Ética em pesquisa: uma vitória do atraso

Brasil era referência internacional com seu sistema de revisão de estudos clínicos, que contava com o controle popular por meio do Conselho Nacional de Saúde. Foi substituído após aprovação de uma lei com forte influência da Big Pharma. Como garantir participação social em meio a tamanho retrocesso?

Créditos: capa da revista The American Journal of Bioethics, junho/2024, volume 24, número 6
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A revisão ética de projetos de pesquisa com humanos tem como objetivo primeiro e essencial a máxima proteção/integridade dos participantes das pesquisas. Todas as demais dimensões – comerciais, financeiras, científicas, etc. – são subsidiárias a ele.

Essa visão estabelece um tipo especial de relação entre pesquisador/indústria, Estado e Sociedade na qual, tomando de empréstimo as definições de Antônio Gramsci, este último vértice deve predominar na organização do que a sociedade política (não o “governo”) vier a propor para o processo de revisão. Em outros termos, o controle da sociedade civil deve estar em posição de absoluto destaque na organização desse processo.

Um dos principais indicadores do avanço que a proposta constitucional do SUS trouxe em sua regulamentação foi a previsão de um organismo vinculado à sociedade política, o Ministério da Saúde, com grande independência e controle da sociedade civil, para estabelecer a permanente defesa dos interesses desta última em circunstâncias em que poderia haver dissenso. É exatamente essa a missão do Conselho Nacional de Saúde (CNS).

No nosso ponto de vista, a revisão ética na pesquisa com humanos é uma dessas circunstâncias. A proteção/integridade dos participantes como vértice condutor do processo de revisão foi o que levou à decisão de colocar este colegiado, o CNS que representa o controle da sociedade civil sobre o SUS, na coordenação desse processo. A forma pela qual essa decisão foi implementada foi a criação do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa – o sistema CEPs/Conep, expressa numa resolução (196/1996) do próprio CNS, sob a liderança de um médico cirurgião e patologista paulista falecido em 2016, William Saad Hossne.

Essa resolução, objeto de vários aperfeiçoamentos desde então, teve como principal virtude defender esses princípios que estamos apresentando. A Resolução incorporou em sua feitura o estado da arte bioética do momento em que foi elaborado e a melhor tradição da bioética em nível internacional, expressa nos principais documentos internacionais que emanaram declarações e diretrizes sobre pesquisas sobre o tema: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração dos Direitos Humanos (1948), a Declaração de Helsinque (1964 e suas versões posteriores), o Acordo Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (ONU, 1966, aprovado pelo Congresso Nacional Brasileiro em 1992), as Propostas de Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisas Biomédicas Envolvendo Seres Humanos (CIOMS/OMS 1982 e 1993) e as Diretrizes Internacionais para Revisão Ética de Estudos Epidemiológicos (CIOMS, 1991).

Embora o sistema de revisão ética, conhecido como sistema CEP/Conep, tenha tido muito sucesso nesses quase 30 anos de existência e tenha colocado o Brasil como uma referência no cenário internacional, tendo sido modelo para várias regulamentações, foi elaborado em 2015 o projeto de lei que deu origem a lei 14.874, pela então senadora gaúcha Ana Amelia, provavelmente inspirada pelo então presidente-executivo da Interfarma entre 2009 e 2018, Antônio Brito, também gaúcho. A Interfarma representa no Brasil os interesses da Big Pharma internacional que atua no país.

Depois de um longo sono no Congresso, tornou-se Lei em 2024. Sob o argumento de aumentar a eficiência da revisão ética no Brasil, comete vários “pecados” conceituais e práticos, dentre os quais o mais importante é o de deslocar o CNS da liderança do processo e localizá-lo no Poder Executivo, mais especificamente sob a tutela do Ministério da Saúde, mediante a instituição de uma Instância Nacional de Ética em Pesquisa (INAEP). A lei foi regulamentada mediante um decreto que manteve quase todos os “pecados” contidos na nova lei ou os agravou, dentre os quais a extinção da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).

Em vista disso, a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), em setembro último, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade para que o STF declare a Lei 14.874/24 inconstitucional, entre outras, pela razão de transferir o controle do CNS para o Ministério da Saúde. Esta é a principal solução para preservar as condições institucionais de maior proteção dos participantes, com a manutenção do controle do sistema sob direção do Controle Social do SUS. Neste momento, a ABRASCO se prepara para entrar como Amicus Curiae na ação.

Enquanto o STF não se pronuncia, foi publicada em 14 de outubro passado uma portaria da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Sectics) do Ministério da Saúde que procura atenuar o prejuízo trazido ao tema pela nova lei e estabelece uma parceria com o CNS para conduzir o processo de constituição da INAEP (SECTICS/MS n.85, de 14/10/2025). Resta-nos esperar que, com a força do CNS, seja possível manter o controle social na governança compartilhada com a Sectics em um novo sistema nacional de ética em pesquisa.

Para isso é preciso, minimamente, manter o espírito do sistema contando com os CEPs para indicação de possíveis membros de uma coordenação ativa escolhida pelo CNS, tal como as várias edições das Coneps que se sucederam desde 1997, garantindo inclusive a presença de representantes de participantes de pesquisa (RPP) na Instância, como existem nos próprios CEPs. Além disso, estabelecer uma governança compartilhada e equilibrada entre o controle social e o poder executivo.

Seja como for e o que vier, fica claro o retrocesso trazido pela promulgação da Lei 14.784/24. Retrocesso que, caso persistam as medidas que ela propõe, principalmente a retirada do controle social do SUS na liderança do processo de revisão ética da pesquisa com seres humanos, produzirá repercussões negativas na proteção aos participantes das pesquisas, pedra angular de uma regulação adequada.

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