“Melhores hospitais”, marketing e fetiche da mercadoria
Hospitais públicos brasileiros constam na lista dos mais bem avaliados do mundo… Mas a quem serve essa avaliação? Um olhar mais atento aponta interesses por trás desse ranking – e como ele serve de peça publicitária para um mercado de lucros bilionários
Publicado 23/09/2025 às 09:25 - Atualizado 23/09/2025 às 11:24

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A movimentação do mercado da saúde privada e suas percepções na mídia e na ideologia são tópicos pouco explorados pelo jornalismo progressista, pelos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva e nas pesquisas em comunicação e saúde, se comparados com a quantidade de pautas e pesquisas dedicadas ao Sistema Único de Saúde e à equidade. Não deveria ser assim, pois as ações dos “players” comerciais impactam diretamente as discussões sobre os caminhos do direito à saúde nos três poderes, movimentam o imaginário e a opinião pública. Mais do que isso, mostram as engrenagens e as ligações dos grandes conglomerados econômicos, com destaque para os grandes grupos empresariais midiáticos, com o setor saúde.
Um bom exemplo dessa articulação foi a divulgação pela revista Newsweek do ranking “World’s Best Specialized Hospitals 2026” [Melhores hospitais especializados do mundo em 2026], no início da segunda quinzena de setembro. À superfície, ganharam alguma repercussão nos principais portais nacionais, como G1 e Metrópoles. Nessas matérias, a notícia publicada – ou seja, a informação-chave que sustenta o texto – é a presença de cinco hospitais públicos, “do SUS”, num total de 18 instituições brasileiras, num rol mundial de 2.125 indicações de hospitais especializados oriundos de 30 países e divididos em 12 áreas, como cardiologia, oncologia, endocrinologia e pediatria, entre outras.
As mesmas matérias e, principalmente, nas matérias de veículos regionais paulistas, valorizaram o fato de as unidades estarem concentradas no estado de São Paulo, e três dessas serem hospitais universitários. Encontra-se aí o primeiro erro ou falha de apuração. Na verdade, são quatro os hospitais universitários. São eles, Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas (SP); Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP); Hospital São Paulo (Unifesp); e o Instituto do Coração (InCor), que mesmo que administrado e mantido pela Fundação Zerbini, tem vinculação histórica e institucional à Faculdade de Medicina da USP. Somente o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, que é vinculado diretamente ao Executivo, no caso o governo do Estado.
Dentre as outras 13 instituições laureadas, seis delas são vinculadas ao Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (Proadi-SUS), o questionado e questionável programa do Ministério da Saúde que alimenta hospitais de excelência com verbas públicas para o desenvolvimento de projetos e protocolos, mas que não são porta de entrada aos cuidados de ponta por eles oferecidos para a população brasileira.
Para os leitores desinteressados o factual da notícia encerra nessas linhas. Contudo, esse não é o nosso caso. É importante olhar a metodologia e, principalmente, para os atores econômicos responsáveis pela pesquisa.
Em sua sexta edição, a pesquisa – conduzida pela empresa de pesquisas de mercado Statista R em colaboração com a divisão de rankings da revista – está apoiada em três pilares: pesquisa online mundial com profissionais; dados conferidos a partir das certificações e acreditações obtidas pelos hospitais; e a adesão e dados decorrentes da implementação de Medidas de Resultados Relatados pelo Paciente (PROMs).
A coleta desse conjunto de dados ocorreu entre os meses de maio e julho de 2025. Na pesquisa online mundial, o principal público ouvido foi o de médicos, seguidos de “outros profissionais de saúde”, sem especificação, e gestores hospitalares de todo o mundo. Os participantes tinham de recomendar hospitais com base em sua expertise primária, sendo essa uma resposta obrigatória, e expertise secundária, esta podendo ser uma resposta opcional. Solicitou-se que os respondentes não indicassem seus próprios estabelecimentos e/ou locais de trabalho. Contudo, o documento metodológico não explicou como foi feito esse controle. Essa primeira etapa concentrou o maior peso ponderado de toda a pesquisa, representando 85% do valor total das notas.
Uma lista de mais de 40 acreditações e certificações hospitalares foram analisadas e checadas com os hospitais citados para avaliar os padrões estruturais e de qualidade das instituições. Essa segunda etapa auferiu peso de 10% no total das notas distribuídas para a formação do ranking.
O último critério, e que responde pelo peso de 5% do valor total das notas, é também uma acreditação, dessa vez, com forma de indicador da implementação de Medidas de Resultados Relatados pelo Paciente (PROMs, sigla em inglês). O indicador é uma ferramenta do International Consortium for Health Outcomes Measurement (ICHOM), organização sem fins lucrativos criada por Michael Porter (Harvard Business School), Stefan Larsson (Boston Consulting Group – BCG) e Martin Ingvar (Karolinska Institute). A composição dos fundadores indica o interesse central nesse mercado global de hospitais especializados que, segundo a divulgação da pesquisa, movimentou cerca de US$ 74,87 bilhões em 2023, e cuja projeção indica alcançar até US$ 176,53 bilhões até 2032.
Nesse jogo de ganha-ganha do complexo econômico industrial da saúde, todos levam o seu naco. O sistema midiático é alimentado por um produto que, em que pese todos os critérios estabelecidos, funciona mais como uma plataforma de negócios e de captação de publicidade, neste caso, a serviço dessa grande empresa internacional de mídia, mas largamente utilizado pelo conjunto das empresas de mídia, tanto nacionais como internacionais.
Os hospitais, por sua vez, colocam seus departamentos de marketing para ampliar e destacar a imagem dessas instituições frente à opinião pública, reforçando o fetiche da mercadoria que se transformou o combo hotelaria cara, excesso de exames e corpo clínico grifado – ainda que os médicos não passem mais do que 5 minutos nos quartos, muitas vezes sem sequer olhar para o paciente.
Ganham as empresas de consultoria e as plataformas acreditadoras, que veem seu peso crescer na organização dos sistemas de saúde e, principalmente, os acionistas e diretorias dessas instituições, as fortunas pessoais por trás de empresas e organizações, sejam com ou sem fins lucrativos. Nessa engrenagem midiática-médico-financeira, pouco importa se há 5 hospitais paulistanos do SUS numa listagem internacional. De rankings, marketing e fetiche da mercadoria vive a comunicação da saúde privada, enquanto a saúde pública segue negligenciada tanto de recursos monetários como do capital cultural que alimenta o imaginário social.
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