Vale tudo para se debater saúde nas novelas?
Num mundo neoliberal de fragmentação e aceleração midiáticas, a pauta da saúde nas novelas ultrapassa o marketing social rumo ao comércio digital. Em meio a publicidade de remédios e exaltação da medicina de luxo, haverá espaço para lutar por direitos sociais?
Publicado 21/10/2025 às 12:30 - Atualizado 21/10/2025 às 12:51

Leia todos os textos da coluna Comunicação e Saúde nas Redes e nas Ruas
Anúncio do cessar-fogo no sanguinário genocídio que Israel submete a população de Gaza. Negociações entre Brasil e Estados Unidos acerca do tarifaço. Adulteração de bebidas destiladas e intoxicação recorde por metanol em pelo menos 13 estados da federação. A tabela embolada do Brasileirão. Neste mês de outubro, nenhum desses assuntos teve mais relevância midiática do que a reta final de Vale Tudo.
“Por que raios essa novela está nas páginas eletrônicas do Outras Palavras e do Outra Saúde?” poderia perguntar o leitor ou a leitora mais aguerrida dessas nossas mídias guerrilheiras do pensamento crítico. Contudo, o remake assinado (ou assassinado, dizem) por Manuela Dias gerou uma avalanche de notícias em veículos impressos e digitais, toneladas de postagens e memes nas redes sociais e muita ação de marketing, fazendo Vale Tudo estourar nas métricas que servem de parâmetro para definir o que é relevante no debate social – quase 30 pontos no Painel Nacional da Televisão (PNT/Kantar Ibope), algo equivalente a 146 milhões de telespectadores, mais de 287 milhões de menções nas quatro maiores mídias sociais – o eX Twitter, Facebook, Instagram e TikTok – e faturamento superior a R$ 200 milhões cumprem com rigor a proposta deste espaço em abordar o que se fala nas redes e nas ruas sobre comunicação e saúde. Mas não só.
Ao seu modo, Vale Tudo tratou de diversas questões de saúde e, principalmente, porque saúde é um objeto midiático por excelência; e a telenovela, em que pese a fragmentação da audiência em diversas outras telas, ainda tem, e terá por muito tempo, grande penetração e relevância no cotidiano e na cultura brasileira.
Saúde e narrativa ficcional: uma história de sucesso
Desde Sófocles, o criador do primeiro gênero literário da humanidade, a saúde pode ser entendida como um importante fio condutor que ativou a capacidade humana de se identificar e reconhecer naquilo que é inventado, no que é ficção. O direito de nascer, em Édipo Rei, e o direito aos ritos do morrer, em Antígona, possibilitaram que os mortais, na plateia, vissem que a tragédia de heróis e heroínas era tão semelhante à superação dos obstáculos em suas trajetórias de vida.
Passaram séculos para que as narrativas humanas migrassem dos teatros, das óperas e apresentações de rua para ganhar as páginas dos jornais – nossa primeira mídia massiva. O que era tragédia já havia virado drama e, com o folhetim, histórias de cortesãs tísicas e de pacientes psiquiátricos tratados por um médico esquisitão – respectivamente, Lucíola, de José de Alencar, e O Alienista, de Machado de Assis –, entremearam-se com notícias de surtos de doenças, mortes de famosos e populares e novos tratamentos de saúde nas páginas de jornais e revistas brasileiras, no século XIX.
Das páginas para as ondas do rádio e, depois para os sinais captados pelas antenas de televisão, as narrativas seguiram marcando hábitos e costumes, ditando moda, sedimentando ideologias e hegemonias. A telenovela brasileira, no entanto, tem a distinta característica da crítica social, de misturar o melodrama burguês aos transplantes de órgãos, como em De Corpo e Alma (1993), ou amarrar à trajetória do herói em busca do seu passado a temas como clonagem humana e dependência de álcool e drogas, como em O Clone (2001).
As temáticas biomédicas juntam-se a tantas outras pautas sociais presentes nas novelas da TV Globo, sejam como tramas centrais ou secundárias, a partir da década de 1990. Mais do que reproduzir a marca do romance nacional novecentista, que reúne o açucarado e empoado romantismo burguês com o naturalismo estereotipado das camadas populares, esta opção narrativa é uma escolha de marketing e merchandising cultural.
Esse “serviço de utilidade pública” é entendido pela própria emissora como uma forma de “difundir questões de relevância social; incentivar a busca de soluções para a sociedade e estimular a mudança de atitudes e novos comportamentos. Tudo muito bem noticiado divulgado em seus telejornais, portais e balanços sociais.
É atribuído ao “Efeito Camila”, nome da personagem de Carolina Dieckmann em Laços de Família (2001), ter conseguido ampliar de 20 para 900 inscrições/mês de doadores de medula óssea. Rendeu também o BITC Awards for Excellence 2001, na categoria Global Leadership Award, “o mais importante prêmio de responsabilidade social do mundo”, segundo a emissora. Outra ação muito badalada foi a inserção de fotos de crianças desaparecidas no final dos capítulos de Explode Coração (1997), relacionado à trama secundária de Odaísa, personagem de Isadora Ribeiro, que teve o filho raptado para ser vendido a um casal de alemães. Naquele ano, o percentual de crianças encontradas, segundo o projeto SOS criança pulou de 55% para 80%.
Vale Tudo e o paradigma da mudança do marketing social para o surreal/comercial
Vale Tudo foi escolhida pela Globo como a novela emblemática das celebrações dos 60 anos da emissora e 100 anos da criação do maior conglomerado noticioso, midiático e de entretenimento nacional.
A versão original, de 1988, guardava a aura de ser uma obra de teledramaturgia como referência de debate político-social, dado o contexto da redemocratização; exemplar na construção de personagens simbólicos, elementos motivadores de forte apelo nostálgico e emocional. Um novelão, como dizem os apaixonados pelo gênero.
Contudo, estamos em 2025. Os 37 anos que separam as duas versões registraram as mudanças políticas, sociais, culturais e tecnológicas muito maiores do as vividas durante quase o mesmo período entre a chegada da televisão no Brasil, em 1950, para a primeira versão. Destaco duas: a hegemonia do neoliberalismo e a consolidação do meio digital.
Num mundo onde o capital é a única força motriz econômica, política e social, não há espaço para a luta de classes. Em um mundo no qual a fragmentação e aceleração tecnomidiática, seja em telas e formatos narrativos, pautam as formas de consumo cultural, não há espaços para personagens, pautas e tramas complexas. A equação mudou e conjuga imediatismo temático e representacional, disruptura com o real e marketing comercial. Esses elementos marcaram toda a novela, incluindo as tramas biomédicas, o que faz a novela ser um produto paradigmático e representativo do mundo contemporâneo.
A própria mídia, formada pela emissora, suas concorrentes e parceiras, e instrumentalizada por nós, consumidores-(re)produtores de conteúdo, traz os elementos de análise. Em julho, o site Veja Saúde já havia listado as “5 questões de saúde retratadas na novela da Globo [que] tem apresentado uma série de temas envolvendo saúde, comportamento e qualidade de vida”.
Pulemos a vida sexual das pessoas 60+ e infarto do personagem Rubinho e vamos começar pelo imediatismo temático e representacional do burnout de Renato Filipelli (João Vicente de Castro). Assim como rapidamente entraram na trama, as crises de estafa e a auto medicação com suplementos que provocaram o quadro de infarto no publicitário de sucesso (porém sem dinheiro) e o levaram ao hospital, passados alguns capítulos, toda a temática foi esquecida. Assim como a compulsão por jogo do então porteiro Vasco (Thiago Martins), que deu espaço para a virada rumo ao empreendedorismo do personagem e nem mereceu entrar na lista biomédica de Veja Saúde.
O tratamento narrativo dado à dependência alcoólica de Heleninha Roitman (Paolla Oliveira) representou a ponte entre o modelo de merchandising social das décadas de 1990 e 2000 para o exacerbado discurso do empreendedorismo social, articulado na protagonista esvaziada Raquel (Taís Araújo). Foi uma das tramas centrais que atravessou toda a novela, com muitas recaídas ao vício, entremeadas por consultas com a fina psicanalista Ana (Arieta Côrrea) – consultas essas que não surtiam efeito – e críticas às clínicas de internação como dispositivo de intervenção. Por meio do Alcoólicos Anônimos (AA), irmandade de tradição norte–americana que trabalha a sobriedade como um princípio que a herdeira Roitman conseguiu manter-se por mais tempo sóbria, até o desfecho da personagem tragada pela trama policial. Se a emissora fez questão de esvaziar o lado caricatural da bêbada tão bem interpretada por Renata Sorrah na primeira versão, não se furtou a, na mesma novela, fazer diversas “publis” com o Zé Delivery, rede de entrega domiciliar de todo o tipo de álcool da Ambev.
