Os Brics crescem nas sanções dos EUA
Trump parece estar forjando a unidade que faltava ao bloco. Até países com tensões acentuadas, como China e Índia, se aproximam. Mas ainda faltam avanços. Eis uma proposta de prioridades – financeira, comercial, alimentar e energética – para alavancar o Sul global
Publicado 07/10/2025 às 17:27 - Atualizado 07/10/2025 às 18:19

Os Estados Unidos estão passando por uma crise de seu poder imperial global e estão sob pressão devido à intensificação da rivalidade dentro do sistema internacional. As táticas de Trump podem diferir das dos neoconservadores (democratas ou republicanos), mas servem à mesma estratégia.
Note-se que, de acordo com as regras do jogo de dominação americana desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a China está ganhando destaque e já ameaça essa hegemonia nas áreas econômica, tecnológica e monetária. Em outras palavras, pode ser uma questão de tempo até que os Estados Unidos sejam superados ou, no mínimo, obrigados a compartilhar a hegemonia global. Daí a necessidade percebida de virar a mesa e reconstruir uma nova ordem global, não mais baseada no livre comércio e apoiada por mais de 800 bases militares em todo o mundo.
Atualmente, as economias do bloco europeu estão estagnadas, enquanto a economia americana continua a crescer a um ritmo lento. Em 2024, os Estados Unidos cresceram 2,8%, o Reino Unido e a França 1,1%, e a Alemanha viu seu PIB encolher 0,2%. Em contrapartida, os países do Brics estão liderando o crescimento global. Em 2024, a taxa de crescimento da Índia foi de 7%, enquanto Indonésia e da China cresceram 5% e a Rússia 4,3% — enquanto a taxa de crescimento do Brasil foi de 3,4%.
O fortalecimento dos concorrentes dos Estados Unidos disparou um alarme. Isso levou à disseminação do sistema de sanções comerciais além da periferia capitalista, atingindo países como China e Rússia e buscando aniquilar qualquer tentativa de ascensão de uma potência eurasiana. Moscou enfrenta sanções pesadas pelo menos desde 2014, quando o povo da Crimeia votou esmagadoramente pelo seu retorno à Federação Russa, após o golpe de Maidan na Ucrânia derrubar um presidente democraticamente eleito e instalar um regime antirrusso sob a direção de Washington.
Por essa razão, o aumento generalizado das tarifas de Trump não está desconectado de outros ataques dos Estados Unidos ao sistema internacional de livre comércio. Em 2012, durante o governo democrata de Barack Obama, os Estados Unidos bloquearam a nomeação de novos juízes para o que chamavam de Supremo Tribunal de Comércio da Organização Mundial do Comércio. A justificativa era que o órgão favorecia a China e que havia ameaças à soberania americana, uma vez que, de acordo com a Constituição americana, um tribunal estrangeiro não poderia se sobrepor a um tribunal americano.
Quem tentou encontrar alguma racionalidade econômica, alguma lógica de política comercial, na decisão de Donald Trump de aplicar tarifas de 50% sobre as importações brasileiras não encontrou nenhuma. Os poucos parágrafos dedicados ao comércio aparecem apenas no final da carta que ele enviou ao presidente Lula da Silva em 9 de julho de 2025 e estão repletos de inconsistências.
O Brasil acumulou déficits comerciais persistentes com os Estados Unidos, o que significa que importa muito mais bens e serviços dos Estados Unidos do que exporta para o país norte-americano. No ano passado, de acordo com o Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (Ustr), as exportações de bens dos Estados Unidos para o Brasil totalizaram aproximadamente US$ 49,7 bilhões, enquanto as importações de bens do Brasil foram de cerca de US$ 42,3 bilhões, resultando em um superávit dos Estados Unidos de US$ 7,4 bilhões em 2024.
