Valorizar a enfermagem para reduzir iniquidades no SUS

Na última entrevista da série que pensa os 35 anos do Sistema, Adriano Maia reflete sobre o princípio da integralidade e meios para alcançá-lo. Defende: só será possível com mais investimento na Atenção Primária – e boas condições de trabalho às suas enfermeiras

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Não é difícil notar que a saúde no Brasil reflete as profundas assimetrias de nossa sociedade. Condições sociais, econômicas e históricas determinam quem vive mais e quem sofre com doenças evitáveis. Como reconstruir um sistema de saúde que enfrenta essas desigualdades ao invés de perpetuá-las? Para nos ajudar nesta reflexão, o Outra Saúde conversou com Adriano Maia, especialista em saúde coletiva e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). A entrevista faz parte da série SUS 35 Anos, criada para fomentar os debates que integram a programação do seminário de mesmo nome que começa amanhã (18), às 14:30, na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) (saiba mais e inscreva-se).

Adriano começa lembrando a centralidade do princípio da integralidade no SUS, garantido pela Lei nº 8.080/1990, responsável pela regulamentação do SUS – essa que faz aniversário na sexta-feira (19). A questão adjacente a este princípio, que serve – ou, ao menos, deveria servir – como pilar para todas as políticas e programas de saúde implementados, é: como promover, na prática, a integralidade? Como bem explica o especialista, “A Rede de Atenção à Saúde (RAS), ao tratar da organização dos serviços de saúde de diferentes complexidades que atendem a diferentes demandas de diversas populações, é justamente a materialidade deste princípio na saúde”.

Evidente que, para o êxito deste arranjo organizativo, ele não pode ser hierárquico, isto é, estabelecido a partir de uma lógica de poder – e, por muito tempo, a RAS foi pensada desta forma. É neste contexto que Maia estabelece a importância da Atenção Primária à Saúde (APS) enquanto um dos pontos mais fundamentais da RAS. “Com a função de ser regionalizada, parte de um entendimento de que a Rede não precisa estar no centro nem nos lugares onde há mais profissionais qualificados; mas, sim, nas periferias e lugares remotos, que é onde estão as pessoas que mais necessitam de serviços de saúde pública”, explica ele. De acordo com o professor, a regionalização é uma diretriz que vai garantir a tradução do princípio da integralidade para a realidade da saúde brasileira. É a partir desta diretriz que se coloca a reflexão: como racionalizar, levando em conta a prática profissional e a alocação de recursos, a RAS? Em que territórios construí-la e desenvolvê-la? 

No escopo da APS, Adriano explica a proeminência da prática da enfermagem, em especial nos chamados municípios rurais remotos (MRR). Tema de novo artigo publicado nos Cadernos de Saúde Pública, em que Maia foi co-autor, a enfermeira – utilizada como substantivo feminino por ser, de fato, uma profissão exercida predominantemente por mulheres – é imprescindível para o funcionamento dos equipamentos de saúde nos mais de 5 mil municípios brasileiros. Sem as enfermeiras, que, muitas vezes, exercem funções que extrapolam seus deveres, o cuidado fica insustentável.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que a enfermagem é fundamental para mitigar os efeitos das desigualdades territoriais, ela é uma profissão que sofre, ela mesma, com condições desumanas e injustas de trabalho, com uma jornada exaustiva de trabalho – além de mal remunerada. A partir disso, e pensando no futuro do SUS, Adriano afirma: “É fato que o desenho do nosso sistema de saúde é muito potente. Contudo, sem investimento, ele não vai prosperar. É preciso superar a ideia de que ele, por si só, basta; ele necessita de um investimento sustentado e contínuo, assim como a APS precisa ser valorizada. E se valoriza a APS valorizando os seus profissionais”.

Créditos: Coren/MS

Além disso, perguntado sobre os desafios globais da saúde, como os efeitos da crise climática, Maia estabelece que o SUS necessita estar articulado com todas as outras áreas da sociedade. Isso passa, definitivamente, por compreender as desigualdades e determinantes sociais que afetam diretamente a saúde. “O profissional de saúde precisa entender os territórios onde atuam; compreendendo este ponto, a prática médica não ficará centrada somente na prescrição de medicações e no tratamento de doenças; ela também exercerá a prática do cuidado em conjunto com a pessoa atendida, de forma que o cuidado possa fazer parte do cotidiano do indivíduo”.

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