Como em Explode Coração (1995), a emissora utilizou os finais dos capítulos e inserções publicitárias com depoimentos de atores, incluindo Paolla, para mostrar os prejuízos decorrentes da dependência e divulgar o AA. O “efeito Heleninha” fez as buscas na web pelo AA aumentarem 150%.
Se o alcoolismo ganhou o selo de utilidade pública do marketing social, o diabetes de Solange (Alice Wegmann) foi puro comércio. Presente desde o início da trama, a mocinha publicitária recorria diariamente às canetas aplicadoras e a furos nos dedos para o controle glicêmico, teve desmaios em frente ao amado e seu medicamento quase foi adulterado pela arrivista Maria de Fátima. A Big Pharma (sempre ela!), trouxe, porém, a solução. Exibida com extremo didatismo e com a marca anunciada por Solange, a “publi” do FreeStyle Libre, medicamento eletrônico de controle contínuo da glicose, da fabricante Abbott, somou-se a mais de 46 outras ações publicitárias feitas por dentro do roteiro. O pano de fundo para esse excesso, junto com os valores cobrados, é o adestramento do público à plataforma de compra que se transformarão novelas, séries e transmissões esportivas com a TV Digital (DTV ou TV 3.0) a partir de 2026. A tecnologia foi anunciada com pompa pelo governo federal e a associação das emissoras televisivas, em agosto.

Por fim, o drama de Afonso, que descobre na metade da trama ter desenvolvido leucemia mieloide. O mocinho rico e esportista faz sua trajetória de herói ao confrontar a vilania corrupta da mãe e passar por um longo tratamento médico enquanto aguardava a localização de um doador compatível… que viria a ser seu irmão vítima de um acidente de carro e escondido pela mãe por longos treze anos.
A força imagética do modelo biomédico privado – grande hospital, quarto particular com hotelaria de luxo, médico de jaleco branco – se juntam com a surrealidade da trama e do rápido processo de autorização da doação por uma pessoa incapacitada – ainda que seja juridicamente possível. Mais uma estratégia visível da novela para gerar buzz nas redes sociais e alimentar a busca incessante de cliques dos portais de notícias, que publicam qualquer matéria a cada deslize, cada “publi”, cada mudança de caracterização, cada nonsense explorado meticulosamente pela direção artística e comercial da emissora.
De todas as estratégias largamente utilizadas pelo mercado como forma de captura, biomedicalização, didatismo de utilidade pública, marketing social e plataforma de comércio digital, a mais complexa e sensível ao pensamento crítico é o jogo da representatividade identitária. Cada vez mais, organizações e ativistas dos movimentos de portadores de doenças e agravos valorizam e se mobilizam para verem as narrativas de suas vivências na teledramaturgia. Influencers vibraram ao ver o dispositivo eletrônico na mocinha; comemoram o debate social proporcionado pela vivência do mocinho.
Da perspectiva dos movimentos sociais, nossas reivindicações, que cada vez vão menos às ruas, têm na representação e na identificação narrativa a principal estratégia de disputa para ocupar o debate social que se dá na sociedade justamente na arena digital. O mercado aplaude e acolhe, oferecendo junto o comércio, o patrocínio, o enfraquecimento do Estado e dos direitos sociais.
A força e hegemonia do pensamento biomédico não se dá apenas pela eficácia dos medicamentos da Big Pharma ou pelo poder da corporação médica. Esse poderio histórico e ideológico é reificado a cada grande personagem e cada narrativa catapultada pelas engrenagens do capital. Sem vilanizar essa perspectiva, mas querendo pautar o debate, fica a pergunta do título. Vale tudo para se debater saúde nas novelas?
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, contribua com um PIX para [email protected] e fortaleça o jornalismo crítico.