Os Operadores Logísticos – e a fraude chamada Ifood

Entregadores, perspicazes, aprenderam a contornar o controle algorítmico e melhoraram sua renda. Por isso, a corporação precisou terceirizar a subcontratação – feita por humanos, nos moldes tradicionais de gestão e superexploração. Mas, diz ela, o “trabalhador é autônomo”…

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A palavra crowdsourcing ganhou relevância no debate político e acadêmico nos últimos anos com a ascensão das plataformas digitais. Ela é central no discurso destas empresas, que se apresentam como revolucionárias por alterar as formas de consumo e de trabalho. A ideia é que as plataformas mobilizariam uma multidão de indivíduos para cumprir uma missão específica (entregar comida, transportar uma pessoa com o seu veículo, consertar um eletrodoméstico de um vizinho etc.). Essa oferta (ou tarefa) é lançada por meio de um aplicativo, gerido por um algoritmo a partir de dados extraídos e processados em uma plataforma digital, que acabaria por conectar diferentes agentes (aqueles que demandam e aqueles que oferecem um serviço ou trabalho). Essa nova tecnologia teria encontrado uma forma radical de externalização do trabalho, acabando com as supostas “rígidas e arcaicas” regulações trabalhistas do século passado que tirariam a liberdade dos indivíduos. Não à toa, no início de sua expansão, elas se afirmaram como parte da “economia de compartilhamento”, criando-se uma visão positiva de si mesmas associadas falsamente à solidariedade, ao cooperativismo e a ecologia — como o combate aos desperdícios (de tempo, de resíduos, de força de trabalho não utilizada). 

Após mais de uma década de existência dessas plataformas, atuando em todo o globo terrestre, esse discurso mostrou-se uma falácia. Trata-se, na verdade, de uma velha estratégia ideológica adotada por estas empresas com o objetivo de se impor no mercado, moldar legislações e reconfigurar as relações de trabalho em favor do capital por meio da promessa de um futuro falso e ilusório: liberdades individuais, flexibilidade, hipermodernidades tecnológicas, eficiência, aumento da produtividade etc. Uma demonstração emblemática desse engano é a prática da subcontratação de empresas por parte destas plataformas digitais. Ao transferirem para terceiros (as subcontratadas) o recrutamento e a gestão do trabalho, recorrem a métodos tradicionais de gestão, contrariando o próprio discurso da inovação e da eficácia do crowdsourcing.

Em diversos locais, com especial destaque para Portugal, Espanha, China e Brasil, indivíduos ou pequenas firmas terceirizadas operam como intermediários na contratação e gestão da força de trabalho para as plataformas digitais, muitas vezes também ofertando o aluguel dos veículos utilizados para as entregas (Kuttler, 2023). Este é o caso dos intermediários de frotas de carros em Portugal, que se proliferaram após a aprovação da Lei 45/2018, conhecida como Lei Uber (Festi & Roque, 2025); e foi assim que se deu o funcionamento da Uber na Alemanha desde o início de sua atuação, como forma possível de receber a autorização governamental. No setor de delivery, esse estratagema também foi adotado para evitar obrigações legais, como no caso da Uber Eats e da Glovo na Espanha, após a aprovação da “Ley Rider”. Na China, que é o caso mais parecido com o brasileiro, as plataformas digitais de delivery de mercadorias têm há mais de uma década se utilizado da subcontratação de empresas como forma de aumentar a eficácia de seus serviços, diminuir os conflitos trabalhistas e aumentar o controle sobre os trabalhadores (Lei, 2021; Yang, 2024; Zhang, 2024).

No caso do Brasil, essa evidência se materializa na subcontratação dos Operadores Logísticos (OL) pela iFood, que constitui de fato um mecanismo clássico de intermediação e subordinação, reafirmando, sob novas roupagens tecnológicas, antigas formas de exploração do trabalho. Este artigo foca sua análise na iFood, pois atualmente é a empresa que monopoliza o mercado de delivery de aplicativos no Brasil. No entanto, a subcontratação também tem sido praticada pela Rappi e pela 99Food (a outra empresa chinesa que está chegando no Brasil, com o nome Keeta, é vinculada à chinesa Meituan, que se utiliza da subcontratação na China). 