O campo de batalha brasileiro
A relação comercial entre o Brasil e os Estados Unidos contrasta, fortemente, com a da China, a qual fornece muito mais bens ao mercado americano do que compra, alcançando um superávit comercial de aproximadamente US$ 300 bilhões em 2024. Com base nos critérios peculiares que Trump usou para tributar os países no Dia da Libertação — uma obscura equação entre as importações dos Estados Unidos e seu déficit comercial com relativo a cada país —, o Brasil teria, na verdade, uma tarifa negativa. Em outras palavras, sob a mesma lógica, Brasília é que deveria tributar Washington em 8%.
O tão alardeado slogan Make America Great Again é resultado da desindustrialização dos Estados Unidos, que viu a manufatura migrar para o Leste Asiático. Nesse sentido, sobretaxar produtos dessa região supostamente incentivaria a repatriação da produção para o território americano.
O que acontece, porém, é que a cesta de exportações do Brasil para os Estados Unidos consiste principalmente em produtos primários e produtos industriais de baixa complexidade . Em outras palavras, não há racionalidade econômica por trás da medida. Pelo contrário, à medida que os produtos brasileiros ficam mais caros, os cidadãos americanos já estão sentindo o aumento nos preços de alguns alimentos, como a carne bovina, que disparou nas últimas semanas.
Trump chegou a suspender a tributação de uma longa lista de cerca de 700 produtos, incluindo suco de laranja, celulose, fertilizantes, aeronaves e suas peças (da Embraer) e produtos metalúrgicos intermediários, que permanecem com a tarifa anterior de 10%. Com as isenções anunciadas em 6 de agosto, Brasília estima que apenas cerca de 36% das exportações brasileiras serão afetadas pela tarifa de 50%.
Nesta fase, porém, já está claro que Trump está usando as tarifas como arma política para atacar a soberania brasileira, visando o presidente Lula e o Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF), em um cálculo que leva em conta as eleições presidenciais de 2026. Washington também invocou a Lei Magnitsky, que prevê sanções a indivíduos ligados ao tráfico de drogas e terrorismo, para punir alguns membros do STF.
O presidente dos Estados Unidos expôs as principais razões para seu ataque ao Brasil: ele exige que Lula suspenda o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusado de organizar uma tentativa de golpe de Estado em janeiro de 2023 contra o recém-eleito presidente Lula, como se a presidência tivesse autoridade sobre o STF. Trump também acusa o STF de desrespeitar a liberdade de expressão de empresas e indivíduos americanos, uma vez que o judiciário brasileiro tem buscado legitimamente regulamentar as plataformas de mídia social em casos criminais.
Em ambos os casos, o ministro do Supremo Alexandre de Moraes está liderando o processo. Há também rumores de que Trump estaria buscando atingir os principais países do Brics para enfraquecer o grupo e estaria de olho na segunda maior reserva de terras raras do mundo, localizada no Brasil. Esses ataques teriam, portanto, o objetivo de abrir negociações com o governo brasileiro sobre questões que ainda não foram divulgadas.
No entanto, a escalada da agressão dos Estados Unidos contra o Brasil – e muitos outros países – não se baseia nos caprichos subjetivos do presidente Donald Trump. É um erro atribuir essa ofensiva comercial, marcada pela metralhadora giratória de sanções, bloqueios e tarifas, exclusivamente ao mandato dos republicanos.
Hiperimperialismo bipartidário dos Estados Unidos
O governo de Joe Biden não apenas manteve as tarifas de Trump sobre produtos chineses, mas também impôs tarifas adicionais, incluindo veículos elétricos, painéis solares e turbinas eólicas, aumentando assim o custo da transição energética americana. Também intensificou as restrições ao acesso a produtos de alta tecnologia – como chips e máquinas de litografia – com sua política de “cerca alta, quintal pequeno”.
No segundo mandato de Trump, houve também um endurecimento do regime de sanções contra Cuba e Venezuela que o governo democrata havia mantido. Essas medidas, portanto, não podem ser entendidas como “pontuais” ou obra do “maluco” do Trump, mas sim como necessárias em um período em que o poder global dos Estados Unidos está sendo desafiado.
