São Paulo revive Vladimir Herzog
Há 50 anos, oito mil pessoas se reuniram na Sé em memória do jornalista, assassinado pela ditadura. No próximo dia 25, cerimônia será recriada. Vlado, também professor, receberá título por marcar gerações de estudantes e futuros profissionais
Publicado 22/10/2025 às 18:41

Por Leila Kiyomura, no Jornal da USP
Há 50 anos, cerca de oito mil pessoas se reuniram na Praça da Sé para a cerimônia do ato inter-religioso do sétimo dia do assassinato do jornalista e professor Vladimir Herzog (1937-1975), morto sob tortura nas dependências do DOI-Codi, episódio que causou revolta nacional. O ato na Catedral da Sé ecoou por toda a praça. Vibrou por todo o País.
Na época, o jornalista Audálio Dantas (Anadia, 8 de julho de 1929 – São Paulo, 30 de maio de 2018) estava assumindo a presidência do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo e foi ele um dos primeiros a denunciar que Herzog não se suicidou. Foi cruelmente assassinado.
Dantas foi um dos organizadores do ato inter-religioso. Nas redações dos jornais e revistas de São Paulo, grupos de jornalistas se mobilizaram para presenciar a cerimônia. Mesmo diante da ameaça dos policiais armados por toda a praça e cidade.
O jornalista Luiz Roberto Serrano, coordenador editorial do Jornal da USP, lembra: “A redação da Gazeta Mercantil, onde atuava como repórter, compareceu em peso à cerimônia na catedral, depois de receber recomendações de cuidado do diretor de redação, Roberto Müller. Saindo da igreja pelas portas laterais, depois da cerimônia, era possível ver policiais com máquinas fotográficas registrando quem compareceu”.
Serrano, que na época tinha 28 anos, comenta: “A cerimônia religiosa ecumênica, dirigida pelo cardeal Dom Paulo Evaristo Arns na Catedral da Sé, simbolizou a indignação da sociedade civil paulista contra o crime e a situação política em geral. No dia de sua realização, as principais vias de acesso ao Centro de São Paulo amanheceram com carros ‘quebrados’, que dificultavam o trânsito já naturalmente carregado”.
A jornalista e professora da Escola de Comunicações e Artes, Cremilda Medina, lembra: “O manifesto, que correu pelas redações, chegou a mim, no jornal O Estado de S. Paulo, com especial significado, pois acabara de entrar nessa empresa após ter trabalhado com Vlado na TV Cultura. Acompanhei a tragédia muito de perto, pois saí da equipe de editores de telejornalismo que Vlado liderava alguns dias antes de sua morte. Como não assinar o manifesto que era a nossa voz de revolta e dor perante o assassinato de um jornalista com quem convivera e que, inclusive, me escolhera como editora?”.

No próximo dia 25, a cidade revive Vlado
No próximo dia 25 de outubro, às 19 horas, essa cerimônia que desafiou o regime militar e marcou a luta pela democracia vai ser recriada e reapresentada sob a luz de sua história. A iniciativa é do Instituto Vladimir Herzog e da Comissão Arns, reunindo lideranças religiosas, autoridades, estudantes, professores, artistas e todos que quiserem participar.
O ato inter-religioso pretende homenagear também todas as vítimas da ditadura representadas pelos seus familiares. Na programação, há a participação do coro Luther King, de Dom Odilo Pedro Scherer, da reverenda Anita Wright – filha de Jaime Wright, e do rabino Ruben Sternschein. Estão previstas também apresentações de música popular brasileira e de vídeos produzidos para a cerimônia. E também a participação da atriz Fernanda Montenegro lendo a carta de Zora Herzog, mãe de Vlado.
Homenagem da USP: Vlado recebe o título de Doutor Honoris Causa
A Congregação da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, onde Vladimir Herzog, ou Vlado, como era chamado, foi professor, também faz uma homenagem especial. Aprovou, por unanimidade, a sua indicação para receber o título de Doutor Honoris Causain memoriamda Universidade de São Paulo.

A indicação é do Conselho do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), onde Vlado lecionou Jornalismo Televisivo, em 1975, até a sua morte em outubro do mesmo ano. O professor Wagner Souza e Silva, chefe do CJE, explica que a manifestação do Conselho Departamental durante a reunião da Congregação da ECA-USP assinalou: “Em função da atuação de Herzog enquanto jornalista comprometido com a comunicação pública e o direito à informação de qualidade, bem como com os direitos e a formação de jornalistas, tanto enquanto reconhecimento profissional, como também por uma política de memória e verdade defendidas pela USP para promoção da democracia, entendemos que Vladimir Herzog faz jus ao recebimento do título de Honoris Causain memoriam pela Universidade de São Paulo”.

No Centro Universitário MariAntonia da USP, Vladimir Herzog foi homenageado, neste mês, com um ciclo de leituras de peças teatrais, escritas logo depois do seu assassinato. Também a Faculdade de Direito da USP (FD) apresentou, no último dia 8, um evento organizado pelo Ministério dos Direitos Humanos no Salão Nobre da faculdade. O atestado de óbito retificado de Vladimir Herzog foi entregue para a família. Cerca de 60 documentos de pessoas mortas e desaparecidas, durante o regime de exceção, também foram apresentados. Além de Vlado, foram homenageados Carlos Marighella e Rubens Paiva, emblemáticos da resistência e da defesa dos direitos humanos durante o regime militar. Também receberam as certidões Alexandre Vannucchi Leme, Antônio Guilherme Ribeiro Ribas, Aurora Maria Nascimento Furtado, e tantos outros. As fotos das vítimas foram colocadas em cada cadeira e levantadas por seus familiares durante o evento.
ABI institui 2025 como o Ano Vladimir Herzog
Também a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) instituiu 2025 como o Ano Vladimir Herzog. E vem divulgando a luta do jornalista. O diretor da entidade, Moacyr de Oliveira Filho, conhecido como Moa, destaca: “Vlado trabalhava como diretor de Jornalismo da TV Cultura quando, em 24 de outubro, militares o procuraram na emissora. No dia seguinte, o jornalista compareceu espontaneamente à sede do DOI-Codi de São Paulo para depor. Lá, ele foi torturado e assassinado. Para encobrir sua morte, os militares, além da tortura e violência, forjaram uma falsa versão de suicídio, que não se sustentou”.
A ABI, segundo o diretor, “se destaca pela luta em defesa da democracia, da liberdade de imprensa e pelos direitos humanos”, comenta Moa. Assim como Herzog, ele lembra que também foi preso e torturado nas dependências do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi) do 2º Exército de São Paulo. “Há muitos anos estamos lutando para a recuperação da memória política do Brasil em relação à ditadura”, explica. Uma luta por direitos humanos que acredita estar ganhando força.
Lições de Vlado para os estudantes de Jornalismo da ECA-USP
O jornalista não deve temer chegar ao fundo do poço na busca dos fatos, da verdade. É preciso encarar corajosamente todos os sacrifícios que esta verdade nos impõe. Não é nada fácil. Mas, se não for assim, é melhor procurar outra profissão.
— Vladimir Herzog
Essa foi uma das primeiras lições de Vladimir Herzog quando chegou, em agosto de 1975, para dar aulas como professor voluntário no Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) para a turma que entrou em 1972. Atento, o estudante Rodolfo Carlos Martino gravou a frase. E a repetiu, anos depois, para os seus alunos de Jornalismo.
“Lá se vão 50 anos…”, conta Rodolfo. “Permitam-me a ousadia, pois, se não foi exatamente com o uso dessas palavras, creio, sim, foi com tal sentido que o professor de telejornalismo nos cobrou a consciência que, como estudantes de jornalismo, deveríamos ter, desde já, como futuros profissionais de imprensa.”
Martino lembra bem da fase difícil de ser estudante da USP no tempo da ditadura. “Éramos entre 30 ou 40 alunos do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes naquele segundo semestre de 1975.” E o professor? “Bem, o professor era o jornalista que trabalhava n’O Estado de S. Paulo e na TV Cultura. Pelas manhãs, era o dedicado docente que nos convocava a trocar um provável final de semana ensolarado pela presença obrigatória no campus da Universidade de São Paulo. Teríamos a tarefa de elaborar um jornal laboratório sobre o sistema de transporte na Cidade Universitária. Dá para entender o breve incômodo do jovem alunato. Mas não há como não reconhecer a essência do que nos disse Vlado.”
Martino continua lembrando: “O professor sempre nos falou sem formalismos, distante da pose de dono da verdade. Apenas deixou bem nítido que ele não está ali para fazer de conta. Entendemos logo o recado: se não for assim, é melhor procurar outra profissão”.

