Em Gaza, a paz que não existe
Israel viola o cessar-fogo, promove ataques e bloqueia parte da ajuda humanitária no território. Enquanto isso, EUA celebram “trégua” – que virou ferramenta de propaganda para garantir a impunidade de Tel Aviv e prolongar o apagamento dos palestinos
Publicado 21/10/2025 às 17:59

Israel matou quase 100 palestinos em Gaza e feriu 230 desde a entrada em vigor da trégua proposta e intermediada pelos Estados Unidos em 10 de outubro. Apenas nas últimas 24 horas, corpos de 13 palestinos e oito feridos foram levados a hospitais da região. A ofensiva militar contou com ações como o ataque do exército israelense contra civis desarmados e mais de um bombardeio ao território ocupado.
Como dito aqui, o descumprimento de pactos que estabelecem cessar-fogo são quase um rito do Estado israelense em diferentes ocasiões. Os militares disseram no domingo (19) que o Hamas é que violara o acordo e dois de seus combatentes teriam matado dois soldados de Israel em Rafah, o que justificou uma onda de ataques em toda a Faixa de Gaza. As Brigadas Qassam, braço armado do Hamas, afirmou que não tinha conhecimento de nenhum confronto, pontuando ainda que Israel controla a área. O jornalista Younis Tirawi, contudo, apurou que incidente em Rafah não foi um ataque do Hamas, mas sim um trator operado por uma empresa de colonos que passou por cima de algum tipo de dispositivo explosivo não acionado. Com as megatoneladas de bombas lançadas sobre o território palestino, Israel tornou o terreno um verdadeiro campo minado com munições não detonadas, perigoso para suas próprias equipes de demolição.
O repórter do Drop Site News, Ryan Grim, corrobora a versão apontando que a Casa Branca e o Pentágono sabiam que o incidente teria sido causado por uma escavadeira de colonos israelenses passando por cima de munições não detonadas. “Após Netanyahu declarar que estava bloqueando toda a ajuda de entrar em Gaza em resposta, e desencadear uma campanha de bombardeios, a administração informou a Israel que sabia o que havia acontecido. Netanyahu então anunciou que reabriria as passagens em algumas horas”, disse ele, em seu perfil no X (ex-Twitter).
Esta não é a única acusação do governo de Israel que justificaria, sob sua ótica, o rompimento do cessar-fogo. A gestão de Netanyahu argumenta que o Hamas estaria protelando a entrega dos corpos dos prisioneiros mortos durante bombardeios a Gaza, conforme estabelecido no acordo. O grupo libertou, até agora, todos os 20 prisioneiros vivos e devolveu 12 dos 28 corpos dos cativos. Contudo, como já alertava antes da assinatura do acordo, alega dificuldades em resgatar os demais, já que seriam necessários equipamentos de escavação pesados para retirá-los dos escombros – assim como o número estimado de 10 mil palestinos mortos, cujos corpos estariam nas mesmas condições.
Não é somente por conta dos ataques realizados em Gaza que Israel tem descumprido o acordo. Apenas duas travessias foram abertas para a passagem de ajuda humanitária e o Programa Mundial de Alimentos afirmou que 900 caminhões entraram na região desde 10 de outubro, quando a trégua começou, sendo que seriam necessários 600 caminhões diários para aplacar no local. Nesta terça-feira (21), a comissária de gestão de crises da União Europeia, Hadja Lahbib, aderiu aos crescentes apelos para que seja estabelecido um acesso “seguro e desimpedido” na região. “Nossa parceira, Unicef Palestina, tem mais de 1.300 caminhões, financiados parcialmente pela União Europeia, carregados com alimentos para bebês, roupas de inverno, kits de higiene e suprimentos educacionais prontos para entrar em Gaza. Reitero a necessidade de acesso seguro e desimpedido para entregar essa ajuda”, disse.
Os Estados Unidos e a impunidade
Embora a situação continue crítica para a população de Gaza e Israel, de forma explícita, siga violando aquilo que foi pactuado, o governo dos Estados Unidos vê um cenário quase idílico. O enviado especial dos EUA, Steve Witkoff, declarou nesta terça-feira, em Israel, estar orgulhoso com o atual estágio do cessar-fogo. “Assinar esse acordo foi um desafio em si, mas a implementação realmente será o mais importante, e acho que isso está excedendo onde pensamos que estaríamos neste momento”, pontuou.
