A direita dividida e a escolha de Lula

Mudança no cenário político, que já era clara nas ruas, está nítida nas pesquisas. Mas Lula e a esquerda optarão por reconstruir um projeto de país, e fazer uma faxina no Congresso? Ou cederão à alternativa fácil de um acordo com o Centrão

Imagem: Andressa Anholete / New Yorker
.

Por Jean Marc von der Weid

Uma mudança na atitude de Lula e uma divisão inesperada da direita, devida principalmente à prepotência e às vacilações de Bolsonaro, estão criando um cenário político particular. A vitória da esquerda nas eleições presidenciais de 2026 tornou-se possível. Além disso, a entrada em pauta de temas como a justiça tributária e a redução da jornada de trabalho, somada às manifestações populares de 21/9, abriram a possibilidade de politizar a disputa. No entanto, a ausência de um projeto de país e a tentação de repetir, no próximo ano, a mesma clivagem e a mesma Frente Amplíssima de 2022, podem ser um tiro no pé. Em especial porque deixariam, na disputa crucial pelo Legislativo, terreno aberto ao Centrão.

O difícil encontro de Bolsonaro com a realidade mantém a extrema direita dividida entre o foco em salvar seu líder da prisão, manter fidelizada a base fanática e a necessidade de seguir adiante na busca de um candidato que possa carrear os 15 a 20% do voto bonsonarista “raiz” e atrair o voto da direita não bolsonarista (Centrão e outras denominações) para enfrentar Lula em 2026. Mesmo para um estrategista político de qualidade, compatibilizar os três objetivos seria difícil. Para a mediocridade dominante no Centrão e no clã Bolsonaro ela fica ainda mais dura.

O “capitão” está bloqueando as articulações eleitorais e se recusa a designar um “sucessor”, sobretudo um sucessor que não seja ele mesmo ou alguém da famiglia. Enquanto não aceitar que está fora do jogo político direto, as candidaturas deste amplo campo da direita e extrema direita não conseguem vingar.

O candidato in pectore da Faria Lima e do Agronegócio, entre outros da nossa podrida elite econômica, é o governador Tarcísio de Freitas. Mas ele morre de medo de ser bombardeado por Bolsonaro e sua família. Tarcísio teme uma candidatura puro sangue do bolsonarismo extremista que repita a aventura de Marçal em São Paulo. Se tiver que enfrentar Michelle no primeiro turno (Eduardo deve estar fora do jogo e os irmãos não têm a mesma tração dentro da bolha), ele teme ficar em terceiro, até porque Ciro Gomes aparece bem quotado e crescendo nas pesquisas.

Bolsonaro não tem estatura de articulador e estrategista político. Fora de palanques e motociatas, onde expressa em linguagem chula o seu pobre conteúdo de extremo reacionarismo, é trapalhão, vacilão e teimoso. Waldemar Costa Neto, presidente do PL, está cortando um dobrado para evitar as burradas do mito e a política kamikaze de Eduardo. Ele está louco para Bolsonaro sair do caminho para ele pôr em prática a sua estratégia, menos voltada para ganhar as presidenciais e mais para aumentar as bancadas do partido na Câmara e no Senado, acumulando forças para negociar com o novo presidente, seja quem for.

O Centrão tem o mesmo problema. Sabe que precisa do voto bolsonarista, mas também sabe que só isso não garante a vitória, sobretudo se a atual recuperação da popularidade de Lula se consolidar. Tarcísio, por sua vez, já vestiu a roupagem de bolsonarista raiz para garantir o voto da bolha, mas com isso perdeu espaço na direita tradicional. O Centrão já está procurando um substituto, mas os autoproclamados candidatos (Ratinho, Caiado e Zema) não aparecem como viáveis, por enquanto.

Resta o outsider Ciro Gomes, agora mais a direita que em todas as eleições anteriores. Mas seria uma surpresa se ele fosse ungido como candidato da frente empresarial que já se aglutinou em apoio a Tarcísio. O personagem não é exatamente confiável, dado seu caráter explosivo e as muitas reviravoltas políticas da sua trajetória. Só vai emplacar se tiver um ascenso vigoroso nas pesquisas e se tornar um concorrente incontornável para a direita e o centro-direita, mas pode ainda sofrer a concorrência de um candidato bolsonarista raiz no primeiro turno e até um voto nulo extremista no segundo, prometido por Eduardo “Bananinha”, para manter a tribo sob controle.

Nesse contexto muito inseguro, a direita navega às cegas, esperando que a esfinge fale e defina seu apoio e a participação da famiglia na chapa. Um dia, Bolsonaro admite a candidatura de Tarcísio com Michele como vice. No outro dia, o vice é Fábio. No dia seguinte ele volta a insistir na luta por sua anistia, embora esta pareça devidamente enterrada (na Câmara, por sua rejeição nas pesquisas; no Senado, por este estar interessado em ficar bem na fita; no STF e, sobretudo, nas ruas) e sem direito a extrema unção. Já o Centrão quer Tarcísio para presidente, um vice do seu próprio time, o apoio de Bolsonaro e a neutralização de Bananinha. Complicado conciliar tudo isso.