O que até então era um sistema de tarifas bilaterais e avaliações de blefe como em um jogo de pôquer, tornou-se um pacote global de aplicações tarifárias, incluindo – e especialmente – aquelas direcionadas aos parceiros políticos e econômicos históricos de Washington, como Canadá, México, União Europeia e Índia.
A saída dos Estados Unidos da Ogranização Mundial do Comércio (OMC) e o anúncio do pacote tarifário vêm com a justificativa declarada de enterrar o “Sistema Generalizado de Preferências” – um acordo autorizado pela OMC, mas regulado autonomamente pelos países, o qual garantia isenções tarifárias para as exportações de países pobres e periféricos para países desenvolvidos.
É por isso que Donald Trump não falou apenas de “liberdade”, mas também introduziu a noção de “reciprocidade” em seu discurso, buscando corrigir esse mecanismo, inicialmente concebido para proporcionar algum benefício aos países subdesenvolvidos. Isso explica as tarifas de 80% impostas a alguns países africanos, que contribuem de forma insignificante para a cesta comercial de Washington
Na prática, esse mecanismo tornou-se historicamente um obstáculo para os países em desenvolvimento, uma vez que tais isenções geralmente se aplicavam apenas a produtos primários e de baixo valor agregado, dificultando os processos de industrialização. Mas nem mesmo esse benefício limitado foi poupado pela Casa Branca.
Internamente, o anúncio de tarifas comerciais mais altas tem o apoio explícito de uma fração da burguesia dos Estados Unidos – as empresas não transnacionais –, que poderão conquistar parte do mercado interno fornecendo bens anteriormente importados. Por outro lado, as Big Techs – uma fração-chave da burguesia que apoia Trump plenamente – tem interesse em melhorar sua posição na acirrada competição tecnológica com a China, especialmente por meio de sanções e restrições no setor de alta tecnologia.
O setor “prejudicado” – as grandes multinacionais – seria compensado por outra medida importante anunciada no mesmo dia: uma redução substancial dos impostos domésticos. Nesse sentido, Trump adere a uma espécie de neomercantilismo moderno típico do século XIX, no qual o déficit comercial é coberto por tarifas de importação.
Na realidade, ele se comporta como um Robin Hood ao contrário: os pobres e a classe média pagam a conta pelo aumento dos preços internos, enquanto as grandes empresas se beneficiam pagando menos impostos.
Os dois pilares da economia americana
Talanúncio representa um golpe para dois pilares principais do sucesso recente da economia americana. O primeiro é o sistema comercial multilateral, o segundo a globalização. O primeiro deles, erguido sob a liderança dos americanos após a Segunda Guerra Mundial, com a instituição do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (Gatt) e a liberalização comercial que abriu caminho, precisamente, para o surgimento da OMC.
Esse sistema foi extremamente benéfico para os Estados unidos por quase 70 anos, até a crise econômica internacional de 2008. O segundo pilar é a globalização, que – curiosamente – começou com uma ação unilateral dos Estados Unidos reduzindo as tarifas comerciais e forçando outros países a seguirem na mesma direção.
Os Estados unidos já haviam passado por um período em que seu poder imperial estava ameaçado na década de 1970. Naquela época, sua autoridade imperial foi desafiada em três frentes: economicamente, com a superioridade da indústria pesada e automobilística japonesa e alemã sobre a americana; militarmente, com a derrota na Guerra do Vietnã; e monetariamente, com a articulação internacional de vários países desenvolvidos para substituir o dólar como moeda de reserva por uma cesta de diferentes moedas nacionais.
A tentativa de substituir o dólar, por sua vez, foi uma reação ao abandono do padrão-ouro pelo Banco Central americano em 1971. Com essa medida, Nixon resolveu o problema do crescente déficit fiscal dos Estados Unidos (sobrecarregado pelos gastos no Vietnã) e, ao mesmo tempo, lançou as bases para um mecanismo que continua sendo fundamental para o sistema financeiro global hoje.
