A Novo Nordisk mostra suas garras
Dona do Ozempic trava embate judicial para prorrogar seu monopólio sobre dois medicamentos. Caso merece atenção: se a corporação vencer, a extensão de patentes farmacêuticas pode voltar à moda. Seria um desastre para a saúde dos brasileiros
Publicado 30/09/2025 às 09:04

Por Ana Beatriz Tavares, para a coluna Saúde não é mercadoria
A recente decisão da Justiça Federal do Distrito Federal de atender a um pedido de extensão de prazo de patente feito pela empresa farmacêutica dinamarquesa Novo Nordisk não é apenas equivocada — é um retrocesso perigoso. Apesar de ter sido suspensa pelo TRF1, ao abrir esse precedente, a decisão da Justiça Federal do DF desconsidera frontalmente o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 5.529/DF, que declarou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da Lei de Patentes (Lei nº 9.279/1996), bem como os impactos nocivos à saúde pública ao fazê-lo.
Na ADI 5.529/DF, o STF eliminou de forma definitiva a possibilidade de ampliar, sob qualquer justificativa, o prazo de vigência das patentes no Brasil, encerrando uma distorção que favoreceu grandes corporações e prejudicou o interesse público por mais de duas décadas. Tentar restabelecer a extensão das patentes, por via judicial, representa não apenas a desobediência a uma decisão da Suprema Corte, mas também um ataque à segurança jurídica, à sustentabilidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e à própria justiça social.
Hoje há mais de 50 ações propostas sobre o tema, que visam judicialmente uma compensação sobre danos causados pela suposta demora da análise do INPI, com uma “indenização” temporal, para ampliar o tempo de monopólio no país. Ao reconhecerem a impossibilidade de recorrer de uma decisão da Suprema Corte, empresas passaram a ajuizar dezenas de ações em primeira instância, pedindo que o Judiciário estendesse o prazo de vigência de patentes específicas, caso a caso. Elas defendem a imposição de um mecanismo inexistente no Brasil, o Patent Term Adjustment (PTA), como uma estratégia jurídica da Big Pharma para manter monopólios injustificáveis.
No caso, trata-se dos medicamentos Victoza e Saxenda da Novo Nordisk, que têm como princípio ativo a substância liraglutida, utilizada para o tratamento do diabetes mellitus tipo 2, desempenha um papel essencial no controle dos níveis de açúcar no sangue, além de ajudar na perda de peso em alguns pacientes. A Conitec – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – ao avaliar a Liraglutida 3mg (Victoza e o Saxenda) para o tratamento de pacientes com obesidade, pré-diabetes e alto risco de doença cardiovascular, concluiu que o público-alvo seria de 805.527 pessoas. Contudo, em razão dos preços abusivos, os medicamentos não foram incorporados ao SUS.
Corporação argumenta de forma enganosa
Na iminência de ter suas patentes expiradas, a Novo Nordisk ingressou com o processo n° 1089024-07.2021.4.01.3400 na Justiça Federal da 1° Região, onde requereu a extensão do prazo de vigência da patente sob o argumento de que o INPI levou 13 anos para concluir a análise. A Novo Nordisk argumentou que não pretende contrariar a decisão do STF, mas sustenta que a Suprema Corte apenas se posicionou contra a prorrogação automática das patentes, e não contra eventuais ajustes em casos de demora irrazoável do INPI.
A fragilidade dos argumentos apresentados é tamanha que, desde o início, era evidente a inconstitucionalidade dessas ações. Num perverso jogo de tentativa e erro, essas empresas abusam da complexidade da matéria, recorrendo à prática conhecida como forum shopping para evitar varas especializadas em propriedade intelectual e induzir decisões judiciais equivocadas.
O argumento de que o monopólio de patente só se inicia com a expedição da carta-patente está incorreto. Na prática, já durante a tramitação do pedido no INPI, o depositante desfruta de um monopólio de fato, pois fatores legais e de mercado inibem a entrada de concorrentes. Em particular, o art. 44 da LPI garante ao titular o direito à indenização retroativa por exploração indevida da invenção, ainda que anterior à concessão da patente. Ou seja, mesmo na fase de expectativa de direito, a invenção está protegida.
É importante relembrar o voto do Ministro Dias Toffoli na ADI 5529/DF, que ressaltou ser injusta e inconstitucional a prorrogação de patentes de medicamentos, por privilegiar interesses privados em detrimento da coletividade, encarecer tratamentos e ameaçar o direito fundamental à saúde. O Supremo reconheceu que estender esses prazos atinge diretamente o Sistema Único de Saúde, restringe o acesso a medicamentos e compromete políticas públicas essenciais para a vida e a dignidade da população.
Defender o SUS significa rejeitar qualquer tentativa de prolongar monopólios que coloquem o lucro acima da saúde coletiva. Estudos do Instituto de Economia da UFRJ reforçam essa conclusão. Pesquisa conduzida por Julia Paranhos, Lia Hasenclever, Caroline Miranda, Daniela Falcão e Lorena Abbas da Silva estimou que tais extensões poderiam gerar gastos adicionais de R$ 365,6 milhões a R$ 1,1 bilhão nas compras públicas do SUS e de R$ 694,9 milhões a R$ 7,6 bilhões no mercado privado, elevando em 28% a 38% os custos para os consumidores. O estudo evidencia que a prorrogação judicial de patentes prolonga monopólios, atrasa a entrada de genéricos e aumenta de forma significativa os gastos públicos e privados.
Outro levantamento do mesmo instituto já havia demonstrado que o antigo parágrafo único do art. 40 — que permitia a extensão de patentes pela demora do exame — impactou fortemente o orçamento do SUS: entre 2014 e 2018, nove medicamentos geraram R$ 10,6 bilhões em despesas, com projeção de R$ 6,8 bilhões para períodos de extensão, além de indicar que poderiam ter sido economizados até R$ 3,9 bilhões se o dispositivo não existisse. Esses dados evidenciam de forma incontestável o peso financeiro e social dos monopólios farmacêuticos.
Os impactos na saúde pública
As discussões sobre extensão dos prazos das patentes vão muito além dos interesses individuais das partes, pois envolvem impactos diretos sobre a saúde pública, a livre concorrência e os custos do SUS. A concessão de extensões de patentes ameaça o equilíbrio concorrencial, encarece medicamentos e pode gerar prejuízos bilionários à coletividade.
A decisão de estender o prazo de vigência dessas patentes não é apenas uma disputa técnica sobre patentes, mas uma questão de vida. Ao favorecer o monopólio da Novo Nordisk, o Judiciário contribui para aprofundar desigualdades e negar o direito constitucional à saúde e abrir margem para outras farmacêuticas se utilizarem do mesmo artifício. O
O preço abusivo cobrado por esses medicamentos é incompatível com a realidade de milhões de brasileiros e, ao mesmo tempo, impede que o SUS incorpore tecnologias que poderiam salvar ou melhorar a vida de quem mais precisa. Portanto, não estamos falando apenas de normas de propriedade intelectual, mas de justiça social. É decidir se o Brasil continuará refém de interesses privados internacionais ou se vai reafirmar sua soberania sanitária, garantindo que o SUS cumpra sua função constitucional de equidade e dignidade.
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