O que é a “fila do SUS” e como torná-la mais justa
A lista de espera para acessar serviços de saúde pública prioriza quem mais precisa. Ainda assim, ela não deve ser lugar de abandono do usuário. Como novas políticas podem acelerá-la, torná-la mais transparente e mudar uma percepção equivocada sobre seu papel?
Publicado 12/09/2025 às 08:38 - Atualizado 12/09/2025 às 11:27

A discussão sobre as chamadas “filas do SUS ”envolve mais do que a percepção de espera: trata-se de um debate complexo sobre justiça social, regulação e eficiência no Sistema Único de Saúde. Pesquisadores e gestores alertam que o termo “fila” não traduz a realidade do atendimento público na atenção ambulatorial especializada, carregando consigo uma forte carga ideológica que influencia a percepção da população e o debate político. Além disso, as listas de espera para a atenção especializada são previstas nos sistemas de saúde, sendo que, para além do seu volume, seria importante debater sobre a adequação dos tempos de espera.
As reflexões do artigo “Listas de espera na atenção ambulatorial especializada: reflexões sobre um conceito crítico para o Sistema Único de Saúde”, de Elaine Maria Giannotti, Marília Louvison e Arthur Chioro, publicado nos Cadernos de Saúde Pública, aprofundam a compreensão sobre essas listas de espera e destacam a importância de diferenciá-las de uma simples fila. Segundo os autores, compreender a diferença entre os dois termos é essencial: enquanto “fila” remete a uma perda da individualidade do cidadão, a lista de espera envolve um processo de cuidado regulado por critérios clínicos, vulnerabilidade e risco.
Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde, atual presidente da EBSERH e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica: “O SUS não trabalha com ‘fila de balcão’, mas com listas de espera reguladas, organizadas por risco, vulnerabilidade e critérios de justiça sanitária. Esse não é um detalhe técnico; é o coração da equidade no sistema”. Ele acrescenta que “o termo ‘fila’ funciona como uma arma discursiva para desgastar o SUS, alimentando a ideia de desorganização, descuido e ineficiência”.
Desafios antigos e novos caminhos
Com 30 anos atuando na gestão e regulação do SUS, a fonoaudióloga Elaine Giannotti reforça que a diferenciação entre casos é central para a regulação do cuidado: “A fila em si não é um problema. Uma mulher que fez mamografia no ano anterior e teve um resultado dentro da normalidade pode aguardar por 6, 8 meses. Enquanto que uma mulher com histórico de câncer não pode aguardar”. Ela completa: “Uma lista de espera não pode ser um lugar de não cuidado. As equipes têm que se responsabilizar. Não pode dizer ‘ah, eu encaminhei para a fila do exame ou avaliação cirúrgica e agora não é mais comigo’”.
Entre os problemas persistentes estão a dificuldade do usuário em acompanhar sua posição na lista, a falta de previsão de atendimento e a baixa transparência. Além disso, a fragmentação entre sistemas municipais, estaduais e federais que não se comunicam e a desigualdade territorial na oferta de especialistas dificultam a consolidação de resultados estruturais, sem contar o subfinanciamento histórico: “quando comparamos com outros países da OCDE, verificamos que nosso gasto público com saúde é menor do que boa parte dos países com sistemas de acesso universal”, diz Giannotti.
Marília Louvison, médica sanitarista e professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, que atua no SUS desde seu início e estuda o tema da gestão e regulação, indica a importância desse debate: “Não podemos naturalizar a fila de espera e tampouco o abandono dos cidadãos nessa espera. Ao buscar um serviço de saúde, a pessoa passa a ter um profissional responsável pelo seu cuidado. Mesmo quando é encaminhada para um especialista ou para a realização de exames, deve manter o acompanhamento para entender qual é o tempo de espera previsto”.
