Vale tudo para se debater saúde nas novelas?

Num mundo neoliberal de fragmentação e aceleração midiáticas, a pauta da saúde nas novelas ultrapassa o marketing social rumo ao comércio digital. Em meio a publicidade de remédios e exaltação da medicina de luxo, haverá espaço para lutar por direitos sociais?

Cena da novela Vale Tudo, da Rede Globo
Cena da novela Vale Tudo, que chegou ao fim no último sábado. Créditos: Reprodução/GloboPlay
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Anúncio do cessar-fogo no sanguinário genocídio que Israel submete a população de Gaza. Negociações entre Brasil e Estados Unidos acerca do tarifaço. Adulteração de bebidas destiladas e intoxicação recorde por metanol em pelo menos 13 estados da federação. A tabela embolada do Brasileirão. Neste mês de outubro, nenhum desses assuntos teve mais relevância midiática do que a reta final de Vale Tudo

“Por que raios essa novela está nas páginas eletrônicas do Outras Palavras e do Outra Saúde?” poderia perguntar o leitor ou a leitora mais aguerrida dessas nossas mídias guerrilheiras do pensamento crítico. Contudo, o remake assinado (ou assassinado, dizem) por Manuela Dias gerou uma avalanche de notícias em veículos impressos e digitais, toneladas de postagens e memes nas redes sociais e muita ação de marketing, fazendo Vale Tudo estourar nas métricas que servem de parâmetro para definir o que é relevante no debate social – quase 30 pontos no Painel Nacional da Televisão (PNT/Kantar Ibope), algo equivalente a 146 milhões de telespectadores, mais de 287 milhões de menções nas quatro maiores mídias sociais – o eX Twitter, Facebook, Instagram e TikTok – e faturamento superior a R$ 200 milhões cumprem com rigor a proposta deste espaço em abordar o que se fala nas redes e nas ruas sobre comunicação e saúde. Mas não só.

Ao seu modo, Vale Tudo tratou de diversas questões de saúde e, principalmente, porque saúde é um objeto midiático por excelência; e a telenovela, em que pese a fragmentação da audiência em diversas outras telas, ainda tem, e terá por muito tempo, grande penetração e relevância no cotidiano e na cultura brasileira.

Saúde e narrativa ficcional: uma história de sucesso 

Desde Sófocles, o criador do primeiro gênero literário da humanidade, a saúde pode ser entendida como um importante fio condutor que ativou a capacidade humana de se identificar e reconhecer naquilo que é inventado, no que é ficção. O direito de nascer, em Édipo Rei, e o direito aos ritos do morrer, em Antígona, possibilitaram que os mortais, na plateia, vissem que a tragédia de heróis e heroínas era tão semelhante à superação dos obstáculos em suas trajetórias de vida.

Passaram séculos para que as narrativas humanas migrassem dos teatros, das óperas e apresentações de rua para ganhar as páginas dos jornais – nossa primeira mídia massiva. O que era tragédia já havia virado drama e, com o folhetim, histórias de cortesãs tísicas e de pacientes psiquiátricos tratados por um médico esquisitão – respectivamente, Lucíola, de José de Alencar, e O Alienista, de Machado de Assis –, entremearam-se com notícias de surtos de doenças, mortes de famosos e populares e novos tratamentos de saúde nas páginas de jornais e revistas brasileiras, no século XIX.

Das páginas para as ondas do rádio e, depois para os sinais captados pelas antenas de televisão, as narrativas seguiram marcando hábitos e costumes, ditando moda, sedimentando ideologias e hegemonias. A telenovela brasileira, no entanto, tem a distinta característica da crítica social, de misturar o melodrama burguês aos transplantes de órgãos, como em De Corpo e Alma (1993), ou amarrar à trajetória do herói em busca do seu passado a temas como clonagem humana e dependência de álcool e drogas, como em O Clone (2001).

As temáticas biomédicas juntam-se a tantas outras pautas sociais presentes nas novelas da TV Globo, sejam como tramas centrais ou secundárias, a partir da década de 1990. Mais do que reproduzir a marca do romance nacional novecentista, que reúne o açucarado e empoado romantismo burguês com o naturalismo estereotipado das camadas populares, esta opção narrativa é uma escolha de marketing e merchandising cultural

Esse “serviço de utilidade pública” é entendido pela própria emissora como uma forma de “difundir questões de relevância social; incentivar a busca de soluções para a sociedade e estimular a mudança de atitudes e novos comportamentos. Tudo muito bem noticiado divulgado em seus telejornais, portais e balanços sociais. 