O dólar fiduciário força os países a reciclarem seus dólares comprando títulos da dívida americana e financiando o crescente déficit fiscal de Washington, além de tornar o crédito mais barato para os consumidores americanos. O mundo literalmente começou a financiar o governo americano e seus cidadãos – o que o economista Michael Hudson chamou de superimperialismo.
Em 1979, surgiram dúvidas sobre o dólar após o fim de sua paridade metálica com o ouro e as subsequentes desvalorizações. Então, como agora, o imperialismo americano, quando ameaçado, não age defensivamente, mas sim ofensivamente. A resposta a esses eventos na década de 1970 foi, por um lado, aumentar substancialmente sua taxa básica de juros – que entre 1979 e 1981 subiu de 11% para 20,5%
A alta da taxa de juros americana no período atraiu um enorme fluxo de dinheiro para o país em busca dos títulos do tesouro pelo seu alto rendimento, cercando economicamente seus aliados, reafirmando a hegemonia do dólar e causando uma profunda recessão nos países do Terceiro Mundo, a histórica “crise da dívida”.
Por sua vez, o presidente americano Ronald Reagan iniciou um processo de desregulamentação do sistema financeiro que não só reforçou a manobra de Nixon, mas também se espalhou globalmente na forma do que hoje conhecemos como a “financeirização” da economia sob a hegemonia do dólar.
No caso do Japão, os Estados Unidos impuseram os Acordos de Plaza, segundo os quais o país asiático – ocupado por dezenas de milhares de soldados americanos desde o fim da Segunda Guerra Mundial – teve que aceitar uma forte valorização da sua moeda, o iene, destruindo a competitividade de seu setor de exportação, principal motor de seu crescimento econômico.
Militarmente, o governo Reagan aumentou os gastos com a indústria de armas (em grande parte financiada pela nova dinâmica financeira global) e acelerou a corrida armamentista contra a União Sovietica, sufocando fiscalmente seu adversário – que gastava mais do que podia para estar à altura – e ajudando a precipitar a crise que culminaria no colapso soviético em 1991.
Em suma, a ofensiva de Washington alcançou seus objetivos e os Estados Unidos garantiram seu status imperial no planeta. A partir de 1991, não tiveram mais rivais e afirmaram seu poder unipolar como nunca antes na história.
Estamos agora enfrentando um novo período de crise e questionamento da hegemonia americana. Desta vez, ao contrário do confronto anterior com os soviéticos, um único país assume simultaneamente o papel de rival econômico e político: a China. Desde 2014, o país ultrapassou os Estados Unidos em PIB em paridade de poder de compra e agora lidera em várias frentes tecnológicas.
Em janeiro de 2025, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, afirmou que a China é a maior “ameaça” ao seu país em toda a sua história, superando a União Soviética. Para efeito de comparação: em seu auge econômico em 1975, o PIB soviético em termos de paridade de poder de compra (PPC) atingiu 58% do americano. Em 2024, o PIB da China era equivalente a 133% do PIB dos Estados Unidos.
Na esfera militar, os Estados Unidos também testemunham o surgimento de adversários, nomeadamente a Rússia — que hoje possui a tecnologia de armamento mais avançada do mundo, como os mísseis hipersônicos Oreshnik, que nenhum sistema de defesa do planeta é capaz de deter — e a China, que tem anunciado inúmeras inovações em armamentos. Além da China, parece haver outra ameaça no horizonte da Casa Branca: o Brics. Portanto, Trump tem em seu horizonte um desafio maior do que tiveram Nixon e Reagan.
Trump está forjando a unidade que faltava ao Brics?
Ao atacar vários países ao mesmo tempo, as repetidas ameaças de Trump contra o Brics – desde sua campanha eleitoral até as feitas no primeiro dia da cúpula do grupo no Rio em julho – mostram que Washington reconhece o potencial desafiador que o bloco tem diante do enfraquecimento da hegemonia dos Estados Unidos.
