estão nos alimentos e chegam ao consumidor urbano, devemos agir em outras frentes. Isto é um exemplo de determinação social da saúde.
Mas como agimos? Tratamos como assunto de um ministério, seja o Saúde, da Agricultura ou do Meio Ambiente. Ou seja, não existe, e nunca existiu, uma política clara e integral de saúde, pois esta ainda é pensada em termos de hospitais, clínicas, terapêutica, tratamento… Fica-se preso à lógica dos negócios, tanto na área que vende os alimentos como nas que vendem os remédios e demais serviços de tratamentos de saúde.
Por exemplo, fizemos um estudo em uma zona produtora de bananas no Equador, o maior produtor mundial desta fruta. Podemos produzir bananas dentro de um modelo agroecológico ou com uso intensivo de venenos – algo muitas vezes imposto ao produtor, diga-se. Observamos as coisas e fizemos descobertas.
Quantas bananas produz uma unidade agroecológica e uma grande empresa exportadora? Digamos que uma produzia 20 caixas de banana por hectare ao mês, e a outra 60. A segunda é vista como superior. Mas encheu os ecossistemas de venenos, que atingem o ser humano. E quem paga esses danos? Se fazemos uma conta das externalidades de ambos os modelos produtivos, vemos que o modelo agroecológico, que produz quantidade menor, é superior. Mas não há esse parâmetro. Há uma narrativa de que temos de ser produtivos, competir, sempre sob o argumento de que o lucro de poucos é o bem do próprio país.
Temos de reconstruir a lógica de como se constroem e se pensam as políticas, tanto no Estado, no âmbito público, como nas universidades, quando definem seus programas, suas cátedras, suas disciplinas e o que fazem com o conhecimento ali gerado.
O que é Saúde Coletiva neste século 21, com a interação de diversas crises, em especial a climática? É possível falar em Saúde Coletiva sem explicitamente colocar o capitalismo como objeto central de sua crítica?
Sim, o capitalismo é o nome da sociedade em que vivemos. É capitalismo por quê? Porque a reprodução social do Brasil ou do Equador ou de qualquer país capitalista se faz sob a acumulação de capital, que define tudo. Da economia à cultura, define tudo.
Portanto, o capitalismo atual é muito agressivo, nem é só neoliberal, é um erro chamá-lo atualmente de neoliberalismo, como se estivéssemos no século anterior. Neste momento estamos falando de um capitalismo muito agressivo, acelerado, altamente tecnológico, em associação com um grupo de donos de todas as empresas, das gigantes que controlam o Big Data.
Aqui, Big Data significa o conhecimento, praticamente toda a informação da humanidade, apropriada como serviço por alguns que fazem trilhões de dólares. Esse é o capitalismo atual, que cria e reproduz todos os dias desigualdade, mais problemas, mais concentração e, assim, mais exclusão e migração. O mundo está enlouquecido com a migração. Já não sabe o que fazer com o fenômeno. Mas a migração é gerada pelo próprio sistema. É uma sociedade muito violenta, muito injusta e cada dia pior.
É aqui que entra a “mudança epistemológica” que você defende?
As pessoas que não estudam isso não se dão conta de como podem ir ao shopping center, jogar tênis ou fazer suas aulas. Não refletem porque seguem indo ao shopping, onde estão todos os produtos que compram. Só querem ir ao Starbucks e pegar café. É o mundo dito normal. Mas está caindo aos pedaços. E aqueles que estudam a problemática se dão conta.
Por isso dizemos que temos que ser valentes para parar tamanha loucura. Isso é consciência. E as universidades têm de ajudar os jovens. Sempre foi dito que a juventude é a esperança dos povos, porque dela virão as novas ideias. Tudo bem. Mas o que acontece com a cultura hegemônica da juventude? Há uma força que nos induz a um individualismo muito forte. A juventude não quer nem ter filhos agora. Pode ter dois cachorros, três gatos, mas não pode ter um filho. Por quê? É muita responsabilidade, que não se quer assumir. Isso é um signo do tempo. Preocupante. Porque indica uma noção de que quem tem filhos não pode ter uma boa vida. O princípio é: “tenho que fazer minha carreira”.
Até os relacionamentos afetivos se tornaram reflexo disso. “Você tem sua vida e eu a minha. Eu tenho meus negócios, você os seus. É o seu mundo, é o meu. Quando quisermos, damos um beijo, fazemos algo bonito, uma viagem. Se não, tchau”. Quando eu penso nisso, dentro de minha perspectiva de vida, digo: que pena.
Perdemos uma parte enorme e grandiosa da vida e a humanidade entra em crise. Porque a juventude, ao assimilar esta maneira de viver, estará apenas a serviço de empresas. Não há vida pública, ficam todos no teletrabalho, ganha-se o dinheiro, mas não se vê o mundo. Essa será nossa cultura?
Que papel a saúde coletiva pode desempenhar neste cenário?
O papel é estudar o que está acontecendo, investigar, tentar promover consciência e induzir a juventude a uma mudança. Quando as autoridades de uma instituição educativa têm consciência e geram um movimento interno, a juventude capta, porque existe tal sensibilidade, um princípio ético (que depois se perde dentro da lógica de mundo aqui criticada).
Existem várias possibilidades de se fazer a juventude aprender a gostar e amar seu país, seu lugar no mundo. Por que ainda pensamos que o melhor está no Norte? Isso para uma cultura, um país, uma sociedade, é terrível. Prevalece a ideia de uma dependência geral, cultural, política etc. Assim, ditam de fora o que devemos fazer. Não há mais sentido em viver assim.
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