A saúde mental, para além das campanhas
Mais do que ações como o Setembro Amarelo, o acúmulo da reforma psiquiátrica mostra que precisamos de políticas, serviços e comunidades que cuidem das pessoas. E de medidas por uma vida digna – como o fim da escala 6×1
Publicado 26/09/2025 às 08:46 - Atualizado 26/09/2025 às 09:08

Por Cláudia Braga, para sua coluna em Outra Saúde
Durante o mês de setembro circulou nas redes sociais a seguinte frase: “Sabe o que seria mais efetivo para prevenção do suicídio do que a campanha setembro amarelo? O fim da escala 6×1”.
É uma boa provocação porque revela um equívoco frequente quando se trata do tema de prevenção ao suicídio: associá-lo diretamente a um diagnóstico de transtorno mental – e, como amplamente recordado nas redes, essa campanha é uma criação da Associação Brasileira de Psiquiatria. Um dos problemas dessa associação é que a compreensão e a resposta ficam constritas nos mesmos termos da formulação do problema: se a questão se restringe a uma epistemologia da psiquiatria, a resposta será relativa ao que a psiquiatria pode oferecer.
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Tratar apenas como correlatos ou secundários o contexto econômico e social faz com que se retire da centralidade o próprio contexto de vida das pessoas, e as respostas para as desigualdades econômicas e sociais também passam a ser secundárias. Além disso, a experiência de sofrimento não é o mesmo que um diagnóstico de transtorno mental: o uso de uma ou outra expressão não se dá por mera escolha ideológica. Reduzir a experiência de sofrimento de alguém em sua relação com o corpo social a uma categoria de doença, como nos ensinaram os autores da perspectiva teórico-prática da desinstitucionalização, é operar pela simplificação, descontextualização e objetificação de existências.
No limite, a partir de uma leitura desse tipo não se produz saúde mental. Nega-se o sujeito em sua complexidade, história, subjetividade e em sua íntima relação com seu contexto social, que é locus de trocas e negociações. E nega-se o cenário real da vida: as condições de trabalho e de moradia, o acesso a serviços sociais e de saúde de forma contínua e como parte do cotidiano de vida, o que é ofertado ou negado como oportunidades de lazer e o que se constrói como possibilidade de projetar futuros, por exemplo.
A reforma psiquiátrica brasileira e a luta antimanicomial vêm afirmando isso há décadas: as pessoas precisam ser escutadas em suas necessidades e sofrimentos e precisam de trabalho e renda dignos. As pessoas precisam ter reconhecido seu valor social e precisam de um teto para morar. As pessoas precisam se sentir pertencentes a redes de relação e precisam de serviços que respondam às suas necessidades reais. As pessoas precisam sentir esperança no amanhã – e é preciso criar as condições para isso.
Políticas que cuidam
A necessidade de implementação de leis e políticas que garantam o direito ao trabalho, à renda e à moradia dignas é afirmada há décadas pelos mais diversos movimentos sociais, incluindo o da luta antimanicomial. São políticas necessárias porque são condições basais para viver com dignidade. E esses direitos, quando garantidos, criam abertura para ainda mais vida.
A redução de jornada de trabalho e o fim da escala 6×1, por exemplo, asseguram uma condição básica para viver a vida: tempo. É preciso tempo para viver a vida, para construir e viver relações, para descobrir o que cada um gosta e o que constrói sentido para a existência. É preciso tempo para experimentar o mundo, para pensar e para sentir. O tempo a mais não é apenas para descanso – que também é importante – ou para cumprir com outras tantas atividades da vida adulta.
Já o direito à moradia, enquanto outro exemplo de um direito que se expressa para além de sua própria materialidade, promove a experiência de segurança: ter uma casa é não ter a preocupação diária de batalhar por um canto para descansar o corpo, é saber que há um lugar de referência para voltar, e é ter um espaço real para construir permanência e futuro.
Dispor de tempo e experimentar segurança são condições importantes para projetar a vida, para inventar e buscar outros futuros para si, para os outros e para o mundo e para tornar reais os sonhos. E isso é fundamental para experimentar saúde mental.
Por isso a provocação das redes sociais à campanha setembro amarelo é tão pertinente.