Com o aumento do uso de sanções dos Estados Unidos nos últimos anos contra inúmeros países; a escalada do uso como armas políticas tanto do dólar quanto da Sociedade para as Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais – em inglês Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication ou, simplesmente, Swift, que serve para possibilitar transações econômicas internacionais. A isso se soma o roubo de reservas e ativos de países que desafiam Washington (Rússia, Venezuela, Afeganistão etc.).
Ainda, tivemos o avanço militar da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Ucrânia e o apoio da Casa Branca ao genocídio de palestinos em Gaza, fortaleceu-se, em cada vez mais países do Sul Global, a percepção de que os Estados Unidos deixaram de ser um parceiro confiável – ou mesmo desejável – e que alternativas devem ser construídas.
Não é por acaso que, nos últimos dois anos, mais de 30 países solicitaram adesão ao Brics. Duas rodadas de expansão ocorreram: em 2023 e 2024, aumentando o número de membros de cinco para dez países (a Arábia Saudita, convidada em 2023, ainda não tomou uma decisão) e estabelecendo uma nova categoria com dez “países parceiros”.
No entanto, apesar do importante passo da ampliação e de alguns avanços no Novo Banco de Desenvolvimento (o “banco do Brics”) desde que Dilma Rousseff assumiu a presidência em março de 2023, o Brics ainda tem enfrentado dificuldades para levar adiante projetos concretos de cooperação política, diplomática e econômica, sobretudo nas esferas financeira e monetária – a chamada “desdolarização” – com o objetivo de criar alternativas à hegemonia do dólar na economia mundial.
O grupo enfrenta agora um desafio crucial: a expansão aumentou o seu poder de fogo, mas a regra de avançar apenas por consenso travou projetos com potencial para lançar as bases da tão necessária nova arquitetura financeira e monetária global.
E agora surge Donald Trump, com seu tsunami de tarifas e chantagem no melhor estilo Don Corleone (“Vou fazer uma oferta que você não poderá recusar”), tendo como alvo, simultaneamente, nada menos que cinco países do Brics: China, Brasil, África do Sul, Irã (militarmente) e, para surpresa de muitos, também a Índia – o membro do grupo mais próximo dos Estados Unidos (e, ultimamente, um freio aos avanços na cooperação financeira dentro do grupo).
Com tais ataques, Trump ameaça a soberania desses países e até fere orgulhos nacionais há muito adormecidos. Sua intervenção nos cenários nacionais da luta de classes enfraquece os setores pró- Estados Unidos e anti-Brics/China/Rússia, ao mesmo tempo em que fortalece aqueles que advogam pela diversificação das parcerias econômicas e a aproximação com o bloco.
Isso está acontecendo agora com o Brasil, a Índia e a África do Sul, em um movimento semelhante às ondas anteriores de ataques ocidentais à Rússia (2014, 2022) e à China (desde 2018), quando os setores liberais e pró-ocidentais em ambos os países perderam terreno político para correntes mais patrióticas.
Na China, desde seu primeiro mandato, Trump ganhou o apelido de Chuān Jiàn Guó [川建国] por conta desse fenômeno – sendo Chuan a pronúncia chinesa de Trump, Jiàn significando “construtor” e Guó significando “nação” ou “país”, isto é, “Trump, o construtor da nação…chinesa”.
Quando lançou uma “guerra comercial” contra a China e depois as primeiras sanções no setor de tecnologia (inicialmente Huawei e ZTE), o presidente dos Estados Unidos despertou no país asiático a consciência de que não poderia mais depender dos e precisava acelerar o desenvolvimento de seu setor de alta tecnologia, como a produção de chips de ponta –Poderá desempenhar ele um papel semelhante com o Brics?
Nos últimos meses, testemunhamos um intenso movimento entre Rússia, China, Brasil e Índia, com telefonemas e visitas diplomáticas que já começam a mudar o panorama das relações diplomáticas entre as principais economias do Brics. As tensões acentuadas entre China e Índia nos últimos anos haviam prejudicado o progresso do grupo.
Por isso, as negociações bem-sucedidas entre ambos os países, com a visita do chanceler chinês Wang Yi à Nova Delhi, foram surpreendentes: não apenas em relação à longa disputa de fronteira, mas também aos acordos sobre terras raras, à autorização para a exportação de máquinas chinesas avançadas de perfuração de túneis e ao restabelecimento dos voos entre os dois países.
O premiê indiano Narendra Modi visitou a China pela primeira vez em sete anos para participar da cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) no final de agosto de 2025. As imagens das calorosas trocas e das mãos dadas entre Xi, Modi e Putin em Tianjin viajaram pelo mundo e se tornaram um símbolo da reaproximação entre os dois gigantes asiáticos, mediada pela Rússia.
Graças às suas boas relações com ambos os lados, Moscou desempenhou um papel crucial, primeiro na prevenção da deterioração das relações entre Pequim e Nova Délhi nos últimos anos e, agora, na paz que parece ter sido alcançada. Como o presidente Xi poeticamente colocou, é hora do dragão e do elefante dançarem novamente.
Será que o novo cenário geopolítico engendrado pelas ações de Trump fortalecerá a tão desejada unidade do Brics e despertará o potencial que suas parcerias estratégicas carregam? Ainda não sabemos. Mas vale a pena enumerar algumas das possibilidades que se colocam diante de um grupo que hoje representa quase 40% do PIB mundial em PPC e quase metade da população do planeta.
O Brics tem um enorme potencial, mas ainda faltam avanços concretos
A maioria das propostas em discussão no Brics diz respeito à reforma urgente da arquitetura financeira e monetária global – ou seja, a criação de alternativas ao “privilégio exorbitante” do dólar. Agora, vamos nos concentrar nessas propostas, embora existam outras iniciativas em outros setores, como saúde e soberania digital/inteligência artificial, propostas pela presidência brasileira do grupo em 2025.
Na Cúpula de Joanesburgo, na África do Sul, em 2023, o presidente Lula anunciou a criação de um grupo de trabalho encarregado de desenvolver propostas para um novo sistema de pagamentos internacionais (uma alternativa ao Swift), incentivando o comércio internacional em moedas locais. Em declarações à imprensa, ele propôs iniciar o debate sobre uma unidade de conta para o comércio intra-Brics
Desde então, embora nenhum acordo tenha sido anunciado, as negociações nos bastidores avançaram. Em 2024, durante a presidência da Rússia, algumas propostas inovadoras foram apresentadas e têm sido discutidas durante a presidência do Brasil neste ano. Abaixo, listamos algumas delas, em diferentes estágios de negociação:
a. Novo sistema de pagamentos internacionais: a criação de uma alternativa ao S, facilitando o comércio em moedas locais, tem o apoio do presidente Lula. O tema apareceu repetidamente no discurso da presidência brasileira do Brics este ano, apoiado pelo argumento da redução de custos nas transações e, diplomaticamente, evitando a linguagem de “desdolarização” ou mesmo “criação de alternativas ao dólar”. Do ponto de vista técnico, tal sistema não é difícil de implementar. China, Rússia e Indonésia já possuem seus próprios sistemas internacionais, que poderiam servir como base para uma possível integração em todo o grupo. A questão é política, uma vez que a Casa Branca não verá isso com bons olhos e alguns membros do Brics parecem, até o momento, temerosos de tal reação. Membros como a Rússia e o Irã, bem como a parceira Cuba, seriam imediatamente beneficiados, uma vez que atualmente estão excluídos do Swift pelos Estados Unidos. O comércio em moedas locais avançou significativamente em alguns casos, como entre a Rússia e a China (com quase 100% já liquidado em suas próprias moedas) e entre a Rússia e a Índia (cerca de 90% em moedas de ambos). A China e a Indonésia acabaram de anunciar que vão iniciar o comércio bilateral em suas próprias moedas, e a Índia — agora alvo da Casa Branca — declarou interesse em internacionalizar a rúpia. Diante dos ataques de Washington a vários membros do Brics, aumentam as chances de um acordo sobre o novo sistema.
