Amazônia: Três hidrovias na mira da privatização
Governo avança com projeto de concessão de rios para escoamento do agronegócio. Análise do decreto mostra que dragagens, poluição e expansão da fronteira agrícola são alguns dos problemas previstos. Projeto atropela escuta e participação dos povos
Publicado 22/09/2025 às 17:30

Por Nicoly Ambrosio, na Amazônia Real
Manaus (AM) – No fim de agosto, o governo Lula (PT) assinou o decreto nº 12.600 e avançou uma etapa no processo de implementação da nova política de concessões dos rios do país para o mercado, começando pela região amazônica. O texto incluiu as hidrovias dos rios Tapajós e Tocantins, no Pará, e Madeira, no Amazonas e Rondônia, no Programa Nacional de Desestatização (PND). O projeto de entregar mais de 3 mil quilômetros de trechos navegáveis dos rios amazônicos para a iniciativa privada atender aos interesses do agronegócio e de outros setores econômicos. Às vésperas da COP30, em Belém, indígenas e defensores ambientais ouvidos pela Amazônia Real alertam para os impactos ambientais e, mais uma vez, a falta de consulta da decisão.
“Nos sentimos com os nossos direitos violados. Não ouviram os povos indígenas nas margens do rio Tapajós”, garantiu Lucas Tupinambá, vice-coordenador do Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita), que representa 14 povos indígenas do Baixo Rio Tapajós. “Essa hidrovia não é para a gente, é para a soja, é para as grandes transportadoras mundiais. Que desenvolvimento é esse, sem a participação dos ribeirinhos, dos pescadores, dos indígenas? Que desenvolvimento é esse que vai matar a mãe dos peixes, o que é mais sagrado para nós, que são os rios?”, protestou Alessandra Korap Munduruku em suas redes sociais. “A COP30 está chegando, mas a gente já percebe os grandes acordos que estão sendo feitos agora com as grandes empresas.”
Auricélia Arapiun, liderança indígena do povo Arapiun, membro do conselho deliberativo da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e coordenadora do Comitê Gestor da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (CG-PNGATI), considera o decreto de Lula um ataque direto aos direitos dos povos tradicionais.
“Receber uma notícia dessa de quem deveria proteger nossos rios, de quem deveria ter vetado todo o PL da Devastação, para nós, povos indígenas que sobrevivem e dependem da Amazônia, é um golpe, é uma traição. É receber uma punhalada pelas costas. Fazer hidrovias não condiz com a realidade que estamos vivendo. É como se o governo brasileiro estivesse na contramão do combate à crise climática.”

Em maio deste ano, uma resolução publicada pelo Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) já recomendava a ampliação da participação privada em setores de infraestrutura. As futuras concessionárias deverão assumir a responsabilidade de executar serviços de dragagens, balizamentos, sinalização, gestão ambiental e controle de tráfego aquaviário nos rios, atualmente feitos pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit).
O atual projeto de leilão das hidrovias foi lançado em 2023 com o nome Plano de Geral de Outorgas (PGO) Hidroviário, pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) e Ministério dos Portos e Aeroportos (Mpor). No início deste ano, o programa incluiu o rio Tapajós no Plano para transporte de soja, minérios e outras commodities. Com o decreto assinado por Lula, indígenas da região do Tapajós e movimentos sociais da região passaram a questionar a viabilidade do projeto e a ausência de consulta às populações do rio.
O projeto da Hidrovia do rio Tapajós contempla cerca de 250 quilômetros de via navegável entre os municípios de Itaituba e Santarém, no Pará. No rio Tocantins, o traçado deve se estender por 1.731 quilômetros, entre Belém (PA) e o município de Peixe (TO). Já a Hidrovia do Madeira prevê a navegação entre Porto Velho (RO) e Itacoatiara (AM), conectando-se ao rio Amazonas em um percurso estimado de 1.075 quilômetros. Os trechos atravessam territórios quilombolas, ribeirinhos, indígenas, além de unidades de conservação. O rio Madeira é um dos principais afluentes do rio Amazonas.
Processo de concessão
O Mpor, em parceria com a Antaq, a estatal Infra S.A. e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), conduz os estudos técnicos para estruturar os projetos de concessão das hidrovias. Segundo o governo, a promessa é modernizar a navegação e reduzir custos logísticos no transporte de grãos e minérios do Mato Grosso para o chamado Arco Norte, complexos de transporte rodoviário, ferroviário e hidroviário responsáveis pelo escoamento dessas cargas e insumos pelos portos ao Norte do Brasil.
