A práxis sanitária de David Capistrano Filho

Médico, gestor, um dos responsáveis pelo desenho e criação do SUS. Mais que isso: David Capistrano Filho, falecido há 25 anos, era um homem comprometido com a transformação estrutural do Brasil. Conheça sua trajetória pelas palavras do organizador de reedição de sua obra

Foto: Arquivo. Ilustração: Outra Saúde
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Nesta quinta-feira (18/9), o primeiro dia do Seminário SUS 35 Anos foi abrilhantado pelo lançamento de uma nova edição revista e ampliada de Da Saúde e das Cidades, a principal obra do sanitarista pernambucano David Capistrano Filho. Falecido há 25 anos, Capistrano recebeu uma justa homenagem no evento organizado por Outra Saúde e entidades parceiras, que você pode assistir neste link.

“Com sua visão muito ampla, David foi o sanitarista que conseguiu articular de forma perfeita a atividade política com a atividade sanitária. A práxis dele era total”, definiu o sanitarista José Ruben de Alcântara Bonfim, organizador da reedição do livro, em entrevista concedida a este boletim nos dias que antecederam o Seminário. Junto de outros atores pioneiros, Capistrano e Bonfim fundaram o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e a revista Saúde em Debate, instrumentos fundamentais na luta pela Reforma Sanitária e a formulação da proposta do Sistema Único de Saúde (SUS).

Bonfim conta que a adição de seis novas seções e dezenas de textos à edição ampliada do livro, recém publicada pela Hucitec Editora, oferece aos leitores uma visão ainda mais abrangente do pensamento de “Davizinho”, como o pernambucano era conhecido entre seus camaradas. “Eu não conheci nenhum outro sanitarista que tivesse tanto cuidado de documentar seu percurso intelectual e o de suas equipes no campo sanitário, político e de prestação de contas. Foram numerosos os livros que ele escreveu ou participou”, opina. 

Na conversa, Bonfim detalhou o conteúdo das seis novas seções de Da Saúde e das Cidades e também traçou um panorama da biografia de David Capistrano Filho – que abarca décadas de militância política, luta contra a ditadura militar e inesquecíveis passagens pelas prefeituras de Bauru, Santos e São Paulo, onde teve a coragem de implementar ideias pioneiras na saúde pública que impulsionaram os primeiros passos do SUS. Sempre com um princípio claro, explica o amigo e colaborador: “David compreendia que a práxis sanitária tem base, em primeiro lugar, na luta política e social, e não tanto no trabalho técnico especializado, por melhor que ele seja”.

Uma edição revista e ampliada

A primeira edição de Da Saúde e das Cidades, publicada em 1995, contava com quatro partes, reunindo textos de temas afins: “Da Saúde”, “Das Cidades”, “Da Saúde em Santos”  e “De Santos”. Seu conteúdo, que reúne dezenas de artigos e reflexões escritas por David Capistrano Filho de 1984 a 1994, gira em torno de dois eixos principais: o municipalismo na área da saúde e o poder local. Estas eram duas das principais bandeiras da atuação política do sanitarista nas últimas décadas de sua vida.

No aniversário de 30 anos da primeira edição, adicionam-se agora uma série de novos conteúdos ao livro, que expandem seu escopo. Surgem seis novas partes da obra: v) Da Saúde (1995-2000), vi) Das Cidades (1997), vii) Seleção de Testemunhos de Despedida para David Capistrano Filho (novembro e dezembro de 2000), viii) Artigos, Apresentações e Prefácios (1975-1996), ix) Homenagens; e x) Seleção de Testemunhos sobre David Capistrano Filho, em 2025, Atinentes ao Tema Desta Obra

Como se vê, se antes o livro consistia exclusivamente em trabalhos de David Capistrano, ele também agora passa a contar com escritos de diversos autores sobre o sanitarista, que reforçam a memória de sua trajetória de luta por um país mais justo e condições de vida dignas para o povo brasileiro. Além, é claro, de um leque ampliado de escritos do pernambucano que foi dirigente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido dos Trabalhadores (PT), secretário de saúde de Bauru e Santos e também prefeito desta cidade do litoral paulista.

José Ruben Bonfim chama atenção para o pioneirismo dos assuntos abordados pelo autor no material inédito: “No artigo ‘Adeus ao trabalho’, incluído na nova edição, David trata da importância de se implementar uma escala de trabalho 4×3 no Brasil para, entre outros motivos, melhorar as condições de saúde dos trabalhadores. Quem mais estava falando disso em pleno 1995, em meio à ofensiva do neoliberalismo?”

A vida de David Capistrano Filho

O respeito e a admiração conquistados por David Capistrano Filho, que o levam a ser homenageado e ter seus livros reeditados mesmo 25 anos após sua passagem, remete a uma vida inteira de comprometimento com a luta popular, que desembocou em seu papel protagonista na criação do SUS.

Como explica Bonfim, este compromisso veio desde bem cedo: “David nasceu em berço comunista. David Capistrano, o pai, era um homem muito aguerrido, lutou no Levante de 1935 e na Guerra Civil Espanhola, depois foi morto pelos carrascos da ditadura militar. Já a mãe dele, Maria Augusta Oliveira, foi uma importante liderança do Partido na Paraíba e uma das primeiras mulheres a se candidatar a um cargo político naquele estado, em 1945. Ele estudou no Ginásio Pernambucano, o mais antigo estabelecimento de ensino médio do país, que tinha uma tradição intelectual e política muito longa.”

