Da música caipira à “balada do agro”
Provocação sobre as conexões entre cultura, economia e política. Sertanejo universitário apropriou-se de vários elementos da “viola de raiz”. Mas o cotidiano do pequeno agricultor deu lugar à figura do “playboy do campo”, que enaltece valores do “agro” e neoliberais
Publicado 18/09/2025 às 17:56 - Atualizado 18/09/2025 às 17:57

Título original: Da roça de subsistência à monocultura para exportação: Apropriação da Música Caipira pelo Sertanejo Universitário na Era do Agronegócio Neoliberal
Introdução
Nas últimas décadas, a música sertaneja universitária consolidou-se como um dos gêneros musicais de maior proeminência no Brasil, dominando as paradas de sucesso, as plataformas de streaming e os grandes festivais. Essa hegemonia, no entanto, não é meramente um reflexo de preferências estéticas, mas sim um fenômeno cultural complexo, intrinsecamente ligado às transformações socioeconômicas do país, notadamente a ascensão do agronegócio como força motriz da economia e a consolidação de uma agenda neoliberal. Este artigo propõe uma análise crítica da apropriação da música caipira — ou sertaneja de raiz — pelo sertanejo universitário, entendendo este processo como um mecanismo de produção de mais-valia ideológica a serviço do capital agroindustrial.
A música caipira, em sua gênese, representava o universo simbólico do homem do campo, suas relações com a terra, a natureza, o trabalho e a comunidade. Era uma manifestação cultural que, embora não isenta de contradições, expressava uma visão de mundo particular, marcada pela simplicidade, pela melancolia e por uma forte conexão com as tradições rurais. O sertanejo universitário, por sua vez, emerge em um contexto de urbanização acelerada e de modernização conservadora do campo, apropriando-se da estética e da temática caipira para construir uma narrativa que glorifica o agronegócio e os valores a ele associados: o individualismo, o consumismo, a ostentação e uma visão de progresso acrítica.
Da viola de raiz à “balada agro”: o contexto histórico e a transformação estética
A música caipira, popularizada por duplas como Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e Pardinho, caracterizava-se pela predominância da viola caipira, por letras que narravam o cotidiano da roça, as dificuldades do trabalho e as belezas da vida no campo. Suas melodias e harmonias, muitas vezes simples, carregavam uma profundidade lírica que refletia a alma do homem sertanejo.
Com o avanço da industrialização e da urbanização no Brasil, a música sertaneja passou por diversas transformações. A década de 1980 viu o surgimento de um sertanejo mais romântico e com maior apelo popular, incorporando instrumentos eletrônicos e influências da música pop internacional. No entanto, é nos anos 2000, com a ascensão do sertanejo universitário, que a ruptura com a matriz caipira se torna mais evidente.
O sertanejo universitário, como o próprio nome sugere, desloca o cenário da narrativa do campo para a festa, para a “pegação” e para o universo do jovem urbano. A viola caipira, quando presente, é muitas vezes um elemento cênico, desprovido de sua centralidade melódica. A sonoridade é marcada pela fusão com outros gêneros massivos, como o pop, o axé e o funk, resultando em um produto musical padronizado, de fácil consumo e alta rentabilidade.
O sertanejo universitário como trilha sonora do agronegócio
A expansão do agronegócio no Brasil, impulsionada por políticas neoliberais de desregulamentação e incentivo à exportação de commodities, encontrou no sertanejo universitário um poderoso aliado para a construção de sua hegemonia cultural. Artistas do gênero frequentemente se apresentam em grandes feiras agropecuárias, tornam-se garotos-propaganda de marcas ligadas ao setor e exaltam em suas letras um estilo de vida “agroboy”, que associa o sucesso financeiro à posse de caminhonetes, ao consumo de bebidas e à figura de um “playboy do campo”.
Essa associação não é fortuita. O agronegócio, para além de sua dimensão econômica, representa um projeto de poder que busca legitimar a concentração de terras, o uso intensivo de agrotóxicos e a exploração da mão de obra no campo. A música sertaneja universitária atua como um verniz cultural que oculta as contradições e os impactos socioambientais desse modelo de desenvolvimento, promovendo uma imagem positiva e aspiracional do “agro”.
A mais-valia ideológica na indústria do sertanejo
O conceito de mais-valia ideológica, cunhado no âmbito da Teoria Crítica, refere-se ao lucro simbólico que a indústria cultural extrai da apropriação e da mercantilização de bens culturais. No caso do sertanejo universitário, a mais-valia ideológica é gerada a partir da apropriação dos signos da cultura caipira — a bota, o chapéu, a referência ao campo — para a produção de um conteúdo que reforça a ideologia dominante.
Ao esvaziar a música caipira de seu conteúdo crítico e de sua conexão com a realidade do pequeno agricultor, a indústria do sertanejo universitário a transforma em uma embalagem atraente para a venda de um produto ideológico. O ouvinte, ao consumir essa música, não está apenas se entretendo, mas também absorvendo e naturalizando os valores do neoliberalismo e do agronegócio. A “sofrência” romantizada, por exemplo, pode ser interpretada como uma metáfora da resiliência individual em um contexto de precarização das relações sociais e de trabalho, um dos pilares da ideologia neoliberal.
Apropriação cultural e o apagamento da tradição
O processo de apropriação da música caipira pelo sertanejo universitário pode ser compreendido como uma forma de violência simbólica. Ao se apoderar de elementos de uma cultura tradicional e ressignificá-los de acordo com a lógica do mercado, a indústria cultural contribui para o apagamento da memória e da identidade do homem do campo.
A figura do caipira, em sua complexidade e em suas contradições, é substituída por um estereótipo, o “agroboy”, que em nada representa a diversidade e as dificuldades da vida rural. A terra, que na música de raiz era o espaço do trabalho e da subsistência, transforma-se em cenário para a ostentação e para o lazer. Essa operação simbólica tem como consequência o enfraquecimento dos laços comunitários e a desvalorização dos saberes e das tradições do campo.
Conclusão
A apropriação da música caipira pelo sertanejo universitário é um fenômeno que transcende o campo da estética musical. Trata-se de um processo complexo que revela as profundas conexões entre cultura, economia e política no Brasil contemporâneo. Ao se tornar a trilha sonora do agronegócio e ao operar como um mecanismo de produção de mais-valia ideológica, o sertanejo universitário contribui para a consolidação de um projeto de poder que se assenta na exploração do trabalho, na concentração de riqueza e na degradação do meio ambiente.
A análise crítica desse fenômeno é fundamental para a compreensão das dinâmicas culturais do neoliberalismo e para a valorização de manifestações artísticas que, na contramão da padronização e do consumo, ainda buscam expressar a diversidade e a complexidade da realidade brasileira. A viola caipira, em sua sonoridade melancólica e em suas letras profundas, ainda ressoa como um contraponto necessário à estandardização do campo e da cultura promovida pelo sertanejo universitário.
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