As estratégias utilizadas pelas plataformas digitais para driblar os desafios legais ao seu modelo de emprego são muitas vezes vistas de forma circunscrita a um contexto nacional. No entanto, por se tratar de empresas globais, é necessário compreender que suas ações estão vinculadas a um movimento mais amplo, no qual as decisões tomadas se dão a partir de conquistas e derrotas em outras localidades, compondo assim, a uma estratégia maior voltada à imposição do seu modelo de negócio em todo mundo. Essa estratégia avança com a conquista da monopolização dos mercados e com as reorganizações estruturais da força de trabalho. Segundo um estudo comparativo relevante realizado em seis países e cinco continentes, verificou-se que as empresas se utilizam de cinco estratégias-chave em resposta às regulações: pressionar por mudanças regulatórias favoráveis (ativismo regulatório), acionar a justiça para defender seu modelo de negócios (litígios estratégicos), recorrer à subcontratação tática (terceirização), negociações com sindicatos e, por fim, ameaças de retirada de serviços do mercado local (Muldoon & Sun, 2024). 

Dentre as estratégias listadas, uma bastante utilizada pelas plataformas digitais de delivery de comida no Brasil tem sido a subcontratação. Segundo os autores do estudo citado, essa prática não corresponderia ao modelo de negócios propagado por estas empresas e, por conta disso, sua adoção ocorre em lugares que os trabalhadores conseguiram promover uma resistência significativa ao crowdsourcing (Muldoon & Sun, 2024). Apesar desse fenômeno ser fundamental na estruturação do serviço no nosso país, como é o caso das Operadoras Logísticas da iFood, ele tem sido pouco debatido para além daquilo que é mais evidente, isto é, servir como esteio para os processos trabalhistas. Ou seja, como as próprias plataformas digitais de delivery representam uma terceirização dos serviços prestados pelos estabelecimentos, no caso, a entrega de mercadoria (comida), a subcontratação de uma outra empresa para gerir a força de trabalho e realizar as entregas aparenta ser uma ação ilógica, já que isso impõe mais um agente nesse processo de externalização do trabalho. 

No entanto, o que tem sido pouco aprofundado é que a subcontratação feita pelas plataformas digitais de delivery de comida é a prova cabal do fracasso de seu modelo de negócio calcado no crowdsourcing. Na prática, o discurso contemplativo e empolgante, de que as novas tecnologias trariam uma revolução inevitável e superior aos modelos tradicionais de organização e controle do trabalho, sempre teve um caráter performático e ideológico construído para convencer a sociedade e seus agentes da sua inevitabilidade. Ele oculta as dificuldades e os limites que estas tais tecnologias disruptivas possuem para serem aplicadas (Carbonell, 2025). Assim, diante de eventuais resistências políticas, com a ajuda da mídia mainstream e por ações de lobby junto aos governos, parlamentos e judiciários, essas empresas conseguem se impor como modelo de negócio, mesmo que apresentem falhas e limitações reais.   

O Brasil é um caso realmente interessante, pois a principal empresa de delivery por aplicativo do Brasil, a iFood, não pode manter a eficácia dos seus serviços pelo modelo de crowdsourcing, que ela denomina de “Nuvem”. Nesse modelo, qualquer pessoa, em teoria, pode abrir uma conta na empresa por meio de seu aplicativo, cadastrar seus dados e começar a fazer entregas, recebendo pelas tarefas realizadas. Tal modelo de gestão seria a realização do sonho neoliberal de externalização total do trabalho por meio de uma individualização ao extremo, sem que a empresa tenha que se responsabilizar pelos custos do trabalho. A gestão do trabalho se daria por um taylorismo digital, no caso, a gestão algorítmica. É o algoritmo diuturnamente modificado, por programadores da empresa e com auxílio da Inteligência Artificial, quem está responsável por distribuir as demandas, propor trajetos, supervisionar e avaliar os entregadores e puni-los. Mas, na prática, o modelo não é tão bem-sucedido assim, pois, para conseguir cumprir suas promessas de entrega de mercadorias a empresa foi obrigada a criar um outro modelo de subordinação laboral, o chamado Operador Logístico (OL), gerido por jornadas rígidas de trabalho e controle e subordinação por meio de um gerente físico. 

Vale aqui uma observação: o OL tem sido o modelo principal de subcontratação da iFood, mas não significa que seja o único. Nos últimos anos, a empresa começou a adotar em alguns lugares as franquias vinculadas ao EntreGô. Após o modelo de OLs receber muitas críticas e processos judiciais, a empresa tenta alterar para tentar se desvincular da responsabilidade pelos entregadores subcontratados. No entanto, não passa de uma alteração estética, principalmente porque muitas das novas franqueadas são exatamente as antigas OLs.  

Por qual motivo a iFood — como muitas outras plataformas — optou pela subcontratação? Um dos principais motivos foi a resistência dos próprios trabalhadores. As experiências em vários países têm demonstrado que a gestão por crowdsourcing também apresenta limites e “falhas”, sobretudo porque os trabalhadores aprendem a resistir, a contornar o controle e a aumentar a sua renda. Ainda que os algoritmos das plataformas mantenham o seu código-fonte em segredo, diversas pesquisas mostraram que os entregadores foram capazes, por meio de suas experiências cotidianas e coletivas, de identificar as lógicas de seu funcionamento (Barratt et al., 2020; Meijerink et al., 2021). Descobrem, por exemplo, quais são os melhores horários e as melhores regiões da cidade para obter o maior número de entregas. No entanto, a iFood, ao perceber que os entregadores da Modalidade Nuvem estão se apropriando desses saberes por meio da prática do trabalho, têm alterado as formas de gestão para reformular as relações de subordinação. Além disso, a intermitência do trabalho prejudica a regularidade das entregas das mercadorias e, portanto, a promessa de eficiência do serviço. Diante disso, a iFood optou por implementar um modelo de subcontratação para não depender fortemente de trabalhadores de crowdsourcing. Com isso, a plataforma conseguiu garantir um serviço estável e bem controlado, sem as intermitências do Modelo Nuvem. Além da subcontratação, outro recurso que a empresa tem usado para resolver a ineficácia do crowdsourcing é a criação do chamado “subpraça” ou +Entregas. Neste, os entregadores têm que agendar o horário de trabalho, impondo-se um horário fixo, estar numa determinada região geográfica e aceitar todas as corridas que lhe forem atribuídas. Observa-se, assim, que o pouco espaço de liberdade — que a empresa tanto proclama conceder aos trabalhadores — é imediatamente negado por ela mesma, pois a preferência para a distribuição de tarefas se dá a esses modelos com maior controle pela empresa.

As empresas subcontratadas pela iFood, as OLs, em geral não estabelecem vínculos formais de trabalho com os trabalhadores, buscando transformá-los em prestadores autônomos de serviços. Em termos práticos, os trabalhadores se tornam subordinados tanto às empresas subcontratadas quanto à plataforma. A função central desta subcontratada é de gestão e controle da força de trabalho, atuando como um ator complementar ao gerenciamento algorítmico típico dessa modalidade de plataforma, como um “gato”, feitor, supervisor ou capataz. 

Um dos papéis das OLs é montar as escalas de trabalho de forma antecipada, garantindo o contingente necessário de força de trabalho nos locais e horários estipulados. Um entregador de subcontratada deve trabalhar em ao menos um dos três turnos fixos: almoço (10h às 14h), lanche da tarde (14h às 18h) e jantar (18h às 22h). É por conta disso que o trabalhador da OL tem menor autonomia que os do modelo Nuvem para fazer seu horário. Em geral, no primeiro caso, o entregador tem pouca margem para negociar folgas nos finais de semana. Além disso, o sistema de horários fixos, combinado com a gamificação, acaba fazendo com que os entregadores tenham uma jornada de trabalho extenuante. 

Assim, novamente diferente do discurso da plataforma, os entregadores das OLs estão sob um duplo controle. De um lado, por meio da plataforma digital da iFood, está subordinado à gestão algorítmica, exercida por meio do aplicativo ao qual está cadastrado. Ao mesmo tempo, está também subordinado à OL, que é gerida por um clássico gerente físico. Assim, está sobre um duplo processo de taylorização do seu trabalho e de hipersubordinação a outrem. 