b. Acordo Contingente de Reserva (CRA, em inglês ou ACR):criado em 2014 (juntamente com o Novo Banco de Desenvolvimento) esse fundo – concebido como uma alternativa ao FMI para uma eventual escassez de liquidez de reservas internacionais de algum país do Brics – possui US$ 100 bilhões em um pool virtual das respectivas reservas dos cinco países originais, divididos da seguinte forma: 41% da China, 18% da Rússia, Brasil e Índia e 5% da África do Sul. No entanto, ele jamais foi utilizado, pois os cinco países originais do Brics têm reservas sólidas e é muito improvável que precisem recorrer ao FMI. No entanto, no ano passado, os novos membros, Egito e Etiópia, tiveram que recorrer ao FMI, assinando acordos desfavoráveis às suas economias. O caso da Etiópia é o mais preocupante, pois assinou um empréstimo de US$ 10,4 bilhões (cerca de 8% de seu PIB, portanto relativamente pior do que o da Argentina) com as condicionalidades típicas do FMI, como a privatização de setores estratégicos (bancário e de telecomunicações) e a desvalorização de sua moeda (com a imposição do fim dos regimes cambiais no país). Agora, o país da África Oriental encontra-se nas mãos de Washington. O fato do Brics possuir um fundo intocado enquanto dois de seus novos membros devem sacrificar suas economias é uma grande contradição.Outro desafio a ser enfrentado é a ausência de uma “unidade de supervisão” do ACR para avaliar e monitorar quaisquer empréstimos, conforme previsto em seus estatutos. Sem ela, se um país solicitasse um empréstimo hoje, apenas 30% do montante poderia ser aprovado exclusivamente pelo Brics; os 70% restantes teriam que ser aprovados pelo FMI. Em outras palavras, um fundo criado para ser uma alternativa ao FMI ainda precisa do FMI para funcionar. Este ano, foram iniciadas negociações para uma revisão da ACR, que poderia resultar na expansão do fundo para todos os membros do grupo (eventualmente beneficiando o Egito e a Etiópia), bem como na incorporação de novas moedas – algo igualmente essencial. Se o ACR for capaz de apresentar uma alternativa concreta ao FMI, que tem sido, há décadas, um instrumento ocidental para impor o neoliberalismo às economias do Sul Global, seria uma vitória histórica para o grupo e demonstraria sua capacidade de criar alternativas ao sistema monetário dominado por Washington.
c. Companhia de resseguros do Brics:as companhias de resseguros são as seguradoras das seguradoras; ou seja, são as empresas que garantem a capacidade das seguradoras de honrar seus compromissos com os segurados, mantendo a estabilidade do mercado. A maioria das resseguradoras, no entanto, está sediada na Europa, com algumas nos Estados Unidos. No atual contexto geopolítico, elas se tornaram uma espécie de “polícia de sanções” ocidental, como no caso do “teto de preços” da Otan sobre o petróleo russo nos últimos anos. Suponha que um país esteja disposto a comprar da Rússia a um preço acima do limite da Otan. Nesse caso, ele não consegue garantir um seguro correspondente ao preço que está pagando, porque a resseguradora impõe às seguradoras o “teto” como seu limite. A criação de uma resseguradora do Brics proporcionaria, portanto, uma proteção contra as sanções ocidentais. Essa proposta é russa e foi apresentada durante sua presidência em 2024, e as negociações estão em andamento.
