Mutações do financismo na era digital
Com inovações tecnológicas, fintechs abalam a hegemonia dos bancos tradicionais. Mas comungam da mesma essência: relações incestuosas entre o privado e o público. Tanto que BTG tem grande interlocução com Haddad e ex-presidente do BC ganhou alto cargo no Nubank
Publicado 23/09/2025 às 19:35 - Atualizado 23/09/2025 às 19:36

Os impactos provocados pelo desenvolvimento tecnológico sempre impuseram transformações efetivas na organização das forças produtivas. Os novos patamares alcançados na capacidade de produzir bens e serviços provocam mudanças na forma de se produzir e na definição daquilo que passa a ser manufaturado. Esse processo implica em alteração também nas formas de organização das empresas e em sua composição societária. Tais inovações acompanham a evolução da humanidade muito antes do advento do próprio capitalismo. Assim foi com a introdução de técnicas de manufatura em substituição ao artesanato. O mesmo ocorreu com a chegada da mecanização nos mais variados processos vinculados à agricultura.
A evolução na obtenção de novas fontes de energia, por outro lado, também contribuiu sobremaneira para mudanças estruturais na forma de produção. A máquina a vapor e depois a energia elétrica revolucionaram os processos produtivos. A capacidade de navegação para atravessar oceanos, a inovação das ferrovias, o transporte por veículos e depois a aviação proporcionaram transformações profundas na circulação e nas trocas mercantis. Foram criadas novas formas de capital e de mercadorias, bem como surgiram ramos, setores e empresas até então inexistentes.
O ingresso no terceiro milênio teve o significado de um profundo salto nesse longo processo de transformações. A era digital e a economia do conhecimento estão promovendo alterações de qualidade substancial em nossa forma de organização social e econômica. Dentre as inúmeras mutações observadas, salta aos olhos o que se verifica no âmbito do sistema financeiro. No que se refere à dimensão monetária, por exemplo, parece ter sido enterrado de uma vez por todas o uso do papel moeda e das moedas metálicas como instrumentos de troca. Em um primeiro momento, o avanço nos processos da financeirização e da internacionalização colocou em destaque o uso crescente dos cartões de crédito nas operações de compra e venda de mercadorias e de serviços.
Inovação tecnológica e mudança no sistema financeiro
No entanto, uma quase-revolução surge na sequência com a generalização do uso dos chamados dispositivos móveis. Nem mesmo a tendência anterior foi respeitada: o dinheiro de plástico representado pelos cartões foi sendo substituído em larga escala por meros impulsos digitais, quando os valores monetários são então transferidos de um titular de recursos a outro por simples comandos nos instrumentos utilizados. A tendência à digitalização completa de nossa vida social passou a incluir também a concentração dos serviços bancários e financeiros nos computadores pessoais ou nos aparelhos de telefonia celular.
A ideia de instituições bancárias como um sistema amplo e complexo, ostentando uma extensa rede de agências para oferecer todo o tipo de serviços aos clientes e correntistas, passa a ser, com o passar do tempo, um conceito tão desnecessário quanto ultrapassado. Como dizia uma campanha de marketing pouco tempo atrás, “você passa a ter o seu banco ao alcance de suas mãos”. A grande maioria dos usuários do sistema quase não se dirige mais fisicamente a uma unidade de atendimento presencial de seu banco. Tudo se resolve digitalmente por meio de comandos no aparelho celular ou no computador pessoal.
Essa transformação radical no modelo de uso de tais serviços levou a uma mudança igualmente profunda nas empresas do setor. As chamadas “fintech” e os bancos digitais passaram a competir com os bancos tradicionais, oferecendo soluções mais ágeis, mais rápidas, menos burocráticas e com menores custos para os clientes. Esse processo de metamorfose do sistema bancário e financeiro continua em pleno movimento atualmente. Inovações tecnológicas específicas realizadas no Brasil, como o sistema de transferência e pagamento PIX, estão operando como catalisadores de tal processo de aceleração da obsolescência dos bancos que operaram no modelo até então vigente.
Oligopólio financeiro mudando de perfil
O sistema bancário brasileiro tem suas origens na constituição de alguns poucos conglomerados de origem nacional, com forte influência de patrimônio de famílias tradicionais. O poder econômico derivado da concentração bancária e financeira proporcionou o crescimento do poder político de tais grupos. Alguns exemplos podem ser listados para ilustrar um determinado período da história brasileira, onde a associação do núcleo familiar e o respectivo banco e sua origem de atuação regional eram muito evidentes. Peguem-se os seguintes casos: i) família Magalhães Pinto (Banco Nacional-MG); ii) família Safra (Banco Safra-SP); iii) família Aguiar (Banco Bradesco-SP); iv) família Setúbal (Banco Itaú-SP); v) família Calmon de Sá (Banco Econômico-BA); dentre tantos outros casos.