Pepe Mujica disse certa vez: “Você é livre quando gasta tempo da sua vida com coisas que te motivam”. Para os que defendem a saúde mental e levam a sério a reforma psiquiátrica e a luta antimanicomial, o tema da liberdade – ser livre – é caro e inegociável: só há cuidado em liberdade. Essa defesa na maior parte das vezes é afirmada (porque precisa ser assim reafirmada, considerando as tantas instituições asilares ainda existentes) como a liberdade de circular, de ocupar e de viver os espaços da vida comum, sendo o único cuidado possível aquele oferecido junto aos territórios da vida compartilhada e em liberdade.
Mas a reforma psiquiátrica, ao colocar como horizonte a transformação da relação social com a loucura, também afirma a liberdade enquanto a liberdade de ser quem se é, celebrando as múltiplas formas de existência e de expressão singulares no mundo. E, para descobrir quem se é, também é preciso tempo e segurança: é preciso tempo para experimentar quem somos em diferentes relações, e segurança para arriscar experimentar coisas novas e descobrir o que nos alegra e compõe com a nossa existência. É preciso espaço na vida para experimentar o desejo que nos move no mundo.
Serviços que cuidam
Transformar as condições materiais de existência, assegurando o direito ao trabalho e à renda dignos, bem como à moradia e outras formas de bem-estar social, é fundamental para todos. Mas, para que não reste dúvida, também é necessário prover cuidado estratégico em saúde mental para quem precisa.
Para isso, é preciso investir em serviços que cuidam.
Em 2017, um ano marcado por retrocessos significativos na política nacional de saúde mental, que estava em desalinho com a reforma psiquiátrica, foi divulgado pelo então Ministério da Saúde em uma apresentação um dado muito interessante: “a existência de CAPS no município reduz em 14% o risco de suicídio”. O slide apresentava os fatores de risco e de proteção para o suicídio, e o único fator de proteção identificado foi a presença de CAPS, os Centros de Atenção Psicossocial parte da Rede de Atenção Psicossocial do SUS, nos municípios. Isso não é pouca coisa.
Os CAPS são serviços estratégicos de saúde mental substitutivos ao modelo asilar, de base comunitária, do tipo “portas abertas” e que constroem relação com o território a que pertencem – apenas para início de conversa. Os CAPS são serviços que, quando existentes nos municípios, transmitem a mensagem de que ali está presente ao menos alguém – um profissional, uma equipe inteira, um serviço – para cuidar de quem sofre.
Claro que nem tudo são flores e que os desafios para os CAPS cumprirem com seu mandato são muitos. Mas justamente esse dado sobre os CAPS coloca para os governos um dever ético e político de investir na expansão de uma rede de serviços de base territorial e substitutivos ao modelo asilar. E coloca uma direção para o legislativo: além de leis que melhoram as condições gerais das vidas das pessoas, o que precisamos é investir na Rede de Atenção Psicossocial para que essa rede se fortaleça de forma coordenada e articulada.
Os CAPS, em sua concepção, são serviços que assumem a responsabilidade pelas pessoas e pelos territórios de sua abrangência, e com investimento apropriado são vórtices de transformações no tecido social na construção de uma comunidade que cuida. Os CAPS são serviços em que a liberdade é princípio e horizonte.
Comunidades que cuidam
Certamente é muito mais possível construir percursos de cuidado em serviços de saúde mental quando há políticas e leis que cuidam. Qualquer trabalhador de saúde mental sabe, pela prática, que é muito diferente o percurso de cuidado de uma pessoa quando ela tem casa, comida, trabalho e acesso a uma rede de serviços, e quando esses direitos estão ausentes ou são negados.
Agora, além do acesso a direitos pelas políticas e do uso de serviços de saúde mental implementados, o cuidado requer pessoas.
De todos os recursos disponíveis e inventados para cuidar da saúde mental o mais importante são as pessoas. São as pessoas que, quando se dispõem a entrar com seus corpos em relação, escutando o outro em sua alteridade e sofrimento e operando com os conflitos que emergem das relações, transformam as relações e com isso transformam vidas; são os trabalhadores de serviços da Rede de Atenção Psicossocial que, junto às pessoas com necessidades e sofrimentos e em aliança com a comunidade, constroem percursos de cuidados e de cidadania. Não se é livre, nem se experimenta segurança sozinho.
O cuidado envolve uma sociedade inteira. Uma comunidade que cuida e que dispõe de tempo coletivo para isso e de segurança no amanhã para sonhar.
Como as redes sociais estão afirmando, assegurar a redução de jornada de trabalho e o fim da escala 6×1 é lutar de maneira ampliada pelo cuidado em saúde mental. Afinal, também como já disse Mujica, “a vida não é só trabalhar. Tem que deixar um bom capítulo para as loucuras que cada um tem”.
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