Lenacapavir: a Big Pharma exclui o Brasil
Medicamento possui eficácia de quase 100% na prevenção ao HIV. Pode ser peça chave para erradicar a aids – mas o país ficou de fora do acordo que garante acesso a preços razoáveis. É prova das injustiças do sistema global de patentes farmacêuticas
Publicado 17/10/2025 às 08:28 - Atualizado 17/10/2025 às 08:30

Nos últimos dois anos, o anúncio do lenacapavir foi uma das principais notícias a movimentar os meios científicos, políticos e econômicos ligados à resposta ao HIV/aids. Desenvolvido pela farmacêutica norte-americana Gilead, o medicamento demonstrou, em seguidos estudos, ter uma capacidade de prevenir o HIV de quase 100% quando utilizado como PrEP (Profilaxia Pré-Exposição, uma estratégia de prevenção ao vírus). Além disso, por ser ministrado através de injeções bianuais, registra uma adesão muito maior que as estratégias de prevenção baseadas em medicamentos orais.
Por tudo isso, diversos especialistas apontaram que o lenacapavir poderia ser decisivo para que a aids seja erradicada enquanto problema de saúde pública no mundo. No entanto, a ganância corporativa pode se interpor ao objetivo: o monopólio farmacêutico que produz o fármaco decidiu cobrar 44 mil dólares pelo tratamento anual de cada paciente. Na prática, o valor inviabilizaria sua aquisição pelos países mais afetados pelo HIV, em sua maioria pobres e localizados na África subsaariana.

Em parte, o preço astronômico era uma ferramenta de negociação. Após meses de pressões e discussões, anunciou-se em setembro um acordo em que a Gilead autoriza a produção do lenacapavir por fabricantes de medicamentos genéricos da Índia, que poderiam vendê-lo a 40 dólares a 120 nações “de baixa e média renda”. Apesar de cerca de um milhão de pessoas viverem com HIV no Brasil, segundo dados do Ministério da Saúde, o país está excluído do acordo.
O caso ajuda a escancarar a arbitrariedade e irracionalidade dos chamados acordos de licença voluntária. Segundo o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), “mais de 1 em cada 4 novas infecções por HIV ocorrem nos 26 países e territórios excluídos da licença da Gilead, incluindo Argentina, Brasil, México e Peru”. Coalizões internacionais já iniciaram a resposta: contestam a patente do lenacapavir em uma série de países. Entre outras demandas, exigem a “expansão do preço de US$ 40 a todos os países de baixa e média renda, não apenas aos escolhidos pela Gilead” – e incitam os governos a decretar a licença compulsória do medicamento.
Os limites da licença voluntária
Em matéria de outubro do ano passado, Outra Saúde explicou o que são as licenças voluntária e compulsória, uma informação importante para entender os detalhes do atual imbróglio. Como esclareceram a advogada Susana van der Ploeg e a farmacêutica Carolinne Scopel, ambas do GTPI, a licença voluntária é um “acordo entre o titular da patente e um terceiro, permitindo a produção e comercialização do medicamento sob determinadas condições”.
Por sua vez, a licença compulsória “permite que o Estado autorize a produção de um medicamento patenteado sem o consentimento do titular da patente”. Trata-se do instrumento popularmente conhecido como “quebra de patente”, aplicado em 2007 pelo Brasil no caso do efavirenz e em 2023 pela Colômbia no caso do dolutegravir, ambos medicamentos para HIV.
Na prática, argumentam as autoras, a licença voluntária serve apenas à indústria, e não aos povos. Tome-se o caso do lenacapavir. Com o acordo de fornecimento mais barato a 120 países, a empresa Gilead ganha uma manchete internacional que a apresenta positivamente. Além disso, reduz a chance de enfrentar processos judiciais, que questionariam o preço anterior de 44 mil dólares como uma verdadeira violação do direito à saúde. Por outro lado, a meta global de erradicar a aids até 2030 seguirá sendo pouco mais que uma miragem, já que países que concentram 26% dos novos casos de infecção por HIV continuarão tendo que pagar o valor mais alto.
Como se vê, os efeitos de saúde pública decorrentes do surgimento de uma tecnologia inovadora acabam sendo enormemente reduzidos pela busca do lucro. A situação se torna ainda mais revoltante pelo fato de que o Brasil foi um dos países que sediou os estudos que comprovaram a eficácia do lenacapavir. Isto é, a população brasileira, para a Gilead, serve para participar dos testes clínicos, mas não para usufruir de seus resultados positivos.
Em seu artigo, Susana e Carolinne também questionam a arbitrariedade dos preços de medicamentos impostos pelos acordos de licença voluntária, já que seus critérios não são claros ou transparentes – muitas vezes, não representam um valor justo. O Brasil, por exemplo, paga 20 vezes o preço internacional do dolutegravir, apesar de contar com um acordo do tipo. O cenário se repete no caso do lenacapavir. Um estudo publicado no periódico acadêmico The Lancet, que contou com a participação da química brasileira Eloan Pinheiro, estimou que o real custo de fabricação do fármaco pode ser de até 25 dólares. Portanto, até mesmo o preço reduzido de 40 dólares, a ser cobrado de 120 nações de renda média ou baixa a partir de 2027, seguiria representando uma espoliação promovida pela Gilead.
Para que não restem dúvidas quanto às prioridades da corporação farmacêutica do Norte Global, um estudo da organização Third World Network (TWN) demonstrou que a Gilead aplica ao redor do mundo uma série de táticas para estender seus direitos de propriedade intelectual sobre o lenacapavir, aproveitando-se de regras frouxas nas leis de patentes de determinados países.
Um comunicado recente da entidade humanitária Médicos Sem Fronteiras se soma às críticas: “Ampliar o acesso a essa forma inovadora de prevenção é essencial, num momento em que os serviços de cuidado para populações em risco de infecção pelo HIV estão sendo despriorizados pelos governos. Enquanto a Gilead continua a priorizar os lucros por sobre o controle da epidemia, as atuais estratégias de acesso [ao lenacapavir] cobrem menos de 10% das necessidades globais”.
Que fazer?
Há poucos meses, a Organização Mundial da Saúde recomendou o uso do lenacapavir para a prevenção do HIV. Ao anunciar a orientação, uma representante da agência das Nações Unidas para a saúde frisou que “já possuímos as ferramentas e o conhecimento necessários para acabar com a aids enquanto problema de saúde pública, o que precisamos agora é de ousadia para implementar as recomendações, com base na equidade e no empoderamento das comunidades”.
A recomendação põe um dilema ao poder público brasileiro. Uma nota do Ministério das Relações Exteriores comemorou o acordo de licença voluntária em 120 países, mas sem citar que o Brasil ficou de fora – assim como toda a América Latina e o Caribe. Adquirir o lenacapavir pelo preço exorbitante exigido pela Gilead significaria um escoamento colossal de recursos públicos, essenciais para o Sistema Único de Saúde (SUS), para os bolsos de uma corporação do Norte. Mas também não seria adequado ignorar a importância de garantir o acesso ao novo medicamento para todos que dele precisam.
Na realidade, o país não precisa ficar refém da Big Pharma. Como vem sugerindo uma campanha impulsionada pelo GTPI e pela Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia), a suspensão das patentes farmacêuticas dos Estados Unidos, medida necessária e urgente para defender a soberania nacional, pode e deve se estender ao lenacapavir, tendo em vista que o Brasil é um país onde mais de 1 milhão de pessoas convivem com o HIV e que já possui uma política de PrEP.
Além disso, como já sugeriu Alan Rossi em Outra Saúde, o Estado pode recorrer à capacidade produtiva e de pesquisa das farmacêuticas públicas para desenvolver e fabricar um genérico do lenacapavir e de outros medicamentos. A política atrasada de propriedade intelectual que o país possui desde a presidência de FHC, sugerem os especialistas, não pode ser prioritária em relação à garantia do direito à saúde das pessoas.
Resta ver se o governo brasileiro terá a “ousadia” citada pela representante da OMS para agir com altivez neste caso. Em diversos países, entidades já questionam na justiça as patentes do lenacapavir e instam os governos a decretarem a “quebra de patente”.
Othoman Mellouk, líder de Acesso a Diagnósticos e Medicamentos da coalizão ITPC Global, resumiu o cenário: “O lenacapavir pode ser uma virada de jogo – ou pode se tornar mais um escândalo de exclusão e lucro abusivo. Nossa mensagem aos governos é clara: vocês têm as ferramentas legais para agir – usem-nas agora. Aos fabricantes locais: o mundo precisa que vocês quebrem os monopólios e entreguem. E aos doadores: parem de endossar a exclusão e comecem a financiar o acesso para todos.”
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