As subcontratadas da iFood possuem contratos de prestação de serviço com a plataforma e são remuneradas pelo número de entregas realizadas. Elas são responsáveis por assegurar o funcionamento eficiente da rede de entregas de refeições e mercadorias e remunerar os trabalhadores (Costa, 2024). Dessa forma, a subcontratada (OL) acaba mascarando, simultaneamente, tanto uma informal quarteirização das atividades dos estabelecimentos comerciais atendidos pelos entregadores quanto uma informal terceirização da própria atividade-fim da plataforma digital. Desse modo, a subcontratada possibilita à plataforma exercer controle direto e pessoal sobre os trabalhadores, especialmente quando o controle algorítmico não é suficiente. 

A subcontratação é uma prova cabal da existência de limites no gerenciamento por algoritmos. Desta constatação se desdobra a pergunta a seguir: se o tal modelo de crowdsourcing, que representaria a principal inovação prometida pelas plataformas, não é eficaz, então qual a sua razão de existir? Na prática, as empresas-plataformas acabam por acentuar uma maior expropriação do conhecimento e da experiência de profissões já tradicionais e bem estabelecidas, e transformá-las em mercadoria. Buscam, assim, destruir as antigas relações de trabalho e de serviços para se impor no mercado e, com isso, obter o seu objetivo principal: a acumulação de capital. Portanto, do ponto de vista da resistência, a conclusão é que não precisamos deste tipo de plataforma e de tecnologia. Talvez esteja na hora de uma inflexão no debate público. Ao invés de questionarmos como essas empresas atuam, deveríamos questionar por qual motivo elas ainda existem. Dessa forma, em vez da dependência dessas plataformas orientadas pela lógica rentista, é preciso ampliar a busca por alternativas baseadas em princípios democráticos, colaborativos e solidários. Nessa direção, experiências como cooperativas digitais de trabalhadores, plataformas públicas de serviços, entre outras experiências, podem construir arranjos nos quais as tecnologias sejam utilizadas a favor e não contra a classe trabalhadora, orientadas para a distribuição de forma justa dos valores gerados pelo trabalho. A verdadeira inovação consiste em reinventar as formas de organizar o trabalho de modo que este sirva ao bem comum e não a acumulação privada de capital. Este deveria ser um princípio básico de uma sociedade democrática. 

Referências


Barratt, T., Goods, C., & Veen, A. (2020). ‘I’m my own boss…’: Active intermediation and ‘entrepreneurial’ worker agency in the Australian gig-economy. Environment and Planning A: Economy and Space, 52(8), 1643–1661.   

Carbonell, J. S. (2025). Un taylorisme augmenté: Critique de l’intelligence artificielle. Amsterdam. 

Costa, V. L. da. (2024). Aparência e essência nas relações de trabalho entre entregadores, a plataforma IFOOD e seus Operadores Logísticos na Justiça do Trabalho do Rio de Janeiro [Dissertação de Mestrado]. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 

Festi, R. C., & Roque, I. (2025). Representation, regulation and voice of immigrant couriers and platform drivers in Portugal. Globalizations, 1–19.   

Kuttler, T. (2023). Going on a ride with Lefebvre: Everyday contestation of platform mobilities in Mumbai. Applied Mobilities, 8(4), 361–377.   

Lei, Y.-W. (2021). Delivering Solidarity: Platform Architecture and Collective Contention in China’s Platform Economy. American Sociological Review, 86(2), 279–309.   

Meijerink, J., Keegan, A., & Bondarouk, T. (2021). Having their cake and eating it too? Online labor platforms and human resource management as a case of institutional complexity. The International Journal of Human Resource Management, 32, 4016–4052.  

Muldoon, J., & Sun, P. (2024). The Global Gig Economy: How Transport Platform Companies Adapt to Regulatory Challenges—A Comparative Analysis of Six Countries. Industrial Law Journal.   

Yang, B. (2024). Balancing flexibility and stability: The role of outsourced service stations in managing food‐delivery platform work in China. Industrial Relations: A Journal of Economy and Society.   

Zhang, H. (2024). Global Financialization and Local Labour Acquisition in China’s Platform Economy. The China Quarterly, 259, 785–803.  

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