Também nesta terça, em entrevista coletiva realizada em sua visita a Israel, o vice-presidente estadunidense JD Vance disse que se sente “confiante de que chegaremos a um ponto em que esta paz será duradoura e, se o Hamas não cooperar, então, como disse o presidente dos Estados Unidos, o Hamas será destruído”.
Nas entrevistas das autoridades estadunidenses, nenhuma alusão à postura do governo israelense que afronta aquilo que foi acordado com proposição e mediação dos próprios Estados Unidos, muito menos se notou a presença de qualquer representante palestino. Donald Trump também voltou a declarar que sua rede social que o cessar-fogo continuava em vigor e que “vários dos nossos agora grandes aliados no Oriente Médio e em áreas ao redor dele me informaram, de forma explícita e enfática, com grande entusiasmo, que acolheriam com satisfação a oportunidade, a meu pedido, de entrar em Gaza com uma força pesada e ‘endireitar o nosso Hamas’ se o Hamas continuar a agir mal, violando o acordo que assinaram”, escreveu.
Se alguém ainda duvidava, é a evidência de que qualquer suposição contra o Hamas será tida como verdade e mesmas violações evidentes e públicas por parte de Israel serão ignoradas ou justificadas na linha de uma quase universal legítima defesa, ainda que o alvo sejam civis.
Trump inclusive expressou isso no Knesset, o Parlamento israelense, em sua viagem a Israel, em 13 de outubro, acompanhado de Benjamin Netanyahu. “Temos as melhores armas e demos muitas delas a Israel. Bibi [Netanyahu] me dizia: ‘Você pode me dar esta e aquela?’ Algumas delas eu nunca tinha ouvido falar; e nós as demos a eles, e elas são as melhores. Vocês as usaram muito bem”, afirmou na ocasião. “Meu pessoal [no Exército] adorou trabalhar com vocês”, disse ele ao Parlamento israelense. “Com a nossa ajuda, Israel conquistou tudo o que podia pela força das armas.” Não são palavras que parecem saídas da boca de alguém que pleiteou (e ainda pleiteia) o Nobel da Paz ou alguém que detenha autoridade moral para ser fiador de um acordo quando se mostra tão alinhado a um dos lados conflitantes.
“Após dois anos de crimes em massa contra a população civil palestina em Gaza e na Cisjordânia, estamos testemunhando a segunda fase da normalização do genocídio, por meio da dramatização e da narrativa. Donald Trump veio em socorro do governo Netanyahu e lançou uma operação de branqueamento com o objetivo de garantir a impunidade israelense e o enriquecimento de urânio pelos EUA sobre as ruínas de Gaza”, aponta a jornalista especializada em Oriente Médio e Direitos Humanos, Olga Rodríguez, no El Diario.
Ela lembra que o acordo veio em um momento no qual aumentava a pressão internacional sobre o governo israelense, com diversos países reconhecendo o Estado palestino, manifestações públicas de chefes de Estado e mesmo entidades esportivas internacionais lenientes em relação ao genocídio, como a Uefa e a Fifa, sendo forçadas a discutir sanções como a exclusão de Israel das competições internacionais. O cessar-fogo congela estes debates e a própria noção de responsabilização em relação ao que foi feito em Gaza. Há mais de um ano, por exemplo, o Tribunal Internacional de Justiça decidiu que a ocupação israelense dos Territórios Palestinos Ocupados era ilegal, e uma resolução da Assembleia Geral da ONU exigiu o fim dessa ocupação no prazo máximo de um ano. Expirado o prazo em setembro, pouca gente lembrou ou cobrou que a determinação fosse cumprida.
“O plano de Trump foi elaborado para salvar Israel de tudo: sua ocupação ilegal e seu sistema de apartheid, sem data para a retirada das tropas israelenses de Gaza, e um projeto de desenvolvimento para empresas e especulação americanas. Ele não prevê responsabilização e envia uma mensagem perigosa: a de que se pode cometer genocídio por dois anos e receber recompensas por isso”, aponta Rodríguez. “É possível manter relações preferenciais com o Estado que comete crimes em massa, não tomar medidas para preveni-los ou impedi-los por quase dois anos e ainda se apresentar como defensor do direito internacional, como a União Europeia, o maior parceiro comercial de Israel, continua a fazer.”
A reconstrução. Com os palestinos
O historiador israelense Ilan Pappe, em entrevista ao jornalista Peter Beinart, no The Beinart Notebook, destaca que, apesar de o cessar-fogo significar, para alguns palestinos, uma pausa nos bombardeios, permitindo ainda que prisioneiros de ambos os lados possam se reunir com suas famílias, não se trata de um acordo de paz duradouro e tampouco uma solução.
Ele aponta que os termos do pacto se referem a “ideias muito vagas, na sua maioria ideias que já foram tentadas antes, ou que estiveram na base de tentativas anteriores de paz que falharam”. E falta, sobretudo, algo fundamental: uma consulta aos próprios palestinos. “Mais uma vez, não lhes é perguntado qual é a sua visão, o que eles gostariam”, ressalta.
“Todos os outros estão discutindo sobre eles sem eles. Em segundo lugar, ninguém parece pensar que o que Israel fez nos últimos dois anos é um fator que deve ser julgado, do ponto de vista moral, com base no direito internacional. Os países que foram acusados por tribunais jurídicos internacionais de cometer genocídio não puderam passar para o ano seguinte como se nada tivesse acontecido”, analisa.
Pappe aponta quais seriam as possíveis consequências da impunidade israelense para a construção de uma resposta efetiva para a questão palestina. “Isso realmente não criaria confiança entre os palestinos de que há algo que possa acabar com a limpeza étnica da Cisjordânia, a discriminação contra os palestinos dentro de Israel ou que traga qualquer tipo de solução construtiva para a destruída Faixa de Gaza. Portanto, acho que isso não se transformará num processo de paz ou reconciliação genuíno”, conclui.
O historiador também avalia quais seriam as reais intenções do governo israelense ao manter uma ofensiva militar brutal por dois anos. “Será que se pode argumentar que, na verdade, Israel obteve uma vitória real? Não destruiu o Hamas, mas se o objetivo era basicamente conquistar mais território e concentrar os palestinos num território menor, que foi assim que Gaza foi criada inicialmente, então este é, na verdade, mais um passo em direção a esse objetivo”, sustenta.
“Se havia alguma inibição na política israelense em relação aos palestinos antes de 7 de outubro, parece que muitas delas foram removidas. E, portanto, o tipo de violência que eles infligem aos palestinos é muito pior. E as consequências, especialmente para o povo de Gaza, mas eu diria que não prestamos atenção suficiente à Cisjordânia, mesmo a situação lá é muito pior do que era antes de 7 de outubro de 2023.”
A cineasta e escritora palestino-britânica Leila Sansour vê um cenário crítico, mas enxerga possibilidades. Para ela, entre ingenuidade e cinismo, deve haver um espaço para o realismo, não de resignação, mas de consciência. “O que está acontecendo agora não é o cumprimento da justiça, mas o surgimento de uma nova estrutura que definirá o que a justiça pode, ou não pode, alcançar. Ignorá-lo é perder a agência mais uma vez”, defende, em artigo publicado na Al Jazeera.
“O terremoto de Gaza mudou a gramática do conflito. O poder israelense, embora brutal, não é mais absoluto. A política regional está mudando. Uma nova ordem está sendo escrita – e aqueles que desejam permanecer atores nela devem aprender seu vocabulário. Caso contrário, eles correm o risco de se tornarem notas de rodapé, lembrados apenas por sua recusa em se adaptar ao mundo à medida que ele se refazia diante de seus olhos”, analisa.
Se, por um lado, o projeto expansionista de Israel continua a desafiar e a corroer cada quadro emergente de paz, justiça ou ordem; por outro, há cálculos de potências regionais que podem influenciar a postura dos Estados Unidos, segundo Sansour.
“No curto prazo, a colisão dessas correntes é obrigada a produzir turbulência. Mas, na visão mais longa, como a atenção de Washington será invariavelmente forçada a mudar para a China e a Rússia, e à medida que o sentimento público ocidental se volta decisivamente contra a impunidade de Israel e a lógica colonial que a sustenta, é difícil imaginar como a segunda corrente, os pragmáticos regionais, não prevalecerá, talvez mais cedo do que o esperado.”
A cineasta enxerga uma outra tarefa, ainda mais difícil, que é a construção de uma nova liderança política local. “À medida que os palestinos retornam ao marco político zero, aqueles que desejam ver um novo tipo de liderança devem se envolver diretamente para elaborar políticas e ajudar a formar e financiar os movimentos que podem levar uma nação adiante”, afirma.
“Enquanto isso, os movimentos de solidariedade continuarão a falar no registro de valores – de direitos, memória e a lei moral que ainda insiste na justiça em uma era de conveniência. Sua voz continua indispensável: é a consciência que lembra o que a política muitas vezes esquece. O arco da história não se inclinará para a justiça por si só; ele deve ser puxado para lá por aqueles que recusam a amnésia, que não trocam valores por conforto”, conclui.
Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras