“O Ocidente trama a morte do futuro”

Em entrevista a editora em Hong Kong, filósofo alegra-se com a emergência do Sul Global. Mas alerta: para evitar um mundo livre de seu controle, o eurocentrismo recorrerá à guerra total e à dissolução da utopia e do próprio pensamento

Foto: Roberto Serra/Iguana Press
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Por Franco Berardi, em entrevista a revista chinesa Typesetter, de Hong Kong | Tradução: Antonio Martins

Após última grande reunião do Sul Global, o encontro da Organização de Cooperação de Xangai em Tianjin (China), o cerco ao Ocidente pelas potências emergentes está completo. A arrogância euro-atlântica está produzindo uma catástrofe estratégica. Ao empurrar a Ucrânia para a guerra, o governo Biden provocou a reaproximação estratégica da China com a Rússia e afundou a União Europeia, que agora balança à beira de um abismo de guerra.

O governo Trump, com sua política tarifária insana, empurrou a Índia para uma aliança impensável com a China. Apenas uma arrogância suicida e o declínio mental dos colonialistas senis podem explicar erros estratégicos tão colossais.

A seguir, o texto da entrevista que será publicada em breve pela revista Typesetter de Hong Kong. (Bifo Berardi)

Em The Second Coming [A Segunda Vinda], você inicia sua análise com o ano de 1968. Muitos de nossos leitores chineses podem não estar familiarizados com o contexto do movimento. Poderia gentilmente explicar por que esse ano é significativo para sua investigação do mundo contemporâneo? Por que você acredita que revisitar os eventos de 1968 pode nos ajudar a descobrir possibilidades para o futuro do nosso mundo?

Berkeley é um lugar importante para a história dos movimentos [no Ocidente}, e também é um lugar importante do ponto de vista da pesquisa científica e tecnológica. No dia 2 de dezembro de 1964, quando o imperialismo americano estava iniciando a guerra no Vietnã, uma multidão de 5 mil estudantes marchou ao longo da Telegraph Avenue até a praça principal do campus da Universidade de Berkeley e, neste lugar, Mario Savio pegou o microfone e pronunciou algumas palavras que, na minha opinião, são excepcionalmente interessantes e resumem o significado da revolta mundial que, nos anos seguintes, abalou universidades, escolas e fábricas.

Estas são as palavras de Mario Savio: “Há um momento em que o funcionamento da máquina se torna tão odioso, fere tanto o coração, que você não pode mais participar dele, nem mesmo passivamente. E você deve colocar seu corpo nas engrenagens e nas rodas, em todos os mecanismos, e deve detê-los. E deve fazer com que aqueles que os gerenciam, aqueles que os possuem, entendam que, se você não é livre, a máquina será impedida de funcionar.”

Mario Savio se expressa contra a guerra, obviamente, e concentra-se particularmente na relação entre a guerra e a Universidade. Afirma que a Universidade é uma autocracia. Afirma que os estudantes e os jovens se recusam a ser usados pela máquina de guerra.

Mario Savio está falando de algo que marcará a história subsequente do capitalismo global. A capacidade do sistema de pôr a alma para trabalhar, de pôr para trabalhar a capacidade social de conhecer, de investigar, de criar e a atividade semiológica em geral, que se revela crucial na nova era do capitalismo.

Em seu livro, você fala do complexo tecno-midiático que controla mentes hiperconectadas, da disseminação de guerras civis alimentadas pela sede de vingança e da divergência de interesses entre trabalhadores brancos e migrantes, refugiados e desempregados do Sul Global. Você acredita que o estouro de uma terceira guerra mundial é inevitável? Como os movimentos de esquerda contemporâneos podem preveni-la e restaurar o senso de internacionalismo que você enfatiza em seus escritos?

Escrevi “A Segunda Vinda” em 2017. De lá para cá, passou-se quase uma década. E esta última década revelou a verdade: o gênero humano corre o risco de não sobreviver ao espasmo final do colonialismo. Em 2017, eu alertava sobre o perigo de uma guerra civil global. Agora, a guerra civil global está em curso. Após o colapso global da pandemia, o supremacismo branco assumiu o controle no Ocidente e desdobrará todo o seu poder destrutivo, o que significa que poderá destruir a civilização humana.

Esta guerra está se desenrolando em duas frentes principais que se entrelaçam e se alimentam mutuamente. De um lado, uma agressão do imperialismo ocidental ao Sul Global, uma guerra de extermínio dos migrantes, uma guerra genocida que encontra seu ápice no massacre de Gaza. De outro, trata-se de uma guerra intra-branca, que tem seu centro na Ucrânia, mas está se desenvolvendo em toda parte como uma guerra entre as forças agonizantes da falsa democracia liberal e as forças emergentes do nazismo trumpista.

Em 1965, o líder do Exército de Libertação Chinês, Lin Piao, escreveu as seguintes palavras: “No futuro, o campo estrangulará as metrópoles do mundo.” Mas, ao mesmo tempo, o Presidente Mao afirmou que “a classe operária deve dirigir tudo.”

