Como recuperar a dignidade do trabalho no SUS?
Salários diminuíram, jornadas se estenderam – e vínculos laborais se tornaram mais frágeis. Cenário dos últimos anos é de precarização para os trabalhadores da saúde, devido à mercantilização do setor. Se bem formulada, Carreira Única pode ser antídoto
Publicado 10/09/2025 às 09:18 - Atualizado 10/09/2025 às 09:20
Na mais nova entrevista do programa SUS 35 Anos, publicada nesta quarta-feira (10), a equipe de Outra Saúde conversou com Inês Leoneza, enfermeira e professora do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em Macaé, sobre a preocupante situação dos trabalhadores da saúde no Brasil.
“A saúde está virando mercadoria, e o impacto disso para os trabalhadores é grave. Com as modificações nas leis trabalhistas e a piora das condições de trabalho, eles estão vivendo uma precarização e uma exploração nunca antes vistas na atual democracia em que vivemos”, avalia a docente, que é membro do grupo de estudos Saúde, Sociedade, Estado e Mercado (Grupo SEM).
Estudos conduzidos por Leoneza e outros pesquisadores indicam que esses profissionais trabalham cada vez mais, por salários que diminuem. Extenuante parece ser a melhor palavra para descrever o cenário. Para alcançar uma remuneração adequada, um número crescente de enfermeiras cumpre jornadas de mais de 60 horas semanais divididas entre múltiplos estabelecimentos, identificou-se.
Não se trata de um problema exclusivo do setor privado, já que as condições de trabalho também se deterioram no Sistema Único de Saúde (SUS). A infiltração das Organizações Sociais de Saúde (OSS) e outras formas não-públicas de gestão cumprem um papel central nesse processo, argumenta a professora. “Quando você traz as OSS para dentro da gestão, o gerenciamento e o acompanhamento dos princípios e diretrizes do sistema público está na mão de grupos privados. Com a entrada desses prestadores de serviço, estamos cedendo espaço para o mercado tomar conta daquilo que é do cidadão”, aponta.
Esse processo ocorre sob a alegação de que entes do setor privado trariam um aumento na qualidade dos serviços de saúde pública, mas a docente destaca que “não é verdade que o atendimento à população melhora com as privatizações”. “As condições pioram, a carga de trabalho aumenta, o adoecimento dos profissionais cresce e a rotatividade fica cada vez mais alta”, o que leva a problemas na oferta de cuidado, complementa.
No que se refere ao adoecimento, Leoneza opina que “o impacto [da precarização] sobre a saúde desses trabalhadores é devastador, especialmente a partir da pandemia da covid-19. Atinge tanto a saúde física quanto a mental, e a própria Organização Mundial da Saúde já reconhece isso”.
Em parte, isso se conecta com o sucateamento dos equipamentos de saúde, asfixiados pelas políticas econômicas neoliberais: “O trabalhador precisa ter as condições estruturais, físicas e emocionais para atender as pessoas. Mas em que condições os profissionais de saúde estão trabalhando hoje em dia? Equipamentos inseguros, insalubres, muitas vezes violentos”. Nesse sentido, para a professora da UFRJ, a aceleração desse processo de precarização do trabalho se liga a dois fatores que remetem ao governo de Michel Temer: a criação do Teto de Gastos que congelou os gastos públicos nas áreas da Saúde e da Educação, por meio da Emenda Constitucional 95, e a promulgação da Reforma Trabalhista.
Atingidas por um processo de desvalorização, as profissões da área da Saúde arriscam se tornar menos atrativas, o que pode dificultar ainda mais a garantia de um número adequado de trabalhadores em todas as regiões. “As mudanças [nas relações de trabalho] que estão acontecendo hoje não estão favorecendo o trabalhador e muito menos fortalecendo o SUS no Brasil.”
A proposta da Carreira Única no SUS
Na entrevista, a professora da UFRJ também discutiu possíveis caminhos para fortalecer o trabalho decente na saúde pública, como a criação de uma Carreira Única no SUS. Trata-se de uma proposta que circula desde os primórdios da Reforma Sanitária, na década de 1980. Sua implementação envolveria a construção de um plano nacional de cargos e salários para todos os trabalhadores da saúde pública, viabilizado pelo financiamento compartilhado entre União, estados e municípios. Entre outros benefícios, a Carreira Única pode estimular a distribuição mais equânime de profissionais de saúde ao redor do Brasil, já que ainda restam muitas localidades com baixo provimento devido à falta de atrativos.

Dimensionando a importância da proposta, a docente avalia que “a Carreira Única é o sonho de todos os servidores públicos, independente do ente federativo em que estejam”. A atual situação nos territórios ilustra como o atual modelo vai no sentido contrário: “Hoje, nas prefeituras, há uma maioria de contratados, e a situação desses trabalhadores varia de acordo com o prefeito e o partido no poder naquele momento. Em uma troca, todo mundo sai e se destrói todo um trabalho de capacitação, treinamento e inclusive assistência à população”.
Mesmo assim, ela alerta, a proposta precisa ser construída de forma cuidadosa, em meio aos garrotes impostos aos municípios pela Lei de Responsabilidade Fiscal. A entrevistada também destacou que “além do salário digno, é preciso garantir dignidade ao trabalhar, para que todos tenham condições mínimas para exercer a profissão”, o que exige um fortalecimento geral da saúde pública. “Do contrário, a meta de universalizar a saúde, levando-a aos rincões do país, seguirá distante”, arremata Inês Leoneza.
Vice-presidente da Associação Brasileira de Enfermagem no Rio de Janeiro (ABEn-RJ), ela acredita que as entidades representativas e os mecanismos de controle social, como os conselhos de saúde, precisam se pronunciar mais firmemente sobre as mudanças necessárias na gestão do trabalho na saúde, além de denunciar os retrocessos.
“O SUS é um dos maiores sistemas de saúde do mundo. Além disso, ele é um dos que presta melhor serviço, já que atinge todos os municípios do Brasil e tem uma grande amplitude no escopo de atendimento, ao incluir a atenção primária e a atenção especializada. Enfraquecer o papel do Estado, reduzindo os concursos públicos e ampliando outras formas de gestão, é enfraquecer os trabalhadores”, completou.
A entrevista com Inês Leoneza faz parte da série SUS 35 anos. Os episódios estão disponíveis em vídeo no canal de Outras Palavras. O programa é um “esquenta” para o Seminário SUS 35 anos, que ocorrerá em São Paulo nos dias 18 e 19 de setembro, com organização de Outra Saúde e entidades parceiras. Para conferir a programação e garantir sua inscrição gratuita, clique aqui.
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