Dois meses depois daquela primeira aula, o estudante Rodolfo Carlos Martino foi ao teatro. Era noite de domingo, 25 de outubro de 1975. “Assisto ao espetáculo Brasileiro Profissão Esperança, de Paulo Pontes, com música de Dolores Duran, no Teatro da Cidade, na Bela Vista, centro de São Paulo”, descreve. “Em cena, dá para se perceber o ator Paulo Gracindo e a cantora Clara Nunes visivelmente abalados, além da conta emocionados. Nota-se um clima de profunda tristeza e repulsa.”
O então estudante da turma de alunos de Vlado lembra: “Fim da sessão, os aplausos são interrompidos pelo choro de Clara e a notícia que, num ato de coragem, Gracindo faz questão de anunciar para a plateia: ‘O jornalista e professor Vladimir Herzog morreu tragicamente nas dependências do DOI-Codi de São Paulo, vítima dos desmandos ditatoriais’. Silêncio. Tristeza e indignação…”.
Rodolfo seguiu a profissão de jornalista e professor universitário. E vem se projetando também como escritor. Relata: “E assim, meus caros, a história deste país começou a mudar. Se não mudou tanto quanto almejava o professor, jornalista e cineasta Vladimir Herzog, aprendemos, com seu exemplo único, a resistir e a perseverar no sonho que se sonha juntos – e se faz realidade”.
O sonho de Vlado resiste entre os futuros jornalistas

Quando vê os estudantes de Jornalismo nas salas de aula, pelos corredores trocando ideias, o professor e fotógrafo Wagner Souza e Silva, do Departamento de Jornalismo, tem uma certeza: “A ditadura não matou Vlado. O seu sonho resiste”. E destaca: “Penso que os 50 anos depois do seu assassinato presenciam um momento importante não só para o Jornalismo, mas para a própria Universidade. Vlado, sendo jornalista e professor, sintetiza dois pilares importantes para a democracia: a educação e o acesso à informação. E é visível como isso tem inspirado os alunos de Jornalismo, uma profissão que tem sido muito atacada nos últimos anos no Brasil.”
O professor fala do entusiasmo dos estudantes de Jornalismo da ECA ao elaborarem o Jornal do Campus. “Outro exemplo é o projeto Festival Vladimir Herzog, que será apresentado no dia 6 de novembro e está sendo organizado pelos próprios estudantes.”
A resistência à verdade e à democracia, e especialmente ao sonho que Vlado tanto ensinou, está na força dos estagiários que também atuam no Jornal da USP, em diversas editorias. Veja alguns depoimentos:
Yasmin Constante, 19 anos, quarto semestre de Jornalismo na ECA-USP: “Eu sempre me enxerguei no jornalismo, talvez por traços da minha personalidade como a curiosidade e extroversão, mas também por acreditar que o seu papel continua sendo fundamental.
Apesar de trabalhar, sobretudo, com temas atuais – ou quentes, como costumamos chamar – nada de teor jornalístico surge sem um contexto. Trabalhar com os recentes acontecimentos da história do nosso País, como a prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe, não faz sentido se não estiver intrinsecamente ligado ao passado e à história do País ou da profissão que escolhemos. Como bem ensinou Vlado, ‘o jornalista não deve temer chegar ao fundo do poço na busca dos fatos, da verdade’.’’
Theo Schwan, 24 anos, 4° semestre de Jornalismo na ECA-USP: “Desviamos, por diversas vezes, do crepúsculo da democracia. Não espanta que uma república fundada por um golpe militar enfrente ciclos de ameaças autoritárias. O que surpreende é a insistência dos agentes da história em preservá-las. A luta de Herzog foi um marco do seu tempo, mas ainda continua muito atual.
A defesa da livre expressão, dos direitos humanos e da democracia é o que me move enquanto estudante de Jornalismo. Eventos recentes, como a tentativa de golpe do 8 de janeiro de 2023 e as pressões pela anistia aos seus perpetradores no Congresso, ecoam 1964, 1937 e 1930, entre outras incursões autoritárias. São episódios que mostram que o jornalismo nunca foi garantido. É uma conquista que precisa ser defendida continuamente.
Vindo de uma graduação anterior, encontrei propósito na transparência da comunicação. A escolha pelo Jornalismo é uma consequência do impulso de questionar e do compromisso firmado com o coletivo. Acredito que esse estado de inquietude, de busca pela verdade, seja o cerne da profissão. Foi a bandeira levantada por Herzog e é a bandeira que o jornalismo deve levantar hoje, dando voz aos calados pela História (aquela com H maiúsculo).
