Autismo: clínicas para cuidar ou para adequar?
Centros voltados a pessoas com TEA multiplicaram-se no Brasil. Seguem uma demanda de mercado e são erguidos sem trabalho em rede nem afinamento com os princípios do SUS. Não estariam servindo a uma tentativa de ajustar indivíduos em vez de integrá-los?
Publicado 09/10/2025 às 08:47 - Atualizado 09/10/2025 às 09:51

Título original: A expansão do autismo e a armadilha do acesso a direitos pela via do diagnóstico
Estima-se que mais de 1.000 serviços públicos voltados para o atendimento ao transtorno do espectro autista (TEA) abriram desde 2021, no Brasil, de acordo com levantamento preliminar do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde Mental (NUPPSAM-UFRJ). Pouco ou muito? Para fins comparativos, o Brasil dispõe atualmente de cerca de 340 Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSij), implantados ao longo de 23 anos, destinados ao cuidado de crianças e adolescentes com transtornos mentais, e quantitativo semelhante de Centros Especializados em Reabilitação (CER) na modalidade reabilitação intelectual.
À primeira vista, a criação recente de mais de mil serviços públicos poderia ser lida como um avanço. Contudo, torna-se problemática quando se observa que tais equipamentos foram estruturados sem considerarem as diretrizes atuais para as Políticas de Reabilitação e de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde.
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A expansão do diagnóstico de autismo no contexto brasileiro atual e a demanda por acompanhamento especializado são elementos que, provavelmente, estão implicados na montagem desses serviços públicos TEA. No entanto, o que estudos apontam é que sistemas públicos de cuidado baseados na oferta de serviços guiados por diagnósticos constituem barreiras de acesso1, principalmente em países em desenvolvimento marcados por desigualdades sociais. Ações e estratégias específicas de intervenção, como as que podem ser necessárias para casos de TEA, devem ser operacionalizadas em dispositivos afinados com os princípios do SUS, que necessariamente trabalham articulados em rede.
Quais seriam os determinantes dessa disseminação de clínicas públicas em total independência das normativas das políticas de saúde até então vigentes? A proliferação de clínicas parece constituir mais um dos elementos envolvidos em um fenômeno recente na experiência brasileira que, tomando a categoria autismo como mote, expande a oferta de tecnologias específicas de intervenção, aumenta exponencialmente propostas legislativas e leis sobre o tema, inunda o mercado privado de produtos para consumo de autistas, organiza estratégias de marketing para promoção e valoração de empresas, dentre outros elementos que vêm marcando o cenário brasileiro desde 20192. Se consultarmos o site da Câmara de Deputados, usando “autismo” como termo de busca, podemos identificar mais de 300 projetos de lei em trâmite sobre o tema, tendo sido registrados 135 apenas no ano de 2023.
Aumento de diagnósticos de autismo?
O fenômeno da expansão diagnóstica de TEA não é exclusividade do Brasil. Muitas nações tem registrado aumento do diagnóstico de TEA, principalmente nestas últimas duas décadas, sem que haja estudos conclusivos a respeito de um real aumento da incidência ou da prevalência do autismo. As taxas de aumento registradas variam muito entre os países, como, por exemplo, a de 1/31 nos EUA e a de 1/806 em Portugal3.
Uma das justificativas para este aumento é a mudança nos manuais diagnósticos, que flexibilizaram critérios e ampliaram o número de pessoas passíveis de serem diagnosticadas. Assim, o autismo teria deixado de ser uma condição rara para se tornar um diagnóstico ‘popularizado’4. Outro fator diz respeito a narrativa sobre a existência de uma “epidemia de TEA”, associada à ideia de risco para as crianças, e consequente necessidade de intervenção especializada urgente, precoce e intensiva. Tal narrativa associaria uma política do medo (risco) a uma política da esperança, e assim vendem-se intervenções diversas com vistas à normalização das crianças e adolescentes. Este movimento incide na sociedade em geral e pressiona sistemas de saúde, educação, assistência social e justiça para a montagem de serviços exclusivos para TEA5.
A disseminação do senso de urgência e a inauguração de inúmeras clínicas públicas TEA nos últimos 4 anos no Brasil, no entanto, não fizeram cessar, ou mesmo reduzir, a ideia de desassistência ligada ao tema do autismo no sistema público de saúde. Mais importante e decisivo: não há quaisquer indicativos de ampliação do acesso e de qualificação do cuidado para os autistas nesses últimos tempos, especialmente para os casos de maior gravidade e complexidade, com agravos na saúde mental, com dificuldades significativas no laço social e com experiências familiares de sobrecarga e solidão.
Tratamento ou adequação?
Ao mesmo tempo, essa estratégia concentra esforços quase exclusivamente em tratamentos que prometem ajustar essas crianças a nossa realidade, recaindo unicamente nelas o peso da “ressocialização”. Perde-se a dimensão de olhar o entorno desta criança, desaparecendo junto a abordagem e questionamento de como poderíamos modificar os ambientes para aceitarem-nas, ao invés de apenas adaptá-las a uma realidade, que pode ser também o foco da não adaptação.
Paradoxalmente, no contexto da desigualdade e injustiça social brasileira, para uma parte importante da população, a atribuição de diagnóstico de TEA tem produzido acesso a direitos sociais e beneficiários que não seriam possíveis ‘sem o laudo de TEA’. Como podem direitos democraticamente instituídos dependerem de laudos médicos para que a população os acesse? Uma produção focada em clínicas, procedimentos, intervenções, produtos e cursos que, muitas vezes, dialogam mais com o desejo da sociedade de ajustamento destes indivíduos do que com a lógica de produção de inclusão. Mais coloniza do que potencializa a cidadania.
Ampliar o número dos dispositivos das políticas públicas oficiais, formar trabalhadores na perspectiva inclusiva de atenção e fomentar espaços de participação de usuários e familiares são caminhos apontados pelo SUS a partir do qual autistas e seus familiares poderão receber, sempre que necessitarem, cuidado digno e qualificado, respeitando o direito de existirem e de compartilharem das coisas do mundo com seus modos próprios de viver.
Referências:
- WHO. ATLAS Child and Adolescent Mental Health Resources. 2005
- MEDINA, C.G. et al. Uma análise sobre o aumento da prevalência do Transtorno do Espectro Autista em crianças. Brazilian Journal of Health Review (Curitiba), v. 7, n. 1, p.30-34, jan./fev. 2024.
- MÁLAGA, I. et al. Prevalencia de los trastornos del espectro autista en niños en Estados Unidos, Europa y España: coincidencias y discrepancias. MEDICINA. Ciudad Autónoma de Buenos Aires. V79, n.1, supl1, p. 4-9, abr. 2019
- ALMEIDA, M. L.; NEVES, A. S. A Popularização Diagnóstica do Autismo: uma Falsa Epidemia? Psicologia: Ciência e Profissão, v. 40, e180896, p. 1-12, 2020.
- Fernandes, ADSA; Couto MCV; Andrada, BC; Delgado, PGG. A expansão do diagnóstico de autismo no contexto brasileiro atual: incidência nas políticas públicas e na organização do cuidado. Revista Desidades. 2025
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