É atribuído ao “Efeito Camila”, nome da personagem de Carolina Dieckmann em Laços de Família (2001), ter conseguido ampliar de 20 para 900 inscrições/mês de doadores de medula óssea. Rendeu também o BITC Awards for Excellence 2001, na categoria Global Leadership Award, “o mais importante prêmio de responsabilidade social do mundo”, segundo a emissora. Outra ação muito badalada foi a inserção de fotos de crianças desaparecidas no final dos capítulos de Explode Coração (1997), relacionado à trama secundária de Odaísa, personagem de Isadora Ribeiro, que teve o filho raptado para ser vendido a um casal de alemães. Naquele ano, o percentual de crianças encontradas, segundo o projeto SOS criança pulou de 55% para 80%.

Vale Tudo e o paradigma da mudança do marketing social para o surreal/comercial

Vale Tudo foi escolhida pela Globo como a novela emblemática das celebrações dos 60 anos da emissora e 100 anos da criação do maior conglomerado noticioso, midiático e de entretenimento nacional. 

A versão original, de 1988, guardava a aura de ser uma obra de teledramaturgia como referência de debate político-social, dado o contexto da redemocratização; exemplar na construção de personagens simbólicos, elementos motivadores de forte apelo nostálgico e emocional. Um novelão, como dizem os apaixonados pelo gênero. 

Contudo, estamos em 2025. Os 37 anos que separam as duas versões registraram as mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas muito maiores do as vividas durante quase o mesmo período entre a chegada da televisão no Brasil, em 1950, para a primeira versão. Destaco duas: a hegemonia do neoliberalismo e a consolidação do meio digital. 

Num mundo onde o capital é a única força motriz econômica, política e social, não há espaço para a luta de classes. Em um mundo no qual a fragmentação e aceleração tecnomidiática, seja em telas e formatos narrativos, pautam as formas de consumo cultural, não há espaços para personagens, pautas e tramas complexas. A equação mudou e conjuga imediatismo temático e representacional, disruptura com o real e marketing comercial. Esses elementos marcaram toda a novela, incluindo as tramas biomédicas, o que faz a novela ser um produto paradigmático e representativo do mundo contemporâneo. 

A própria mídia, formada pela emissora, suas concorrentes e parceiras, e instrumentalizada por nós, consumidores-(re)produtores de conteúdo, traz os elementos de análise. Em julho, o site Veja Saúde já havia listado as “5 questões de saúde retratadas na novela da Globo [que] tem apresentado uma série de temas envolvendo saúde, comportamento e qualidade de vida”.

Pulemos a vida sexual das pessoas 60+ e infarto do personagem Rubinho e vamos começar pelo imediatismo temático e representacional do burnout de Renato Filipelli (João Vicente de Castro). Assim como rapidamente entraram na trama, as crises de estafa e a auto medicação com suplementos que provocaram o quadro de infarto no publicitário de sucesso (porém sem dinheiro) e o levaram ao hospital, passados alguns capítulos, toda a temática foi esquecida. Assim como a compulsão por jogo do então porteiro Vasco (Thiago Martins), que deu espaço para a virada rumo ao empreendedorismo do personagem e nem mereceu entrar na lista biomédica de Veja Saúde.

O tratamento narrativo dado à dependência alcoólica de Heleninha Roitman (Paolla Oliveira) representou a ponte entre o modelo de merchandising social das décadas de 1990 e 2000 para o exacerbado discurso do empreendedorismo social, articulado na protagonista esvaziada Raquel (Taís Araújo). Foi uma das tramas centrais que atravessou toda a novela, com muitas recaídas ao vício, entremeadas por consultas com a fina psicanalista Ana (Arieta Côrrea) – consultas essas que não surtiam efeito – e críticas às clínicas de internação como dispositivo de intervenção. Por meio do Alcoólicos Anônimos (AA), irmandade de tradição norte–americana que trabalha a sobriedade como um princípio que a herdeira Roitman conseguiu manter-se por mais tempo sóbria, até o desfecho da personagem tragada pela trama policial. Se a emissora fez questão de esvaziar o lado caricatural da bêbada tão bem interpretada por Renata Sorrah na primeira versão, não se furtou a, na mesma novela, fazer diversas “publis” com o Zé Delivery, rede de entrega domiciliar de todo o tipo de álcool da Ambev.