No momento, eu diria que a previsão de Lin Piao está se concretizando: o Sul Global está prestes a estrangular o Norte. Nestes dias, China e Índia, Brasil e África do Sul e muitos outros países que sofreram o colonialismo estão unindo forças contra o Norte senescente. A arrogância trumpista é um sinal de demência e uma causa de isolamento.

Mas a classe operária não está guiando este processo. O resultado pode não ser o comunismo. Há o risco de o resultado ser um genocídio mundial.

Não esqueço que “os reacionários são estúpidos que levantam uma pedra para deixá-la cair sobre os próprios pés”, como diz o Presidente Mao. Mas esses idiotas possuem armas que podem destruir totalmente o planeta, e acredito que o desespero senil os levará a usar toda a sua força destrutiva.

A intensificação da hiperconectividade entre mentes humanas e máquinas, juntamente com a automação cognitiva que dela resulta, tem sido particularmente evidente nos últimos anos, especialmente com os rápidos avanços da inteligência artificial (IA). Como podem as pessoas na era da IA resistir à simulação automatizada das relações sociais e da cognição em escala mais ampla?

Gostaria de inverter esta pergunta e ouso avançar a hipótese de que a mente humana não resistirá à captura. Isto já está acontecendo.

Paul Graham escreveu as seguintes palavras sobre a relação entre pensamento e inteligência automatizada:

“Dentro algumas décadas, não haverá muitas pessoas capazes de escrever. A IA escancarou este mundo. Não estamos mais motivados a escrever. A IA pode fazer isso por você, tanto na escola quanto no trabalho. O resultado será um mundo dividido entre quem escreve e quem não escreve. Ainda haverá pessoas que sabem escrever. Mas a maioria não escreverá mais.
Isso é tão ruim? Não é comum que habilidades desapareçam quando a tecnologia as torna obsoletas? Não restaram muitos ferreiros, e isso não parece ser um problema. Mas sim, a perda da escrita é muito ruim. A razão é que escrever é pensar. Na verdade, existe um tipo de pensamento que só pode existir se escrevermos. Portanto, um mundo dividido entre quem escreve e quem não escreve é mais perigoso do que parece. Será um mundo de pessoas que pensam e pessoas que não pensam.”


O autômato inteligente escreve por nós. Mas a escrita é a atividade que permite a organização lógica do pensamento. Isso significa que a automação da inteligência desativa a faculdade de pensar nos seres humanos. Não se trata de uma distopia inverossímil, é o que já está acontecendo.

A geração que aprendeu mais palavras a partir de uma máquina do que da voz da mãe, catapultada para uma infosfera hiperacelerada, já está manifestando uma mutação cognitiva que se reflete em suas escolhas políticas.

Você mencionou a criação de “memes de desvinculamento (disentanglement)”. Poderia explicar se isso se refere ao desenvolvimento de uma nova ética do trabalho que transcenda a fixação tradicional no trabalho assalariado? É possível hoje que as pessoas se libertem da necessidade de trocar seu tempo por dinheiro?

Desvinculamento (“disentanglement”) significa o processo de libertação das obrigações da história. A história revelou-se como violência, guerra, exploração. Uma parte da humanidade está desertando e abandonando esta dimensão.

Nos anos 60 e 70, quando a classe operária era organizada e forte, foi possível lutar pela redução do tempo de trabalho. De fato, nos países europeus, o tempo de trabalho foi reduzido graças aos sindicatos e às lutas autônomas dos operários. Depois as coisas pioraram e agora na Europa muitos são forçados a trabalhar muito mais de 40 horas por semana. O escravismo é difundido em muitos países no Ocidente assim como na Ásia. Após algumas décadas de libertação do trabalho assalariado, o capitalismo reafirmou seu domínio em toda parte.Os memes são uma forma hiper-sintética de circulação da mensagem. No momento atual, os memes são o instrumento de comunicação que alimentou o movimento reacionário em todo o mundo.

Artistas, ativistas, pessoas que desertam da guerra e se opõem ao capitalismo devem inventar formas hiper-sintéticas e contagiosas de comunicação para a deserção, a frugalidade, a autonomia do consumismo e da competição, a autonomia do trabalho.

Para muitos de nossos leitores, a ideia de “memes de desvinculamento” pode parecer abstrata ou inimaginável. Você poderia fornecer alguns exemplos para ilustrar como esses memes poderiam aparecer e como poderiam funcionar na prática?

Minha vida é um meme de desvinculamento; sua vida, a vida de qualquer pessoa pode ser transformada em um meme de desvinculamento. Rádio Alice, a rádio pirata que desencadeou a insurreição autônoma de Bolonha em 1977, é um meme de desvinculamento. A Freedom Flotilla (Frota da Liberdade) que nestes dias tenta ultrapassar o muro marítimo sionista para levar comida aos palestinos famintos é um meme de desvinculamento.

Quem se rebela, mesmo sem nenhuma esperança de futuro, quem abandona o trabalho, quem abandona a procriação, quem não espera nada do futuro: estes são os memes de desvinculamento. Greta Thunberg dizendo: “Como vocês ousam?” é um meme de desvinculamento.