Outras obras que ameaçam a vida e os territórios dos povos tradicionais da Amazônia estão na rota do Arco Norte, como a construção da ferrovia conhecida como Ferrogrão e a ampliação do asfaltamento da BR-163, considerada rota essencial para o escoamento da produção do agronegócio da região Centro-Oeste, com acesso direto ao porto de Miritituba (PA). Os principais investidores portuários privados do Arco Norte incluem grandes corporações do agronegócio e mineradoras como Hydro, Alunorte, Bunge, Cargill, Grupo André Maggi e Vale.
Os estudos específicos para a concessão da hidrovia do Tapajós ainda não foram concluídos. No entanto, o governo afirma que análises preliminares realizadas pelo Dnit apontam que o rio tem potencial para receber navegação de cabotagem (entre portos do próprio país) e de longo curso (ligação com portos internacionais), desde que sejam feitas obras de dragagem corretiva e aprofundamento do canal. Caso essas intervenções ocorram, o volume de embarcações que circulam pelo Tapajós poderá ser ainda maior do que o inicialmente previsto pelo governo.
O problema é que o trecho do rio Tapajós entre as cidades Itaituba e Santarém já é ameaçado pelo avanço do escoamento de cargas do agronegócio.
Auricélia Arapiun explicou que o rio Tapajós sofre múltiplas pressões com contaminação por mercúrio, projetos de barragens e hidrelétricas, portos construídos para o escoamento do agronegócio e o impacto de agrotóxicos e estiagens severas.

Para a liderança, os projetos de concessão reforçam uma lógica que desconsidera a vida dos povos amazônidas. “Privatizar o rio e construir hidrovias não é para nós, não é pensando em nós, não é pensando na nossa navegação, não é pensando no quanto a gente depende desse rio para nossa subsistência. É para o agronegócio, para as grandes empresas, para facilitar a vida deles, não a nossa.”
Em entrevista à agência Reuters o diretor da Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação do Ministério de Portos e Aeroportos, Otto Burlier, disse que o Brasil tem potencial para ampliar em 20 mil quilômetros a exploração de hidrovias, e que a primeira concessão ao setor privado deve acontecer no início de 2026.
Segundo Burlier, o projeto de concessão da Hidrovia do Paraguai já foi encaminhado ao Tribunal de Contas da União (TCU), etapa final antes da publicação do edital de leilão. Considerada estratégica para o escoamento de cargas do Centro-Oeste, a hidrovia se estende por 600 quilômetros, ligando Corumbá (MS) a Porto Murtinho, na foz do rio Apa, na fronteira com o Paraguai.
Impactos podem ser severos

O decreto das hidrovias valida oficialmente o cronograma previsto para as concessões. O processo se inicia com a elaboração dos estudos técnicos, passa por audiências públicas, análise dos documentos pelo TCU, publicação do edital, leilão do projeto e, por fim, assinatura do contrato entre governo e concessionária.
Em nota enviada à Amazônia Real por e-mail, o governo federal afirmou que o projeto que se encontra em estágio mais avançado é o da Hidrovia do rio Madeira, que atravessa 11 municípios ao longo de seu trajeto entre os estados de Rondônia e Amazonas. O Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA) para a hidrovia foi apresentado em abril pela Infra S.A. à Antaq. A outorga terá prazo de 12 anos, com previsão de transporte de 13 milhões de toneladas anuais no início da operação, podendo chegar a 21 milhões de toneladas. O governo destacou que a audiência pública sobre a concessão está prevista para os próximos meses, mas ainda sem data para acontecer.
Em fevereiro, a Antaq e o BNDES assinaram o contrato para estruturação dos projetos de concessão das hidrovias dos rios Tocantins e Tapajós. Durante a assinatura, o diretor-geral da Antaq, Eduardo Nery, celebrou o início oficial da elaboração dos estudos dessas hidrovias e afirmou que o pontapé inicial dos projetos vai acontecer em breve.
Johnson Portela, especialista do GT Infraestrutura e Justiça Ambiental (GT Infra), pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e militante do Movimento Tapajós Vivo, analisou os impactos do decreto 12.600 a pedido da Amazônia Real. Segundo ele, a decisão de concessão das hidrovias à iniciativa privada vem com alto custo. Dragagens, poluição, perda cultural e social são alguns dos problemas previstos.
“É uma opção clara do governo por priorizar a expansão do corredor logístico do Arco Norte para escoamento de soja, milho e minérios reduzindo custos logísticos. Essa ação do governo mira ainda mais o incentivo do agronegócio na região, tanto por usar os rios como vias, como consequentemente a expansão da fronteira agrícola, ou seja, está leiloando os rios, a vida que estão nas águas e ao redor desses territórios já ameaçados e com presença de comunidades, povos e cidades”, afirmou Portela.
Segundo o pesquisador, os impactos não começam agora. Desde 2002, com a chegada do agronegócio na região e a construção do primeiro porto em Santarém, o rio já sofreu pressão ambiental. “Falar de impacto futuro é não esquecer do que já se tem hoje de estrutura para o agronegócio. Hoje a produção de soja e milho está em ascensão no médio e no baixo Tapajós, subindo o rio. Já são cerca de 28 portos ativos, portos de todo o tipo, para escoamento, combustível e fertilizantes. E isso causa impactos também nas cidades, inchaço migratório, especulação imobiliária, ausência de zoneamento urbano”, observou.
Portela alerta para os efeitos da privatização, como o aumento da pressão por novos portos, intensificação do tráfego comercial e dragagem que vai afetar pesca, transporte de pessoas e o ciclo natural dos rios. Além disso, há risco de contaminação por mercúrio nos trechos com garimpo e pelos agrotóxicos usados nas lavouras de soja.
“O rio é rua para comunidades tradicionais e indígenas, como vão conseguir pescar e chegar na cidade ou em outras comunidades e aldeias se o trânsito impossibilita isso? Todos esses processos, conectados com o projeto da Ferrogrão e duplicação da BR 163, é o que chamamos de efeito sinérgico de impactos socioambientais, com privatização dos rios, mais incentivo e mais impacto, um efeito dominó de destruição”, explicou.
Sobre os procedimentos para concessão, Portela alertou que o fluxo agora segue para estudos técnicos, econômicos e ambientais (EVTEA), modelagem pela Antaq e trâmites no TCU para o leilão das concessões. “Algumas obras, como dragagem e derrocamento, que já estavam em andamento, o decreto apenas legitima o processo. No caso do Tapajós, a concessão poderá levar mais tempo devido à tramitação do EVTEA e dos processos administrativos”, afirmou.
O geógrafo Brent Milikan, membro da Secretaria Executiva do GT Infra, declarou que a decisão do governo atropela a participação social na elaboração dos projetos. “Inicialmente, fizemos um pedido de informação à Casa Civil, já que o decreto foi baseado numa resolução do Conselho do PPI, para saber quais critérios embasaram a decisão. À primeira vista, parece um processo atropelado, ainda mais considerando que o Plano Nacional de Logística 2050, previsto para ser lançado na COP30, e outras políticas estratégicas do governo, estão em elaboração”, disse o pesquisador.
Ele se referiu ao instrumento de Consulta Pública para recebimento de contribuições às matrizes origem-destino de cargas que subsidiarão a elaboração do Plano Nacional de Logística 2050. O objetivo é permitir que a sociedade possa contribuir nas etapas intermediárias de elaboração do plano, garantindo participação social em sua construção.
O que dizem as autoridades

Em nota enviada à reportagem, o Ministério dos Portos e Aeroportos declarou que o decreto das hidrovias representa uma etapa necessária para avançar nos estudos técnicos e ambientais que irão subsidiar as futuras concessões. O órgão explicou que apenas após a conclusão e aprovação desses estudos pelos órgãos de controle será possível definir o cronograma dos leilões. O MPor afirmou que a política inédita de concessões hidroviárias tem como objetivo “modernizar a logística nacional, reduzir custos de transporte e aumentar a eficiência energética da matriz de transportes brasileira”.
Segundo o ministério, a expectativa é que os editais para essas hidrovias sejam publicados a partir de 2026, após aprovação pelos órgãos de controle. No Arco Norte, a estratégia é considerada fundamental para o transporte de bens essenciais como combustíveis e cargas gerais, além do escoamento da produção agrícola e mineral. O governo afirmou que o modelo permitirá maior previsibilidade para a navegação e possibilitará à população local um serviço gratuito de transporte de passageiros.
Segundo o governo, a navegação já existente nesses rios não exige licenciamento ambiental, enquanto intervenções de infraestrutura, como construção de instalações portuárias e dragagens, dependem de licenciamento específico. Os critérios centrais para a modelagem das concessões incluem viabilidade econômica, eficiência logística, sustentabilidade socioambiental e segurança da navegação. Os EVTEAs definirão as intervenções obrigatórias, como dragagem, sinalização, gestão de tráfego, monitoramento hidrológico e medidas de gestão ambiental.
Ainda de acordo com o governo, os contratos preservarão o uso comunitário, garantindo gratuidade para embarcações de passageiros, mistas e de pequeno porte não comercial. O modelo também contempla ações sociais e a gestão de Infraestruturas Portuárias Públicas de Pequeno Porte (IP4), consideradas essenciais para as comunidades ribeirinhas.
O governo afirmou que os estudos ambientais específicos para cada hidrovia serão realizados na fase de licenciamento, conforme as solicitações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e demais órgãos competentes, com Termos de Referência próprios. Nessa etapa, será garantida a participação de comunidades indígenas, ribeirinhas e quilombolas, por meio de consultas e audiências públicas, presenciais e virtuais. Antes de qualquer decisão final, disse o governo, serão conduzidos estudos socioambientais detalhados para identificar impactos, riscos e medidas de mitigação relacionados à navegação e às obras previstas. Entre os aspectos a serem avaliados, estão segurança da navegação, pesca, abastecimento local e mudanças na dinâmica socioeconômica regional.
Especificamente no caso das hidrovias Tapajós, Madeira e Tocantins, os estudos de impacto ambiental deverão analisar biodiversidade, qualidade da água, dinâmica das comunidades locais e cenários de estiagem e cheias intensas decorrentes das mudanças climáticas. “No caso do Rio Madeira, as secas históricas de 2023 e 2024 já foram incorporadas como variáveis críticas”, informou.
Por fim, o governo ressaltou que a inclusão das hidrovias no Programa Nacional de Desestatização não representa decisão final de concessão, mas marca o avanço do processo. Antes da definição dos leilões, reforçou que serão realizadas consultas específicas às comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas, “assegurando o direito à consulta prévia, livre e informada, conforme a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)”.
O processo, segundo a pasta, também incluirá audiências públicas regionais e nacionais, com a participação de sociedade civil, universidades, governos locais e órgãos de fiscalização, “garantindo transparência, aceitação social e legitimidade às concessões”.
A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) informou que não participou da formulação do decreto das hidrovias. Segundo a instituição, a Funai não trata diretamente de concessões públicas ou instrumentos congêneres como os abordados no decreto. O foco do órgão está nos processos de licenciamento ambiental, conduzidos pela Coordenação-Geral de Análise de Impacto Ambiental (CGAIA) e pela Coordenação-Geral dos Planos Básicos Ambientais (CGPBA), conforme normatizado pela Portaria Interministerial nº 60.
Questionada sobre seu papel no acompanhamento do processo de concessão das hidrovias, a Funai esclareceu que “a CGAIA e a CGPBA não possuem atribuições relacionadas a processos de concessão de hidrovias”. De acordo com o órgão, a competência dessas coordenações se restringe ao licenciamento ambiental de empreendimentos que possam afetar terras e povos indígenas, “independentemente de o empreendedor ser público ou privado”.
A Funai afirmou que atua para garantir os direitos dos povos indígenas no âmbito de sua competência, especialmente no cumprimento da Convenção 169 da OIT. Dessa forma, reforçou que qualquer empreendimento que venha a ser desenvolvido nas hidrovias concedidas, “caso necessite de licenciamento ambiental e possa afetar terras ou povos indígenas, deverá cumprir a legislação ambiental vigente e seguir os procedimentos adotados pela Funai no âmbito de processos de licenciamento”.
A mobilização dos povos do rio Tapajós segue intensa. “É muita indignação que a gente sente, mas a gente, o povo do Tapajós, o povo do rio, sempre resistiu e não é agora que um decreto vai calar a nossa voz. As mobilizações vão continuar. As estratégias de defesa dos nossos rios, dos nossos peixes, da nossa floresta, elas vão continuar e não é o decreto do Lula que vai nos parar”, disse Auricélia Arapiun. Lucas Tupinambá reforçou o protesto: “A soberania do nosso povo é inviolável, e certamente iremos nos organizar para não permitir a destruição do nosso bem viver, que é o rio Tapajós”.

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