Cinema: A fera na estrada
O premiado Suçuarana é um road movie crepuscular. Dora, carente de laços afetivos, atravessa paisagens devastadas pela mineração. Busca suas raízes. Mas encontra um túnel para uma mata luminosa que leva a uma espécie de “Comuna da sucata”…
Publicado 11/09/2025 às 16:02

Por José Geraldo Couto, no Blog do IMS
Suçuarana, de Clarissa Campolina e Sérgio Borges, é o filme de uma busca. De início, uma busca por um lugar específico, um certo vale da Suçuarana, no interior de Minas, que a protagonista, Dora (Sinara Teles), julga ser a terra de origem de sua mãe. Uma busca de raízes, portanto.
Aos poucos, porém, esse road movie empoeirado e crepuscular aprofunda e amplia o escopo da procura, que passa a ser espiritual, mítica, metafísica. Dora, uma espécie de despossuída absoluta, sem casa, sem família e sem emprego, passa mais de dez anos na estrada, supostamente em busca de Suçuarana.
Calejada, dura, introspectiva, ela parece em desavença com o mundo – e ao mesmo tempo uma criatura carente de laços afetivos. Esses laços se esboçam aqui e ali durante a sua jornada por postos de gasolina e bares de beira de estrada, para ser desfeitos logo depois. Sua solidão parece irredutível, exceto pela companhia de um cachorro, que ela chama de Encrenca e aparece e desaparece misteriosamente de sua vida.
Terra devastada
De ônibus, a pé ou de carona, Dora atravessa uma paisagem devastada pela mineração predatória. Há uma clara analogia entre a mulher extenuada e a terra exaurida. O tom do relato é predominantemente sombrio, com muitas cenas escuras, cortadas pela contraluz cegante dos faróis de automóveis e caminhões.
A narrativa tem uma inflexão radical a partir de um grave acidente do carro em que Dora viajava de carona. Encrenca reaparece, atropelado e subitamente redivivo, e a conduz por um pequeno túnel que ao final se abre para uma mata luminosa. Equivale à passagem por um portal que leva a outra dimensão.
Do outro lado do túnel a moça encontra uma fábrica abandonada em que ex-operários recolhem peças de máquinas remanescentes para vender ao ferro-velho ou à reciclagem. É uma comunidade que a acolhe como uma igual. Em contraste com o salve-se quem puder da primeira parte da jornada, Dora encontra nessa turma um espírito de fraternidade e pertencimento.
Mas não se trata de uma mensagem política fácil, muito menos de um consolo de autoajuda. O que torna Suçuarana um filme vivo e fascinante é o modo como deixa abertas inúmeras possibilidades de leitura, inclusive a fantástica/sobrenatural.
A fera na selva
Clarissa Campolina e Sérgio Borges, os diretores, disseram mais de uma vez que sua primeira inspiração foi a novela A fera na selva, de Henry James, em que um homem obcecado pela ideia de que um acontecimento grandioso vai surgir em sua vida (como a aparição súbita de uma fera na selva) deixa de viver as relações ao seu alcance, em especial uma potencial história de amor com uma grande amiga.
Analogamente, Dora tem sua obsessão – encontrar o vale da Suçuarana (aliás, nome de uma fera) – que a impede de investir em laços duradouros e a condena ao movimento perpétuo. Suçuarana é como Pasárgada, Eldorado, Atlântida, Shangri-lá: um lugar mítico, um horizonte inalcançável que serve para embalar a imaginação ou induzir à viagem. Será a Suçuarana de Dora essa espécie de comunidade quilombola que ela encontra do outro lado do túnel? Será real essa comunidade?
Suçuarana não responde claramente a essas perguntas. Tanto melhor. O filme continua na cabeça e na sensibilidade de cada espectador. Do ponto de vista da linguagem cinematográfica, vale chamar a atenção para a diferença de tratamento visual entre a primeira parte, na estrada, com predominância de cenas noturnas, câmera nervosa, gestos truncados, e os planos mais compostos, cadenciados, da parte pós-túnel.
O filme ganhou uma porção de prêmios no festival de Brasília do ano passado: melhor atriz (Sinara Teles), ator coadjuvante (Carlos Francisco), fotografia (Ivo Lopes Araujo), Montagem (Luiz Pretti) e edição de som (Pablo Lamar). Cabe destacar também a esplêndida trilha sonora de Ajítẹnà Marco Scarassatti e Djalma Corrêa, que incorpora lindamente a canção tradicional Sussuarana, de Heckel Tavares e Luiz Peixoto, em versão instrumental e na voz de Inezita Barroso.
Todos esses talentos confluem para formar uma obra única, inventiva, profundamente mineira e universal.
Brasília, 60 anos
Com a exibição especial, fora de competição, de O agente secreto, de Kleber Mendonça Filho, começa nesta sexta-feira a 58ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A data coincide com o desfecho, ali mesmo no Planalto Central, do julgamento mais importante da história brasileira recente.
Nada mais apropriado. Desde a sua criação, há 60 anos, o mais antigo e mais importante festival de cinema brasileiro pulsa junto com a vida política do país. Surgido em plena ditadura militar – e contra ela –, o evento sempre se notabilizou por marcar uma posição da comunidade cinematográfica em favor da democracia, da liberdade e da pluralidade de vozes. Desta vez não será diferente. Que haja mais festa do que choro e ranger de dentes.
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