Isenção do Imposto de Renda: o “jabuti” da Câmara
Ganha sobrevida, no Congresso, artifício que pode manter privilégios tributários dos super ricos. Arthur Lira incluí no projeto de lei alteração que, na prática, empurraria a taxação de lucros e dividendos para 2027 e obrigaria a cortes de gastos sociais
Publicado 30/09/2025 às 18:36 - Atualizado 30/09/2025 às 19:53

A votação do Projeto de Lei (PL) 1087/25, que amplia a isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil e reduz a tributação para quem recebe até R$ 7.350, será o centro das atenções da Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (1º). Em função da adesão popular à proposta, o texto não deve sofrer modificações nessa parte, mas, como diz o ditado, o diabo mora nos detalhes. É na parte da compensação do dinheiro que vai deixar de ser arrecadado que outros interesses podem se manifestar.
O projeto também determina a criação de um imposto adicional para rendas anuais acima de R$ 600 mil (IRPFM), com alíquota progressiva de 0% a 10%. E passam a ser tributados em 10% de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) os lucros e dividendos quando o total superar R$ 50 mil por mês. Isso é uma exigência legal, já que a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) determina que, para haver concessão de isenção de tributos, é necessário haver previsão de medidas de compensação, que podem envolver o aumento de alíquotas de tributos existentes ou mesmo a criação de novos tributos.
Mais do que isso, também é uma forma de promover um mínimo de justiça tributária em um dos países mais desiguais do mundo, onde o sistema de tributação contribuiu para que esta situação se tornasse perene. A inclusão dos mais ricos no imposto de renda ajuda a corrigir, de forma ainda modesta, um cenário no qual, para o 1% mais rico, a alíquota efetiva é de 4,2% e, para o 0,01% mais rico, é de 1,75%.
Uma nota técnica do Observatório Brasileiro do Sistema Tributário destaca ainda que os ganhos da justiça fiscal não se limitam à questão da desigualdade econômica e social. Os pesquisadores apontam que “mais tributação sobre a renda significa mais democracia, em especial na necessária dimensão de igualdade que os regimes democráticos devem pressupor”.
“As maiores correlações entre democracia e tributação observadas no Brasil e nos países da OCDE são detectadas sobre o imposto de renda, antes daqueles incidentes em operações com bens ou serviços. Ainda mais notável é a detecção de que a maior correlação se encontra entre a chamada dimensão igualitária da democracia e o Imposto de Renda”, afirma o estudo.
Contudo, a resistência a qualquer mudança de impostos que atinja o chamado “andar de cima” tem uma resistência histórica no Brasil, com lobbies estruturados, em especial no Congresso Nacional.
Diferentes, mas quase iguais
Antes de ser agendada a votação do projeto do governo na Câmara, o projeto de lei 1952/19, sobre o mesmo tema, foi aprovado na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado na forma de substitutivo e seguiu para análise da Câmara dos Deputados, já que tramitou em caráter terminativo, sem necessidade de apreciação pelo plenário da Casa.
Embora o projeto que tramitava na Câmara tenha sido aprovado em Comissão Especial da Casa em julho, a matéria praticamente paralisou na Casa, justamente por conta das divergências sobre a compensação dos estimados R$ 25 bilhões de custo fiscal da isenção. Essa demora, aliás, foi a justificativa do relator da matéria no Senado, Renan Calheiros (MDB-AL) para que fosse retomada a análise e posterior votação do PL 1952/19.
“Até o presente momento, a matéria [PL 1087/2025] aguarda decisão para ser pautada naquela Casa [Câmara], gerando expectativas negativas quanto à tramitação deste tema, que é de grande relevância para a correção de injustiças tributárias com as pessoas de menor renda”, disse o senador na sessão em foi aprovado o substitutivo na CAE, em 24 de setembro.
Ali se explicitava uma disputa de protagonismo entre dois adversários históricos no estado de Alagoas, prováveis adversários, inclusive, na disputa pelas duas vagas em jogo no Senado em 2026, Calheiros e o deputado relator do texto na Câmara, Arthur Lira (PP-AL). Contudo, uma modificação feita na proposta original do Planalto foi replicada também no texto final do Senado, beneficiando os “endinheirados” e prejudicando o caixa do governo em 2026.
Justiça tributária adiada
Em artigo publicado no GGN, Clair Maria Hickmann e Carlos Eduardo Liberati Mantovani, respectivamente presidenta e diretor do Instituto Justiça Fiscal (IJF), alertam para a modificação que pode custar bilhões aos cofres públicos no ano que vem. Como dito acima, o projeto institui uma retenção mensal na fonte com a criação de um IRPF-mínimo, com alíquota de até 10%, aplicada sobre valores de lucros e dividendos pagos por uma mesma empresa a uma mesma pessoa física, quando o montante for superior a R$ 50 mil no período de um mês.