Como em Explode Coração (1995), a emissora utilizou os finais dos capítulos e inserções publicitárias com depoimentos de atores, incluindo Paolla, para mostrar os prejuízos decorrentes da dependência e divulgar o AA. O “efeito Heleninha” fez as buscas na web pelo AA aumentarem 150%.

Se o alcoolismo ganhou o selo de utilidade pública do marketing social, o diabetes de Solange (Alice Wegmann) foi puro comércio. Presente desde o início da trama, a mocinha publicitária recorria diariamente às canetas aplicadoras e a furos nos dedos para o controle glicêmico, teve desmaios em frente ao amado e seu medicamento quase foi adulterado pela arrivista Maria de Fátima. A Big Pharma (sempre ela!), trouxe, porém, a solução. Exibida com extremo didatismo e com a marca anunciada por Solange, a “publi” do FreeStyle Libre, medicamento eletrônico de controle contínuo  da glicose, da fabricante Abbott, somou-se a mais de 46 outras ações publicitárias feitas por dentro do roteiro. O pano de fundo para esse excesso, junto com os valores cobrados, é o adestramento do público à plataforma de compra que se transformarão novelas, séries e transmissões esportivas com a TV Digital (DTV ou TV 3.0) a partir de 2026. A tecnologia foi anunciada com pompa pelo governo federal e a associação das emissoras televisivas, em agosto.  

A personagem Solange com seu dispositivo eletrônico de medição de glicose. Créditos: Reprodução/GloboPlay

Por fim, o drama de Afonso, que descobre na metade da trama ter desenvolvido leucemia mieloide. O mocinho rico e esportista faz sua trajetória de herói ao confrontar a vilania corrupta da mãe e passar por um longo tratamento médico enquanto aguardava a localização de um doador compatível… que viria a ser seu irmão vítima de um acidente de carro e escondido pela mãe por longos treze anos. 

A força imagética do modelo biomédico privado – grande hospital, quarto particular com hotelaria de luxo, médico de jaleco branco – se juntam com a surrealidade da trama e do rápido processo de autorização da doação por uma pessoa incapacitada – ainda que seja juridicamente possível. Mais uma estratégia visível da novela para gerar buzz nas redes sociais e alimentar a busca incessante de cliques dos portais de notícias, que publicam qualquer matéria a cada deslize, cada “publi”, cada mudança de caracterização, cada nonsense explorado meticulosamente pela direção artística e comercial da emissora.

De todas as estratégias largamente utilizadas pelo mercado como forma de captura, biomedicalização, didatismo de utilidade pública, marketing social e plataforma de comércio digital, a mais complexa e sensível ao pensamento crítico é o jogo da representatividade identitária. Cada vez mais, organizações e ativistas dos movimentos de portadores de doenças e agravos valorizam e se mobilizam para verem as narrativas de suas vivências na teledramaturgia. Influencers vibraram ao ver o dispositivo eletrônico na mocinha; comemoram o debate social proporcionado pela vivência do mocinho.

Da perspectiva dos movimentos sociais, nossas reivindicações, que cada vez vão menos às ruas, têm na representação e na identificação narrativa a principal estratégia de disputa para ocupar o debate social que se dá na sociedade justamente na arena digital. O mercado aplaude e acolhe, oferecendo junto o comércio, o patrocínio, o enfraquecimento do Estado e dos direitos sociais. 

A força e hegemonia do pensamento biomédico não se dá apenas pela eficácia dos medicamentos da Big Pharma ou pelo poder da corporação médica. Esse poderio histórico e ideológico é reificado a cada grande personagem e cada narrativa catapultada pelas engrenagens do capital. Sem vilanizar essa perspectiva, mas querendo pautar o debate, fica a pergunta do título. Vale tudo para se debater saúde nas novelas?

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