O assassinato de Vlado é a cicatriz que nos lembra do custo da censura e do autoritarismo. Ser jornalista, para mim, é carregar seu legado de verdade, justiça e democracia. Que sua memória seja uma bênção. ”
Jean Matheus de Oliveira da Silva, 24 anos, sexto semestre: “Escolher uma profissão foi definir se eu viveria prestes a explodir ou explodindo. Quando explodo, palavras saem descontroladamente. Elas tomam conta, e a prosa vira respiro. Vladimir Herzog teve a coragem de deixar suas palavras eclodirem no mundo. Coragem, porque escrever é um ato político. O jornal é um ato político, o que a história só comprova com a morte de Herzog durante a ditadura. Mas a quem criticamente vive, a escrita não é uma decisão. É dever.
Esse quase fardo é o motivador do nosso dizer. Então, me graduar em jornalismo foi natural para desenvolver minha inquietação constante. Pois, na adolescência, me permitiu ver além de mim e acendeu essa curiosidade e indignação com o mundo. Também me salvou, me formou e me encantou com todos os grandes jornalistas que denunciaram tiranias.
Eles que sonham com utopias de um mundo mais justo, mas a angústia volta ao confrontar a distopia que ele é. Noticiar é um dos poucos caminhos em que a angústia vira produção e luta. Herzog sabia disso, tanto que seus ideais, seja a defesa da democracia ou dos direitos humanos, são valores que perpassam seus escritos. Foi morto por se comunicar. Explodir em palavras.
Tão perto da recente história de uma tentativa de golpe, seria uma vergonha para minha memória crítica não produzir essas explosões prosaicas. Seria adoecedor. Nessa jornada, o jornal se torna janela a outras compreensões do mundo que construam realidades distintas que não mais distopias. Uma forma de explosões organizadas.”
Diogo Spinelli da Silva, 22 anos, sexto semestre: “O processo de formação de um jornalista na USP vai muito além de aprender a operar uma câmera ou escrever bem, essas são habilidades que podemos adquirir com o tempo e a prática. O mais importante do curso é aprender a pensar como um jornalista.
Acredito que essa foi a grande contribuição de Herzog para o jornalismo: a noção de que essa profissão tem um propósito, uma missão e um compromisso. Não se trata apenas da busca pela verdade, essa seria uma visão rasa. O jornalista é um leitor crítico do mundo ao seu redor, um ‘tudólogo’ profissional, alguém que reconhece sua própria insignificância, mas também a enorme responsabilidade que carrega. É, de certa forma, a profissionalização do pensamento socrático: ‘só sei que nada sei’.
O curso de Jornalismo nos oferece exatamente isso, um constante debate sobre as questões éticas e morais que envolvem nossa profissão. Em muitos momentos, parece que não estudamos apenas Jornalismo, mas sim crítica ao jornalismo.
Em síntese, o professor Herzog representa, para mim, o que busco ser como jornalista: alguém movido pelo amor à missão e ao propósito da profissão. O jornalismo nunca foi e nunca se propôs a ser imparcial, mas deve ser, sempre, crítico e consciente.”
Amanda Nascimento, 19 anos, quarto semestre de Jornalismo na ECA-USP: “Sempre me incomodou a ideia de simplesmente aceitar o mundo como ele é. O jornalismo me ensinou a observar, questionar e ouvir. É nesse processo que encontro sentido.
Vladimir Herzog sempre foi, para mim, a lembrança de que o ‘fazer jornalismo’ é assumir um compromisso que ultrapassa o eu, é um pacto com o leitor, com a justiça e com a própria democracia. Sua história encarna o que acredito: o jornalismo não é (e nem pode ser) apenas um exercício técnico, mas sim uma profissão ética e humana. Herzog manteve essas convicções até o final. Talvez por isso ele seja um dos exemplos máximos dessa profissão — e da importância de continuar nela.”
Diego Facundini, 20 anos, sexto semestre de jornalismo: “Lembro até hoje das aulas que tive com o professor José Coelho Sobrinho, contemporâneo de Vladimir Herzog, membro dessa velha guarda de docentes do curso de Jornalismo da USP, que por sorte ainda está aqui para contar a história desses tempos terrivelmente sombrios que nosso País e nossa profissão passaram durante a ditadura. Sentado, ele lia o conteúdo de algumas folhas de papel dispostas sobre sua mesa, vez ou outra levantando os olhos, se deixando levar em meio a uma enxurrada de memórias das décadas e décadas que viveu como jornalista e professor da ECA. Foi ele, contou certa vez, que defendeu a contratação de Vlado para o Conselho de Graduação da Universidade, em 1975, meses antes de seu assassinato nas dependências do DOI-Codi. Era uma lembrança que trazia consigo, sua porção de carinho e uma torrente de tristeza. A voz dele tremulava e os olhos – perdidos nas memórias desses momentos finais que pesavam e pesavam na medida que inundavam a cabeça –, os olhos marejavam, pouco antes de se voltarem novamente às folhas de papel.
Vlado foi um exemplo da coragem que ele próprio ensinava, um mártir de tudo aquilo que essa profissão representa, mas, ouvindo Coelho, percebo que, mais do que isso, ele foi um querido colega, violentamente morto pelo poder o qual temos como dever, irrefreavelmente, pôr em cheque. Afinal, o que o dia a dia na redação realmente faz é incutir, mais do que uma paixão, uma ‘neurose’ – uma neurose de informação, uma necessidade louca de correr na cola do mundo e nunca perder o passo.
O jornalista, em tempos nos quais essa palavra parece algo tanto mais impopular, sofre nessa profissão que é fundada no incômodo, na fiscalização, na denúncia do poder, em um desejo de encontrar a verdade e publicizar aquilo que era antes oculto; mas, apesar desse peso, do perigo, do frio na barriga que a lembrança de tantos tempos terríveis trazem, ele segue essa pulsão alucinada – vasculhar tudo em busca daquilo que não querem que ele veja.”
Mestres na luta por direitos humanos
Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados.
— Vladimir Herzog

“Lembro bem do assassinato de Vladimir Herzog e da missa celebrada por Dom Paulo Evaristo na catedral. Conhecia Clarice Herzog do curso de Ciências Sociais da USP. Foram tempos de repressão e todo tipo de arbítrio e violências da ditadura militar, mas também de crescimento dos movimentos sociais e populares por democracia, sindicatos livres, partidos políticos, anistia, Constituinte, eleições diretas e, principalmente, surgiu com força outro tipo de luta política: a afirmação e a defesa dos direitos humanos, importante luta contra as prisões políticas, a tortura, a censura, o banimento, o exílio, as várias formas de discriminação e o racismo.”
Maria Victória Benevides é Professora Emérita da Faculdade de Educação da USP, socióloga e militante pelos direitos humanos. Atua como presidente da Comissão Arns e integra o Conselho Consultivo do Instituto Vladimir Herzog. “Hoje a defesa dos direitos humanos faz parte da Constituição e da agenda política dos governos – com exceção do governo anterior. A Comissão da Verdade revelou o horror da ditadura, mas também elencou medidas governamentais para a restauração democrática – que valem até hoje.”
A professora ressalta que “o caso Herzog deve ser revisto como um alerta e também como um caso específico de um período no qual milhares de indígenas e trabalhadores foram massacrados, além de estudantes, intelectuais, religiosos, sindicalistas…”. E pontua: “O direito à memória e à verdade é uma exigência da democracia e é muito importante para a formação de nossa juventude. Sou contemporânea do Vlado, tenho 83 anos e mantenho a fé na luta, com o belo exemplo de Margarida Genevois e Luiza Erundina”.
Referência nas discussões sobre educação em direitos humanos no Brasil, a professora Maria Victória defende: “A educação em direitos humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação dessa cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas”.
A educação em direitos humanos, ensina a professora, parte de três pontos essenciais: “Primeiro, é uma educação de natureza permanente, continuada e global. Segundo, é uma educação necessariamente voltada para a mudança, e terceiro, é uma inculcação de valores, para atingir corações e mentes e não apenas instrução, meramente transmissora de conhecimentos. Acrescente-se, ainda, e não menos importante, que ou esta educação é compartilhada por aqueles que estão envolvidos no processo educacional – os educadores e os educandos –, ou ela não será educação, e muito menos educação em direitos humanos. Tais pontos são premissas: a educação continuada, a educação para a mudança e a educação compreensiva, no sentido de ser compartilhada e de atingir tanto a razão quanto a emoção”.