Estamos no início de um período de devastação global. A Ku Klux Klan de Donald Trump está executando um programa de Terror Branco, deportações e torturas. Vejam o que acontece nas cidades norte-americanas: o retorno do pior tipo de racismo. Precisamos inventar novas vias de fuga.

É muito provável que a humanidade não sobreviva ao século XXI. Guerra, colapso ambiental, pânico põem em risco o tecido da vida social. A questão é: como sobreviveremos a este vórtice? Como podemos criar espaços para uma vida digna durante o processo de autodestruição da civilização humana?

Perto do final do livro, você enfatiza que, mesmo diante do desespero, devemos continuar a praticar a arte do pensamento e a imaginação filosófica. Dada a natureza intensa e onipresente da automação cognitiva, como podemos treinar para preservar e cultivar a capacidade de imaginação filosófica?

Não esqueçamos que este livro (A Segunda Vinda) foi publicado pela primeira vez em 2017. Era uma reflexão sobre o comunismo cem anos após a revolução russa. Era uma reflexão sobre a possibilidade de uma segunda vinda do projeto comunista.

Na última década, atravessamos uma pandemia, uma aceleração do colapso ambiental, uma explosão de racismo agressivo e o retorno da guerra no contexto do declínio do domínio branco sobre o planeta.

Não vejo nenhuma força subjetiva, nenhuma frente social, nenhuma ideologia política capaz de repelir a agressão dos criminosos suicidas que governam o Ocidente.

Nos restou apenas uma coisa: a capacidade de pensar e de imaginar. Mas devemos pensar fora dos dogmas, fora dos esquemas explicativos preconcebidos. Os conceitos modernos (política, democracia, direitos humanos, Razão Universal) foram destruídos pelo Ocidente senescente. Eles não voltarão. Política, democracia, direitos humanos são palavras vazias depois de Gaza.

Devemos criar novos conceitos e imaginar um horizonte que não foi previsto pela ciência política: a autodestruição do gênero humano ainda neste século. Neste horizonte é possível …..

Alguns de nossos leitores conhecem seu trabalho através de seu livro mais recente, Quit Everything (Abandonar Tudo). Em The Second Coming (A Segunda Vinda), você descreve a humanidade como tendo entrado em uma era de demência, enquanto em Quit Everything o foco está no tema da depressão. Como você vê esses dois estados da humanidade interconectados? Em um mundo tão deprimente e devastador, como podemos redescobrir a possibilidade da alegria?

Esta é a pergunta mais difícil. O centro da minha reflexão é o colapso da mente ocidental. Mas a decadência do ambiente mental, embora esteja em um estágio particularmente avançado no Ocidente, é um processo que se desdobra em todo o planeta como efeito da submissão à automação da atividade cognitiva.

O colapso da mente é o resultado de dois processos convergentes: a competição (guerra de todos contra todos) imposta pela ideologia neoliberal e o isolamento provocado pela tecnologia digital.

Ao mesmo tempo, devemos levar em conta um processo de enorme importância: a senescência do gênero humano (não apenas no Ocidente, mas em toda parte, África incluída). Essa tendência é subestimada pelo pensamento político progressista, mas se tornará o fator mais importante no colapso final.

Nas primeiras décadas do século, uma onda de depressão espalhou-se pela geração digital. Nas próximas décadas, seremos forçados a confrontar um fenômeno sem precedentes: a senilidade crescente da população planetária.

Isso obviamente provocará um problema econômico e financeiro, mas sobretudo influenciará as expectativas psicológicas de futuro. Devido à queda das taxas de natalidade (um processo que não pode ser combatido pela vontade política), a população total está destinada a reduzir-se e envelhecer cada vez mais.

Tentem imaginar um planeta em que um terço da população tem mais de 60 anos e a maioria dos jovens está isolada e deprimida. Este é o cenário provável da segunda metade deste século, assumindo que a guerra nuclear e a mudança climática não destruam a civilização humana antes da metade do século XXI.

Sabem, nos tempos do genocídio sionista, somos forçados a pensar que algo profundamente errado aconteceu na mente humana, algo que poderia ser evitado apenas por uma revolução igualitária e humanista: o comunismo.

O comunismo era a última possibilidade para escapar do apocalipse. Mas o comunismo falhou. Nós falhamos. Uma segunda chance parecia possível dez anos atrás, quando escrevi este livro.

Mas minha opinião mudou após a pandemia, após o retorno da guerra na Europa, após o retorno do genocídio naquele lugar amaldiçoado chamado Terra Santa. Não haverá uma segunda chance porque no Terceiro Década do Século estamos testemunhando o Colapso da Razão humana e a espiral do Caos e do Autômato.

O autômato prevalecerá. O Caos humano está condenado e será aniquilado pela decisão feminina (consciente e inconsciente) de não gerar vítimas do horror iminente.

Minha sugestão é: deserção. Uma vida bela só será possível criando ilhas de autonomia da História. Seremos capazes de inventar algo completamente desvinculado das amarras da vingança histórica?


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