Mussolini: atual e perturbadora

Eletrizante e repleta de referências artísticas, série dirigida por Joe Wright é, além de tudo, de enorme relevância política. Retrata a complacência dos burgueses com o fascismo, a ruína da democracia liberal e a necessidade, nestas circunstâncias, de alternativas à esquerda

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Dirigida pelo britânico Joe Wright (também responsável por Desejo e Reparação e O Destino de uma Nação), a série televisiva Mussolini: o filho do século retrata a ascensão do ditador italiano nos anos 1920. Inspira-se na obra homônima do escritor Antonio Scurati. Destaca a ruína de uma  frágil democracia liberal dos anos 1920.

Assim como no livro, a séria adota o ponto de vista de Mussolini, desnudando a subjetividade do ditador e aproximando-o do espectador. Faz referência a diversos gêneros, estilos e diretores. Em alguns momentos, temos a sensação de estarmos diante de Ricardo III de Shakespeare, principalmente quando a personagem se vira para a câmara e conversa conosco. Outras cenas nos lembram o cinema soviético de Serguei Eisenstein, com montagens eletrizantes em preto e branco. Há também referências ao futurismo e sua ode ao maquinismo. As atuações são impecáveis, tendo o ator italiano Luca Marinelli no papel do Duce.

A série é uma pancada sobre nós! Saímos angustiados e atormentados com as cenas de violência e de excrescência, mas sobretudo por evidenciar a sua atualidade. Apesar disso, o diretor não estetizou a violência, o que nos impede de apreciá-la. Também teve o cuidado de não transformar Mussolini em herói ou mesmo anti-herói, recurso comum das narrativas hollywoodianas que nos faz torcer pelo protagonista e nos retém sobre a obra. Ao não mistificar o líder fascista, evidenciando suas falhas, limitações políticas e intelectuais e seu oportunismo, mostra-nos uma figura patética, violenta e disposta a empregar qualquer meio para atingir os seus objetivos. Desta forma, é impossível ter empatia por ele.

Logo no início do primeiro episódio, Mussolini se vira para a câmara e anuncia: “Olhe ao seu redor, nós estamos entre vocês”. É o prenúncio de que a série não é uma simples reconstrução de fatos do passado, mas um ensaio audiovisual sobre questões políticas do presente. O escritor italiano assim explica a técnica empregada nos livros e na série: “essa abordagem subjetiva visa lembrar o quanto o impulso fascista, longe de estar morto, persiste até hoje, sob a forma do populismo nacionalista”[i]. Além disso, é didaticamente uma peça antifascista e uma arma de reflexão importante. Por exemplo, retrata claramente as traições e as vacilações das classes dominantes e das forças políticas conservadoras italianas diante da ascensão do ditador. Fica claro que ele poderia ter sido impedido, se não fosse subestimado. Também demonstra-se que houve uma opção das elites pelo fascismo como forma de conter as transformações sociais exigidas pelas classes trabalhadoras e populares, por meio de seus partidos progressistas e de esquerda. Assim, a burguesia renuncia à democracia liberal e põe em seu lugar uma ditadura fascista para exterminar qualquer possibilidade de mudança social.

A produção, que se desenvolve em oito episódios, é extremamente atual. Infelizmente, no Brasil, está restrita aos assinantes do Mubi, um dos poucos streamings que aceitou reproduzi-la, considerada controversa por outros. Como afirmou o diretor, “que tempos vivemos em que o fascismo é considerado controverso!”

Notas


[i] Ver entrevista de Antonio Scurati em https://www.lemonde.fr/culture/article/2024/09/07/antonio-scurati-auteur-de-m-l-enfant-du-siecle-a-la-mostra-les-regles-du-debat-intellectuel-sont-annihilees-en-italie_6306609_3246.html?search-type=classic&ise_click_rank=2

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