Em seu artigo Educação em Direitos Humanos: de que se trata?, a professora questiona: “O que significa dizer que queremos trabalhar com educação em direitos humanos?”. E responde: “A educação em direitos humanos é essencialmente a formação de uma cultura de respeito à dignidade humana através da promoção e da vivência dos valores da liberdade, da justiça, da igualdade, da solidariedade, da cooperação, da tolerância e da paz. Portanto, a formação dessa cultura significa criar, influenciar, compartilhar e consolidar mentalidades, costumes, atitudes, hábitos e comportamentos que decorrem, todos, daqueles valores essenciais citados – os quais devem se transformar em práticas”.
Desafios de ensinar e viver o jornalismo

Como ser estudante, jornalista e professor em um período marcado por repressão, censura política e violações de direitos humanos? Foi esse o desafio de Cremilda e Sinval Medina quando saíram de Porto Alegre, formados em Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (onde Cremilda também se graduou em Letras), para atuar como auxiliares de ensino na Escola de Comunicações e Artes da USP, em dezembro de 1970. “Nosso objetivo era cursar o mestrado. Viemos a convite do professor José Marques de Melo (1943-2018), na época um jovem professor e chefe do Departamento de Jornalismo”, conta Sinval em depoimento ao Ágora ECA, espaço que reúne histórias da comunidade ecana. “O País vivia uma das fases mais violentas da ditadura militar, e a atmosfera repressiva dominava a Universidade. Porém na ECA, e particularmente no CJE, respirávamos um clima de liberdade que beirava a ousadia. Integrávamos uma área de conhecimento muito recente, sem tradição científica, mal compreendida e desdenhada pelo conservadorismo predominante no meio acadêmico.”
O primeiro projeto sob a coordenação da jornalista Cremilda foi a criação da Agência Universitária de Notícias (AUN). “E teve muita repercussão, porque nesse momento estava em discussão na Unesco, nos fóruns internacionais, o direito à informação e a nova ordem da informação, para quebrar a hegemonia do Norte sobre o Sul e das grandes agências de notícias”, explica Cremilda. “Os boletins eram semanais e mimeografados. A Kombi da ECA entregava esses boletins para a redação dos grandes jornais de São Paulo e das sucursais. Também eram enviados pelo correio para o interior de São Paulo. Essa agência universitária de notícias era uma proposta da nossa resposta política da época ao domínio das agências de informação do Norte.”
Sinval conta que, na gestão de José Marques de Melo, a Agência Universitária de Notícias passou a ser um órgão de laboratório-modelo para o ensino do Jornalismo no País. “A Gráfica da ECA foi estruturada como órgão laboratório. E foram realizadas Semanas de Estudos de Jornalismo que, em sua quarta edição, em 1972, foi o maior evento do gênero então realizado no País, com a presença de especialistas internacionais, professores e estudantes de todo o Brasil.”

Porém, o brilho do CJE passou a incomodar a ditadura. “O boletim passou a ser uma vitrine para os informantes, agentes policiais que se infiltravam como alunos”, conta a professora Cremilda. “Fui chamada pelo então diretor Manuel Nunes Dias para me mostrar um telegrama enviado por Ernesto Geisel, censurando: ‘A Agência Universitária de Notícias é atentatória à segurança nacional’.”
Começa a destruição do departamento. “A virada se deu com a nomeação de Manuel Nunes Dias para a direção da escola, em outubro de 1972. Professores passaram a ser afastados em processos de cassação branca, ou seja, sem o ritual dos atos institucionais. O método permitia a demissão sumária”, explica Sinval. “O primeiro a cair foi o professor Freitas Nobre, bravo líder do MDB na Câmara Federal, seguiu-se o professor Thomas Farkas, depois José Marques de Melo e finalmente Jair Borin, que foi preso nas dependências da ECA, numa gritante violação da inviolabilidade do território universitário.”
Na gestão do diretor Nunes, a pressão e as ameaças continuaram, resultando na prisão do professor Jair Borin e na descontratação de José Marques de Melo, Thomaz Farkas e José Freitas Nobre. Também Sinval Medina foi reprovado em sua qualificação de mestrado por uma banca considerada arbitrária, o que o obrigaria a deixar suas atribuições como professor no departamento. Os professores Walter Sampaio, então chefe do CJE, Paulo Roberto Leandro e Cremilda Medina, em solidariedade, pedem demissão.