Enquanto a direita se estraçalha neste impasse, ampliado pela política de avestruz de um Bolsonaro que adia a sua saída do palco, Lula nada de braçada em um revival inesperado para quem viu sua popularidade e a avaliação de seu governo (que já não eram muito elevadas) derreterem no primeiro trimestre deste ano.

O tarifaço de Trump jogou em seu colo a bandeira da defesa da soberania; o voto pelo PL da impunidade (ou da impunidade da bandidagem) e o da urgência da anistia para os golpistas foi repudiado pela grande maioria em todas as pesquisas de opinião; as grandes manifestações de massa de setembro acuaram o Congresso e o bolsonarismo; a condenação dos golpistas pelo STF, bem avaliada nas pesquisas, colocou a direita parlamentar e a ultradireita na defensiva.

Tudo isto abriu caminho para o governo conseguir votar o PL do imposto de renda, habilmente defendido por Lula e a esquerda como o PL dos pobres contra os ricos. Por outro lado, o brilhante discurso de Lula na ONU rendeu dividendos eleitorais, sobretudo pelo contraste com o pífio discurso de Trump. Mais ainda, a inesperada “química” entre Trump e Lula, com direito o telefonema amistoso do protoditador americano ao nosso líder criou a expectativa de superação do tarifaço e desmoralizou a chantagem dos ultras do bolsonarismo, por enquanto.

Há e haverá problemas e desgastes no caminho de Lula até outubro do ano que vem.

As negociações com Trump podem decepcionar. A COP 30 tem tudo para ser um desastre ou, no mínimo, um fiasco. A economia, sujeita ao tratamento brutal dos juros estratosféricos pode derrapar. Mas o mais perigoso é a tentativa do governo de se acomodar com o Congresso, na esperança de aprovar uma longa série de projetos de lei que podem render dividendos no ano que vem.

A troca de favores, via liberação de emendas parlamentares é um perigo enorme, já que a aposta do bolsonarismo e do fisiologismo é a derrama de dinheiro em 2026 irrigando as bases de deputados e senadores em busca da reeleição, que pode superar a rejeição popular de suas excelências.

Continua faltando ao governo um projeto estratégico que enfrente as mazelas do país. A um ano das eleições, é mais importante demarcar-se da maioria parlamentar da direita e do fisiologismo do que se desgastar negociando projetos que serão derrotados ou desfigurados pelo Congresso. Como apelar para um voto demolidor em 2026 contra este Congresso malvisto pelo eleitorado, se o governo e os partidos ditos progressistas se lambuzarem em concessões à vala comum do bolsonarismo e do Centrão? O voto dos 12 deputados petistas e 21 do PSB e do PDT no PL da impunidade é uma demonstração do quanto a esquerda e a centro esquerda (?!) estão se nivelando com o resto da Câmara sob as vistas do povão.

É preciso levantar bandeiras e programas voltados para o futuro do povo e do país e deixar o desgaste de rejeitá-los no colo da maioria direitista, demarcando terreno para as próximas eleições. O governo segue com sua estratégia de distribuir benesses no varejo e concessões no atacado, apostando em uma melhora do nível de vida (emprego, renda, consumo) da população. Esquece que a precarização dos serviços públicos (saúde, educação, saneamento), herança histórica muito piorada pelo governo Bolsonaro e pela Covid, pesa na imagem de Lula para o ano que vem. E o problema da insegurança, embora de responsabilidade principal dos governadores, é percebido pelos eleitores como culpa do governo federal.

É claro que um programa estratégico de desenvolvimento inclusivo não é uma panaceia para um candidato incumbente, já que o eleitor sempre pode se perguntar por que tal programa não foi aplicado nos quatro anos de governo. A resposta óbvia é jogar a culpa no Congresso que, de fato, travaria qualquer projeto mais consequente. Mas a busca de acordos com a maioria parlamentar ofusca este discurso. Para o eleitor, a diferença entre a esquerda e o resto do Congresso se diluiu, com a rara exceção do voto pela isenção dos mais pobres no imposto de renda — e mesmo neste caso o governo perdeu uma oportunidade de mostrar quem é quem, com Lula dividindo os louros da vitória com seus algozes da direita, mirando na melhoria das relações do governo com este Congresso.

Apostar em uma eleição repetindo os contornos da última é um risco enorme. Em 2022, a luta era pela defesa da democracia e do Estado de Direito, contra o golpismo do bolsonarismo no poder. Deu certo, mas por muito pouco. Em 2026, temas mais colados na vida das maiorias devem prevalecer, se forem capazes de superar a derrama de dinheiro das emendas.

A direita, travada nas suas articulações pela burrice e imediatismo de Bolsonaro, entra na arena em posição desfavorável. Rezemos para que o mito continue vivo e teimosamente disruptivo até as eleições. Mas lembremos que nestas eleições, mais do que nunca, o que importa é uma vitória presidencial combinada com uma limpeza das “cavalariças de Áugias” do Congresso. Para isso vai ser preciso criar uma onda de esperança que empolgue o eleitorado e leve a uma ampla superação dos atuais 1% na diferença entre aprovação e rejeição de Lula.

PS: a limpeza das cavalariças de Áugias foi um dos Doze Trabalhos de Hércules. Vide livro de Monteiro Lobato.

Sem publicidade ou patrocínio, dependemos de você. Faça parte do nosso grupo de apoiadores e ajude a manter nossa voz livre e plural: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *