Maria Rita Kehl: O que é saúde mental?
Quais os fatores que nos satisfazem psíquica e emocionalmente? Freud pode chocar, ao dizer: a incompletude. Impulso que cria desejo, desloca-nos e gera a busca de sentido no amor e no trabalho. Força que nos afronta a encarar insuficiências e permite o arriscar
Publicado 19/09/2025 às 18:37

Por Maria Rita Kehl, no Blog da Boitempo
Começo com Freud, que era médico mas não tratava da saúde física. A definição de Freud quanto a esse tema é sucinta e (a meu ver), certeira. A saúde mental de uma pessoa pode ser resumida como a sua capacidade de amar e trabalhar. São duas ações muito diferentes, não acham? Mas entre elas há um ponto em comum: Tanto no amor quanto no trabalho, o sujeito, forçosamente, sai um pouco de si mesmo — de sua solidão, de suas ruminações estéreis, de sua vã vaidade — e se entrega a predisposições psíquicas que transcendem o ego.
Não que o ego seja supérfluo em nossas aventuras amorosas ou em nosso empenho profissional. O ego é nosso sustentáculo. Mas amor e trabalho nos forçam a ceder espaço psíquico para além dele. O ego nos estrutura, enquanto sujeitos, mas não é tão soberano quanto gostaríamos de acreditar. Quando amamos alguém, por exemplo: uma parte da satisfação que sentimos ao sermos correspondidos no amor é puramente egóica. A proposta freudiana, de que a saúde mental se define pela capacidade de amar e trabalhar, pode ser entendida também desta forma: amor e trabalho produzem saúde mental. Tanto um quanto o outro nos ajudam a dar sentido à vida porque forçosamente abrem brechas no rochedo que nos protege da castração.
Para os leigos em psicanálise (o que não é vergonha pra ninguém) vale esclarecer que “castração” é a metáfora com que Freud tenta explicar nossa incompletude — a qual, aliás, é condição para a saúde mental. A incompletude humana pode ser traduzida como “a falta que move”. É o que nos faz desejantes. Somos sujeitos, por definição, incompletos — por isso mesmo, a falta nos move. Nos move a quê? A criar. E a amar.
Em contrapartida, quando o outro deixa de nos amar, o ego, frequentemente, fica mais ferido do que o “coração”. Nessas horas, para quem for capaz disso, vale a pena entregar-se novamente a algum projeto de trabalho que talvez não traga de volta o ser amado, mas, sim, renova a auto estima.
Além disso, tanto o amor quanto o labor exigem que saibamos encarar nossas insuficiências: tanto um quanto o outro são incompatíveis com excessos narcísicos. Explico: o sujeito que se considera perfeito, ou completo, dificilmente vai conseguir abrir mão dessa agradável fantasia para se arriscar em alguma empreitada na qual pode tanto ter sucesso quanto fracassar. Por outro lado… se não nos arriscamos em empreitadas interessantes (e, se possível, bem-sucedidas), nosso ego se empobrece e deixa de atender a nosso ideais narcísicos.
Sim: algum narcisismo (vale simplificar aqui e traduzir por autoestima) é necessário. Quem não tem nenhum amor por si mesmo tende à depressão. Em situações em que o sujeito não encontra — ou não produz — nada que alimente sua auto estima, ele se deprime. Deixa de amar a si mesmo. Em casos extremos, essa falta de auto estima pode levar a tentativas de suicídio. Eu diria que o bom amor de si mesmo — que nada tem a ver com exageros de vaidade — se alimenta tanto das realizações que o sujeito se empenha em conquistar quanto da estima e do reconhecimento do outro. Mais, ainda: nossa auto estima também é acionada quando, além de receber admiração do outro, somos também capazes de dar o que ele necessita. Sermos solidários nos faz bem. Isso nada tem a ver com uma tendência sacrifical: quem se sacrifica por vaidade (“vejam como sou bom!”) corre o risco de se tornar ressentido: “fiz tanto por ele, mas ele não me agradeceu à altura”… Se você quer fazer algo pelo outro, faça de coração aberto, não como quem investe em uma futura medalha de bom comportamento. Fazer pelo outro, com gosto, nos alegra. “Saúde mental” (o tema desta coluna) tem mais a ver com alegria do que com vaidade.
Se for o caso de sacrificar alguma coisa, sacrifiquemos nosso egoísmo… mas não todo, ok? Vale guardar um pouco de egoísmo para conquistar, e desfrutar de coisas que nos fazem bem!
Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua, desde 1981, como psicanalista em São Paulo. Entre 2006 e 2011, atendeu na Escola Nacional Florestan Fernandes do MST, em Guararema (SP). Integrou a Comissão Nacional da Verdade (2012-2014). Foi jornalista de 1974 a 1981 e segue publicando artigos em diversos jornais e revistas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 2010, ganhou o prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção, com a obra O tempo e o cão: a atualidade das depressões publicada por nossa casa. Também pela Boitempo, publicou Tempo esquisito, Videologias: ensaios sobre televisão (em coautoria com Eugênio Bucci), 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos do feminino, Bovarismo brasileiro e Ressentimento. Pela Boitatá publicou, em parceria com Laerte Coutinho, Neném outra vez! e O disco-pizza.
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