A alíquota cresce gradualmente até 10% para quem ganha R$ 1,2 milhão ou mais e alguns rendimentos são excluídos, como ganhos com poupança, herança, aposentadoria e pensão por moléstia grave, venda de bens e indenizações. O objetivo, afirmam os autores, é corrigir parcialmente uma injustiça tributária histórica: a isenção de lucros e dividendos distribuídos aos sócios, vigente desde 1996, quando foi instituída no governo Fernando Henrique Cardoso.
Um dos principais pilares do sistema tributário brasileiro é o chamado “regime de caixa”, ou seja, conforme a legislação (Lei nº 9.250/95), o “fato gerador”, aquilo que determina a necessidade de se pagar o imposto, é o recebimento efetivo dos valores. E a Constituição Federal estabelece regras de anterioridade para a criação ou aumento de tributos, definindo que uma lei só pode produzir efeitos tributários após respeitar três prazos: a anterioridade do fato gerador, a anualidade (validade apenas a partir do ano seguinte) e a noventena (carência mínima de 90 dias). O Imposto de Renda, no entanto, está dispensado da noventena.
Em seu texto final, o relator Arthur Lira incluiu no PL 1.087 um dispositivo que chama a atenção, prevendo que lucros e dividendos referentes a resultados apurados até 2025, e cuja distribuição seja aprovada até 31 de dezembro, não estarão sujeitos ao novo Imposto de Renda.
Na prática, as empresas costumam aprovar a distribuição de lucros ou dividendos apenas no ano seguinte ao fechamento do balanço, geralmente em março ou abril, após a realização da Assembleia Geral Ordinária (AGO). Ou seja, se um acionista receber valores em março de 2026, esse pagamento já configuraria fato gerador do IRPF daquele mês, ainda que se refira a resultados obtidos em 2025.
Com a mudança proposta por Lira, é criado um entendimento diferente, de que a tributação só poderia atingir lucros gerados a partir de 2026, mesmo que o pagamento a pessoas físicas ocorra no ano seguinte. Isso empurraria os primeiros recolhimentos para 2027, com ajustes na declaração de Imposto de Renda a serem feitos em 2028.
Algum desfalque em termos de arrecadação já era previsto mesmo sem essa alteração, com algumas empresas correndo para realizar a distribuição de lucros e dividendos em 2025 para escapar da tributação. No entanto, isso enfrentaria obstáculos burocráticos, em especial nas grandes empresas, onde a convocação de assembleias e outros ritos formais teria que ser acelerada ou, em alguns casos, por conta de questões até estatutárias, seria inviável de se realizar. Mas Lira facilitou a vida dessas pessoas jurídicas.
Clair Maria Hickmann e Carlos Eduardo Liberati Mantovani ressaltam que o fato gerador do IRPF, em relação à pessoa física que recebe os dividendos, não se confunde com o fato gerador do IRPJ na empresa que apura os lucros. Assim, o dispositivo pode ser visto como uma espécie de “jabuti” legislativo. Ainda que não seja estranho ao tema do projeto, é uma regra que não decorre da Constituição e cria uma espécie de autoimposição ao legislador.
A opção de adiar a cobrança acaba abrindo brechas para que empresas tentem antecipar aprovações e reduzir a base de incidência imediata do novo imposto com uma antecedência mais elaborada do que fariam com a vigência a partir de 2026, gerando perdas mesmo para o ano de 2027.
Alerta
“É importante e necessário retirar esse ‘jabuti’ introduzido em ambos os projetos e retornar o texto original do governo que garante, já a partir de janeiro de 2026, a retenção na fonte de IRPFM à alíquota de 10% (dez por cento) sobre lucros e dividendos em montante superior a R$ 50 mil em um mesmo mês’, observam os dirigentes do IJF. “A se manter tal dispositivo, ficará impedida a arrecadação de valores do topo da renda em 2026. Além de proteger os mais ricos do imposto de renda, pode provocar desequilíbrio fiscal que force cortes em programas sociais e gere instabilidade econômica no próximo ano.”
Em um contexto no qual o governo já se vê constrangido por decisões como a do Tribunal de Contas da União (TCU), que determinou ser irregular ter como foco o piso inferior da meta do resultado primário das contas públicas, e não o centro, essa perda arrecadatória pode trazer prejuízos a políticas públicas que já sofrem com o aperto do arcabouço fiscal.
Politicamente, isso ainda pode ser modificado antes da apresentação do texto para votação, em votação de eventuais destaques ou o presidente ainda poderia vetar o dispositivo, se arriscando a uma derrubada do veto em votação posterior no Congresso Nacional. Mais uma vez, é uma questão importante que deveria ter centralidade no debate político, mas que ficou oculta em função do rebaixamento das discussões em torno de temas centrais que, como se vê, interessam a uma parte muito pequena (e rica) da sociedade brasileira.
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