Esse oligopólio bancário privado sofreu alterações em sua composição interna ao longo das últimas décadas, mas sempre marcou a sua existência por uma convivência relativamente harmoniosa com a estrutura existente dos bancos estatais. Até a década de 1990, havia um importante sistema de bancos pertencentes a cada uma das 27 unidades subnacionais, os bancos estaduais. Esse conjunto foi privatizado e a rede de bancos públicos se restringiu aos bancos comerciais federais — Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF), Banco do Nordeste e Banco da Amazônia. Além disso, havia o Banco Nacional da Habitação (BNH — que foi extinto em 1986 e incorporado à CEF) e permanece bem atuante o BNDES, como banco de investimento.
A longa tradição sempre foi marcada pela presença dos dois grandes bancos federais (BB e CEF) se revezando com alguns dos grandes conglomerados privados na disputa pela posição dos cinco maiores gigantes do sistema bancário e financeiro. O grupo multinacional de origem espanhola Santander penetrou no mercado brasileiro a partir da privatização do banco estadual de São Paulo, o Banespa. O desenho do oligopólio da banca privada foi se redefinindo por meio de aquisições e fusões, com a presença sempre marcante de Itaú/Unibanco e do Bradesco.
No entanto, o fenômeno da digitalização e das novas empresas de natureza bancária e financeira promovem uma reviravolta no sistema. Um levantamento realizado pelo jornal Valor Econômico aponta para o ingresso do Banco BTG e do Nubank nesse seleto grupo das maiores empresas bancárias e financeiras atuando no Brasil. De acordo com o estudo, o banco presidido por André Esteves ultrapassou, segundo dados do segundo trimestre de 2025, o BB e o Bradesco em termos de valor de seu ativo patrimonial a preços de mercado. Assim, o BTG teria se tornado o terceiro maior banco da América Latina, atrás somente do Nubank e do Itaú.
Empresas financeiras e bancos digitais na liderança
Esta informação, por outro lado, coloca em questão a presença de empresas no setor financeiro que não são consideradas juridicamente bancos pela nossa legislação. Esse é o caso do Nubank brasileiro, por exemplo. O Banco Central (BC) não o classifica como “banco”, apesar de que sua atuação seja muito similar à concorrência. Não obstante, o Nubank é classificado, segundo dados de setembro de 2025, como a segunda maior empresa de todos os ramos e setores operando no Brasil, com seu valor de mercado apenas superado pelo da Petrobrás. A própria empresa se apresenta como “uma das maiores plataformas de serviços financeiros digitais do mundo”.
É evidente que existem diferentes critérios para se avaliar o peso e a importância das empresas, em especial os bancos. Considerar apenas o valor de mercado delas, segundo a cotação das ações nas bolsas de valores, talvez não seja o mais indicado. Há outras variáveis relevantes que podem ser introduzidas na análise, a exemplo do número de clientes e correntistas, do valor patrimonial contabilmente apurado, do lucro realizado no exercício, dentre tantas outras possibilidades. No entanto, o que não pode ser deixado de lado é a confirmação da tendência de uma importância crescente a ser exercida pelas novas organizações empresariais.
Assim, com certeza não é coincidência o fato de que o ministro da Fazenda quase sempre escolhe os eventos organizados por grupos como o BTG ou a XP para realizar suas palestras direcionadas ao mercado. Ou ainda que o Nubank tenha trazido para exercer um estratégico cargo na direção do grupo ninguém mais nem menos do que o ex-presidente do BC, Roberto Campos Neto. Quer seja no passado do talão de cheque e da fila na agência física, quer seja no mundo atual das transações digitais, as instituições financeiras jamais deixaram de exercer seu poder efetivo junto aos tomadores de decisão no interior do aparelho de Estado.
As relações incestuosas entre o capital privado e o setor público não se alteraram em sua essência. Mudam apenas as faces de seus representantes, os sobrenomes dos dirigentes e as avenidas em que se localizam suas sedes suntuosas. Mas a influência do capital financeiro só aumenta com os novos tempos. A ponto de que o BTG construiu um terminal próprio no aeroporto internacional de Guarulhos (SP), justamente aquele que registra o maior movimento de passageiros em todo o país. Questão de oferecer comodidade, luxo e serviços exclusivos para sua seleta clientela, que sempre exige o melhor para satisfazer seus desejos e necessidades.
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