Adolescentes em CTs: tragédia anunciada

Não são incomuns as mortes em comunidades terapêuticas, que internam pessoas com transtornos mentais e abuso de drogas. Controlam 80 mil leitos, sem respeitar os princípios do SUS. Com licença para internar menores de idade, os riscos se multiplicam

Créditos: Vitor Shimomura/Agência Pública para a reportagem Internei meu filho para ser cuidado e recebi um corpo
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Em 31 de agosto, cinco pessoas morreram e outras onze ficaram feridas em um incêndio em uma comunidade terapêutica (CT) “dedicada à recuperação de dependentes químicos” no Distrito Federal, conforme relatado por diversos portais de notícias. Segundo relatos de internos, as pessoas, diagnosticadas como dependentes químicos, estavam internadas para tratamento e morreram em um incêndio. Segundo a Polícia Civil, o local que pegou fogo estava trancado com cadeado e havia três extintores de incêndio vazios do lado de fora do alojamento. Sim, é isso mesmo. As pessoas que estavam lá para serem “recuperadas”, estavam, na verdade, presas e sem nenhuma estrutura real de proteção.

Caso isolado? Infelizmente, não. Arroio dos Ratos-RS, 2016, incêndio na comunidade terapêutica “Centro Novos Horizontes” matou sete pessoasque estavam trancadas numa das alas. Carazinho-RS, 2022, onze pessoas morreram queimadas em uma comunidade terapêutica custeada pelo Ministério do Desenvolvimento Social. A imprensa vem noticiando casos dessa natureza por todo o Brasil. Em rápida busca pelo Google, só nos últimos cinco anos, tivemos 25 mortes em comunidades terapêuticas em seis estados diferentes: Alagoas, Minas Gerais, Goiás, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

Em 2023 o canal de notícias Intercept pediu ao governo federal, via Lei de Acesso à Informação, o número de mortes ocorridas dentro de comunidades terapêuticas em todo país. A resposta dada foi que essa informação é inexistente. Por outro lado, diversos relatórios de órgãos fiscalizadores do Estado brasileiro caracterizam as CTs como estabelecimentos que passam longe da alcunha “terapêutica”, mas sim como uma mistura de prisões, igrejas e manicômios. Laborterapia, práticas de leitura de bíblias, orações forçadas e ausência de projetos terapêuticos singulares são exemplos destes relatos. Além disso há um forte recorte racializado na segregação realizada, uma vez que boa parte dos internos são negros e pobres, submetidos, em várias denúncias, a trabalhos análogos a escravidão. Tais práticas foram apontadas como comuns e não possuem relação com qualquer lógica ressocializadora que considere o cuidado de pessoas com problemas relacionados ao álcool e outras drogas.

Elas são reguladas pela Anvisa, órgão vinculado ao Ministério da Saúde, entretanto, não são consideradas serviços de saúde e o seu licenciamento é pouco exigente, similar à liberação de salões de beleza, por exemplo. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2017, havia cerca de 2 mil comunidades terapêuticas operando em todo o Brasil com cerca de 60.000 a 80.000 vagas. De acordo com o órgão, mais 80% das instituições pesquisadas declararam ter orientação religiosa. Apenas para se ter uma ideia, no auge da era dos manicômios nacionais, 1990, tínhamos 100.000 brasileiros internados em hospitais psiquiátricos. Os dados oficiais da reforma psiquiátrica brasileira demonstram que reduzimos esses 100 mil leitos para menos de 25 mil em 35 anos, mudando o modelo que antes mirava a segregação para uma diversidade de equipamentos de saúde mental nos territórios, próximo onde as pessoas vivem. Entretanto, se consideramos as 80 mil vagas em comunidades terapêuticas que possuem modalidades de intervenção similares aos antigos manicômios, o número retorna ao valor dos anos 1990.

Além disso, quase 600 CTs recebem financiamento público no Brasil e aqui também há falta de transparência. Em estudo realizado pela Conectas Direitos Humanos, entre 2017 e 2020, o investimento federal nessas comunidades totalizou R$ 300 milhões e o valor chega a R$ 560 milhões quando considerados os repasses por governos estaduais e municipais. Fora alguns estudos independentes, não há uma base de dados nacional para se acompanhar o financiamento público destas entidades e com o crescimento das emendas parlamentares, o trabalho ficou ainda difícil. Por mais que a explosão de financiamento das CTs tenha ocorrido no governo Bolsonaro, mesmo no governo Lula o lobby, principalmente de entidades religiosas, em favor das CTs, é presente. No início de 2023, Lula chegou a criar um departamento de apoio a comunidades terapêuticas bem no seio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, movimento que foi sustado graças às pressões de associações e aos movimentos populares em defesa do SUS e à sensibilidade do governo Lula de ouvi-los.

Contudo, apesar dos vários horrores noticiados continuamente pelos meios de comunicação e denunciados pela sociedade civil em relação a mortes e outras violações de direitos humanos em muitas comunidades terapêuticas, o seu lobby continua. Em 03 de setembro deste ano, a Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado aprovou o Projeto de Decreto Legislativo (PDL 383/2024), de autoria da senadora Damares Alves, que derruba a Resolução 249/2024 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que limitava o atendimento em comunidades terapêuticas apenas a adultos. A mesma resolução determinava o óbvio: que o público infantojuvenil fosse tratado exclusivamente pelo SUS, em unidades como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades de acolhimento, hospitais gerais, serviços de atenção básica articulados com outras políticas, onde as evidências cientificas apontam para a melhor efetividade e dignidade do cuidado.

A derrubada da Resolução do Conanda, possibilita, assim, que adolescentes sejam internados em comunidades terapêuticas. A Organização Mundial da Saúde, por outro lado, preconiza que as ofertas de atenção para esta população sejam integradas entre serviços de saúde mental e assistência social, numa perspectiva comunitária e territorializada, algo diametralmente oposto à proposta de isolamento e internamentos de longa duração das CTs. Por conseguinte, já temos novas tragédias anunciadas, só que desta vez, com adolescentes.

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