A regulação do acesso precisa ser uma responsabilidade compartilhada de todo o sistema de saúde para garantir tempos de espera oportunos, mesmo quando a relação demanda e oferta não está equilibrada. “A transparência nas listas de espera permite que usuários acompanhem seu cuidado e depende do compromisso ético-político dos gestores em qualificá-las e monitorá-las continuamente, intervindo para evitar desfechos catastróficos e indignos”, completa Louvison.
O SUS tem buscado melhorar a Atenção Especializada por meio de políticas recentes, como a Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde (PNAES, aprovada em 2023), o Programa Mais Acesso a Especialistas (PMAE, de 2024) e o Agora Tem Especialistas, lançado em maio deste ano pelo Ministério da Saúde. Essas iniciativas definem tempos máximos de espera para diagnósticos em linhas de cuidado prioritárias, articulam a oferta de cuidados integrados, utilizam telessaúde e criam dispositivos para coordenação do cuidado. Chioro destaca: “Estamos no caminho certo, produzindo visibilidade por meio do ‘Agora Tem Especialistas’ e um conjunto de medidas promissoras. Ainda não é possível falar em ‘solução das filas’, mas há evidências de que o SUS começa a construir um novo patamar de acesso regulado, transparente e centrado no cuidado”.
Há sinais positivos. Chioro aponta resultados iniciais divulgados pelo Ministério da Saúde: “Em 2024, o Brasil realizou cerca de 14 milhões de cirurgias eletivas, um aumento de 36% em relação a 2022. Houve expansão da oferta pública e contratualizada, instalação de painéis de monitoramento de listas de espera nacionais e locais, e inclusão da agenda digital como suporte para agendamento e informação aos usuários”.
Além disso, Chioro destaca medidas em curso com potencial de impacto: “A meta de reduzir em até 30% o tempo de espera via telessaúde, a ampliação das residências médicas, o provimento emergencial de especialistas em regiões críticas e a implantação de um prontuário eletrônico nacional interoperável têm enorme potencial de impacto. Mas a experiência mostra que o sucesso dependerá da forma de implementação: quando a regulação combina centralização e descentralização, com canais vivos de comunicação entre gestores e serviços, os tempos de espera caem e o cuidado melhora”.
Além do aprimoramento de sistemas digitais – com o lançamento do ESUS Regulação em substituição ao SISREG, por exemplo –, o Ministério da Saúde aposta na ampliação da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) para melhorar a organização das listas e a coordenação do cuidado. “A tecnologia, por si, não resolve todo o problema. Agora, quando os processos estão organizados, a ferramenta pode ajudar e agilizar. O avanço da tecnologia e a construção de redes de cuidado têm que caminhar paralelamente”, afirma Giannotti.
A fila no debate público
A percepção pública das filas do SUS está carregada de ideologia e emoção. O termo “fila” é frequentemente usado para desgastar o sistema público, associando-o à desorganização, mesmo quando o acesso é regulado com base em risco e vulnerabilidade. Chioro enfatiza: “Ao contrário do setor privado, onde quem paga mais entra primeiro, no SUS a prioridade é para quem mais precisa. É preciso repetir isso, de forma simples, em todos os espaços de debate.”
Desde 2024, o Observatório de Políticas Públicas de Saúde/SUS, da Unifesp, acompanha as discussões nas redes sociais e tem mostrado como a desinformação alimenta uma verdadeira “infodemia”, abalada pela crise de confiança da população. Expressões como “morrer na fila do SUS”, comparações entre o atendimento privado e o tempo de espera no sistema público, além de pedidos de doações para custear tratamentos particulares, reforçam estigmas e percepções negativas sobre o SUS.
O debate sobre as listas de espera exige mais do que promessas de campanha para “zerar filas”: requer políticas estruturais, regulação adequada, comunicação transparente e participação social. Como conclui Chioro: “O grande desafio agora é transformar essa inflexão inicial em mudança estrutural, garantindo que a espera deixe de ser um estigma e se torne apenas parte de um processo de cuidado justo e responsável”.
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