Na frente da casa dos professores Cremilda e Sinval, no Jardim Bonfiglioli, um carro da polícia fica estacionado até a cassação de Sinval. “Tivemos que mandar nossos filhos, Ana Flávia e Daniel, para minha irmã cuidar, em Porto Alegre”, conta Cremilda. “Estávamos ameaçados de sermos presos.”
Vladimir Herzog, que tinha entrado havia apenas dois meses como professor voluntário do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA, é assassinado. Uma morte que marca a história da Escola de Comunicações e Artes e da luta pela democracia no País.
Aos 83 anos, Cremilda Medina segue o legado do amigo entre os desafios da liberdade de expressão, o direito à informação e o ideal humano do ser jornalista. No apartamento ao lado da Praça Buenos Aires, o sol entra refletindo as gravuras do filho Daniel, os retratos, a sala com sofá e cortinas em tons de vermelho e rosa, e objetos que sintetizam os seus desafios e os de Sinval. É professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação e Professora Emérita do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina, ambos da USP. Também escreveu 20 livros e organizou 60 coletâneas nas áreas de comunicação, jornalismo e literatura.
“Meus filhos me perguntam: ‘Quando irá se aposentar?’. Mas eles mesmos respondem: ‘Nunca. Ela nunca vai deixar os aluninhos’.”
Veja o link:
Vladimir Herzog foi uma das pessoas mais íntegras que conheci. Foi pena não ter tido com ele tanto contato quanto desejaria ter tido, mas foi o suficiente para que o ficasse respeitando e admirando. Tudo se deu naquele tumultuado ambiente de 1975, com o desfecho que todos nós lamentamos. Mas em que lhe coube ser o personagem marcante que abriu, com o sacrifício de sua vida, o caminho para a abertura política.
— José Mindlin
Vlado: um legado de esperança
A história de Vlado Herzog (Vladimir foi o nome que registrou no Brasil) é pontuada de ideais, projetos e humanidade. Jornalista, professor, cineasta, fotógrafo, pai dedicado e amigo, deixa suas impressões em inúmeras fotos, roteiros, filmes, reportagens, depoimentos e cartas. Esses documentos estão no acervo do Instituto Vladimir Herzog, organização criada em junho de 2009 com a missão de trabalhar com a sociedade pela defesa dos valores da democracia, dos direitos humanos e da liberdade de expressão.
Conhecer a vida de Vlado Herzog é também um aprendizado. A vítima, o herói, o mito vão além do símbolo contra a ditadura. A pessoa real tem uma história que poucos conhecem. Uma vida interrompida aos 38 anos, pontuada pela sensibilidade e consciência humana.
Vlado nasceu em Osijek, atualmente Croácia, em 27 de junho de 1937. Morou em Banja Luka, onde seus pais tinham comércio até agosto de 1941. Depois da invasão nazista, a família mudou-se para a Itália. No dia 24 de dezembro, imigraram para o Brasil, em São Paulo.
Vlado formou-se no curso clássico do Colégio Estadual de São Paulo. Gostava muito de teatro, participando de vários grupos amadores. Ingressou na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, onde conheceu Clarice, sua esposa, com quem teve dois filhos: Ivo e André.
Começou a carreira como jornalista em 1959, atuando como repórter do jornal O Estado de S. Paulo. Entre suas reportagens especiais estão a inauguração de Brasília, a campanha eleitoral e a posse de Jânio Quadros. Também fez uma entrevista com o francês Jean-Paul Sartre pelo Brasil, entre outras reportagens de cultura.
Foi assistente de produção do Show de Notícias, da TV Excelsior, e atuou na Rádio BBC, passando a viver em Londres entre 1965 e 1968. De volta ao Brasil, trabalhou como produtor de TV na agência de publicidade J. Walter Thompson e atuou em seguida na TV Universitária da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A partir de 1970, tornou-se redator e depois editor de cultura da revista Visão, ocupando funções também no jornal Opinião.
Vlado se dedicou especialmente ao jornalismo cultural e à crítica cinematográfica. Também atuou como diretor de cinema e foi um dos roteiristas do documentário Marimbás (1963), sobre homens que viviam das sobras de peixes dos pescadores da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Foi também chefe de produção de Subterrâneos do Futebol (1965), de Maurice Capovilla, e integrou a equipe responsável pelo som direto de Viramundo (1965), de Geraldo Sarno.
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