d. Bolsa de grãos:outra proposta russa, com negociações ainda em estágio inicial. No entanto, ela traz um enorme potencial, em vários níveis, para os países do grupo, com a possibilidade de estender seus benefícios a mais países do Sul Global. O ponto de partida é o fato significativo de que os 20 países que hoje compõem o grupo respondem por mais de 60% da produção global de arroz, aproximadamente 55% da soja, 50% do trigo e 46% do milho. Como disse o presidente Vladimir Putin ao lançar a proposta: “Se no Brics produzimos a maior parte dos grãos do planeta, por que seus preços ainda são definidos na bolsa de Chicago?”Uma bolsa de grãos poderia garantir maior transparência e maior influência dos países produtores sobre os preços e, portanto, combater os mecanismos especulativos tão comuns no mercado global. Também se discute a criação de uma espécie de “estoque regulador” de grãos do Brics; em outras palavras, caso um país enfrente problemas de abastecimento de determinados grãos, o grupo poderia garantir tal abastecimento. Essa seria uma conquista importante para a soberania alimentar coletiva dos países do grupo.
Há outro aspecto estratégico na proposta, que nos leva de volta à desdolarização. Esses grãos são commodities. Um dos pilares do dólar é o fato de que cerca de 80% a 90% das commodities (e isso também se aplica à energia e aos minerais) são negociadas na moeda americana. Isso obriga os países do mundo a buscarem constantemente dólares para importar produtos básicos, como alimentos e energia.Nada impediria que uma bolsa de grãos do Brics abrisse o mercado a outras moedas, como o renminbi da China, o real do Brasil, o rublo da Rússua, ou a rupia da Índia, reduzindo assim a quantidade de dólares necessários nas reservas internacionais destes países e tornando-os menos suscetíveis a problemas de liquidez.
Acordos semelhantes poderiam ser feitos no setor energético, uma vez que os países do Brics detêm cerca de 50% das reservas mundiais de petróleo e cerca de 60% das reservas de gás, além de liderarem a produção de energias renováveis (China, Brasil e Índia) e nuclear (China e Rússia). A posse de reservas e a produção de uma grande parte das principais commodities do planeta (energia, minerais e alimentos) trazem um enorme potencial geopolítico que o Brics vai precisar explorar nos próximos anos.
Muito se fala sobre o espírito de Bandung – a conferência histórica realizada há exatamente 70 anos na Indonésia – como inspiração para os Brics, mas no âmbito das commodities, o grupo também pode precisar aprender com o “espírito da Opep”, a famosa Organização dos Países Exportadores de Petróleo; ou seja, fazer uso de seu controle sobre boa parte do mercado global de commodities estratégicas para obter maior influência sobre os preços, maior renda e, eventualmente, como ferramenta de dissuasão contra o Ocidente coletivo.
A ampliação do Brics tornou as negociações muito mais complexas, e agora é ainda mais difícil chegar a um consenso. Talvez seja hora de discutir o próprio critério de consenso e considerar a possibilidade de que as propostas sejam implementadas por um grupo de países (cinco ou seis, por exemplo), com outros podendo aderir posteriormente, dependendo de sua avaliação da experiência.
Como podemos vislumbrar acima, há um enorme potencial na cooperação entre os países do Brics, mas é necessário começar a concretizá-lo. Se, nos próximos anos, o grupo não for capaz de demonstrar benefícios concretos para os povos de seus países, corre o risco de ter sua legitimidade questionada e se tornar um novo G77.
O apoio popular ao Brics também será essencial para garantir que, se um chefe de Estado recém-eleito decidir deixar o grupo (como Javier Milei fez na Argentina), a população pressione para que o país permaneça. No entanto, isso só acontecerá se a população associar o Brics a melhorias em suas vidas.
Os Estados Unidos veem sua hegemonia ameaçada, mas ainda têm meios para tentar reverter esse processo, como em outros momentos da história – inclusive por meio da guerra. Por outro lado, seus adversários no Sul Global nunca foram tão poderosos.
Ainda assim, caso não sejamos capazes de construir uma unidade política que resulte em ações práticas, o Império terá mais chances de manter seu domínio sobre o planeta com bombas, dólares e controle de dados. Propostas como as mencionadas acima ajudariam a minar a hegemonia do dólar e trariam benefícios reais para os povos de nossos países. Será que Trump é a faísca que faltava para incendiar a pradaria?
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