Ainda na escola, Capistrano envolveu-se no movimento estudantil secundarista e passou a militar na Juventude Comunista. Após o golpe de 1964, em meio à perseguição de sua família pela repressão, mudou-se para a região Sudeste, onde passou a cursar Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em homenagem promovida no Congresso Latino-Americano de Medicina Social, realizado no Rio de Janeiro em agosto, os sanitaristas José Gomes Temporão, José Noronha e Reinaldo Guimarães, que foram contemporâneos de Capistrano na Faculdade de Medicina da UFRJ, trouxeram depoimentos sobre sua participação no movimento estudantil universitário.

“David era um orador otimista, sedutor, com o brilho do futuro nos olhos, um brilho de luta e política. A capacidade de empolgar plateias, de convocar para a passeata dos Cem Mil, de mobilizar as massas  era um pouco por esse brilho de esperança”, relembrou Noronha. Por sua vez, Guimarães sublinhou o papel de Capistrano na mobilização dos “excedentes” por vagas nas universidades em 1967 e sua participação no 30º Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) no ano seguinte, em Ibiúna (SP), de onde saíram presos.

Após a conclusão da graduação, David entrou no programa de residência em Medicina Preventiva da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), na mesma turma que José Ruben de Alcântara Bonfim. No departamento, tiveram como professor o médico Sérgio Arouca, outro militante comunista que cumpriria papel decisivo na criação do SUS. “Antes de conseguir concluir a residência, fomos expulsos pelo reitor e autocrata Zeferino Vaz, que perseguia todos os que possuíam um pensamento de esquerda na universidade”, lamenta. Capistrano seria preso diversas vezes pela ditadura militar, devido à sua atuação política.

Já em 1976, David Capistrano, Bonfim e outros sanitaristas fundaram o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes), a revista Saúde em Debate e a coleção homônima na Hucitec Editora, que viriam a ser importantes veículo de discussão e difusão das ideias que dariam contorno à Reforma Sanitária no país. No Cebes é que surgiria “A Questão Democrática na Área da Saúde”, primeiro documento a formular a proposta de criação de um Sistema Único de Saúde a partir de uma detida análise da situação sanitária e política do país. 

A entidade também serviria como plataforma para a edição de livros que sofisticassem o pensamento sanitário nacional. Uma das principais influências era a de Giovanni Berlinguer, médico e membro do Partido Comunista Italiano (PCI) cujas ideias e atuação foram essenciais para a criação de um sistema de saúde pública na Itália. “David foi um intelectual singular, que nunca dissociou a teoria da prática. Um leitor muito profundo, inclusive da literatura socialista. Em 1978, juntos editamos Medicina e Política, de Berlinguer, que traz essa concepção de que para fazer uma intervenção efetiva em saúde, é necessário considerar e transformar o contexto político, econômico e social”, explica Bonfim.

Nos anos seguintes, com a crise acelerada da ditadura militar e da saúde brasileira, seu papel político se tornaria cada vez mais destacado. Capistrano tornou-se o eixo político da direção do PCB em São Paulo, reconstruindo o Partido no estado por meio de seu enraizamento na população. Médico sanitarista do governo estadual, começou a implementar programas de saúde no Vale do Ribeira, região mais pobre do território paulista.

Em meio às vitórias da oposição democrática e progressista no início da década de 1980, a possibilidade de introduzir ações pioneiras que expandiam o acesso à saúde se ampliou para ainda mais cidades. Por todo o país, sanitaristas passaram a integrar a administração de cidades como Montes Claros, Campinas, Londrina, entre muitas outras, lançando as bases e desenhando os contornos de programas que posteriormente constituiriam o SUS, em um ousado esforço criador. Nesse contexto, David Capistrano Filho ocupou as secretarias de saúde de Bauru e Santos – e nesta última cidade, também seria prefeito nos anos 1990.

Membro do Comitê Assessor da 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, o pernambucano daria importantes contribuições para seu relatório final, que se tornou a base para a escrita do capítulo Da Saúde, na Constituição Federal de 1988.

Não é tarefa simples selecionar as principais ações de Capistrano em sua passagem pelos municípios paulistas. Um panorama mais pode ser encontrado no documentário exibido em sua homenagem no Congresso da Alames. De toda forma, pode-se rememorar que foi anfitrião do Encontro de Bauru (1987), marco da luta antimanicomial no Brasil; encabeçou a intervenção pioneira em um manicômio e criou equipamentos de saúde mental que antecederam os atuais CAPS; propôs as primeiras Casas de Parto; implementou programas de Saúde do Trabalhador e de Saúde da Família; deu especial atenção a programas de HIV/aids que enfrentassem o estigma, estimulando a participação da comunidade. O estímulo ao envolvimento popular seria uma marca de suas propostas sanitárias.

Ao longo de todo esse processo, escreveria vários livros. No campo sanitário, destaca-se Da Saúde e das Cidades, agora reeditado, mas também há Saúde para Todos e Saúde do Trabalhador. No âmbito mais político, publicou Há O Que Fazer – A Esquerda na Nova República e organizou minuciosas compilações de documentos e resoluções do PCB em São Paulo, além de editar jornais e revistas partidárias.

São diversos os ângulos possíveis para definir a contribuição de David Capistrano Filho, que faleceu em 2000 aos 52 anos, para o Brasil e o SUS. Para a sanitarista Sônia Fleury, ele teve uma papel na difusão de uma “consciência sanitária” e na “construção de um outro paradigma para falar de saúde”, disse a sanitarista na homenagem celebrada no Congresso da Alames. Por sua vez, José Noronha destacou que o pernambucano “é um marco de luta pelo socialismo, por uma sociedade mais justa e um sistema de saúde com bases populares e que atenda a todos”.

Englobando essa multiplicidade, a forma mais adequada de sintetizá-lo talvez seja a escolhida por José Ruben de Alcântara Bonfim em entrevista a Outra Saúde: “Era como um caleidoscópio. Se você vai virando, começa a ver outros aspectos maravilhosos. Assim era David, que olhava as coisas de uma forma global.”

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