Uma saúde digital que adoece trabalhadores?
O avanço das tecnologias digitais vai melhorar o cuidado. Será? Médicos, enfermeiros e outros profissionais gastam horas em frente a telas – e os dados que geram servem para alimentar sistemas de vigilância e controle. Resultados: exaustão e falta de autonomia
Publicado 09/09/2025 às 07:37 - Atualizado 09/09/2025 às 17:23

No final do último mês, o histórico jornalista do campo progressista, Luis Nassif, entrevistou a liderança da Secretaria de Informação e Saúde Digital (SEIDIGI), Ana Estela Haddad – ao fim, também coproduziu com uma IA, um resumo da entrevista e publicou em seu portal.
O que nos chamou mais atenção da entrevista mencionada foi o tom laudatório do jornalista. Sabemos que a maior parte do campo progressista optou taticamente por não desferir nenhuma crítica ao Lula 3 e à sua equipe, inclusive da saúde. O argumento, também sabido, é que se fizermos tais críticas, favoreceremos nossos maiores adversários e inimigos. Desde janeiro de 2022, então, este pacto de silêncio corre por corredores, salas, redes sociais, grupos de WhatsApp e, logicamente, canais jornalísticos alinhados. Mas será mesmo que esse é o tom mais acertado para reconstruirmos, com as novas gerações, um campo de esquerda combativo e comprometido com um SUS efetivamente universal, equânime, integral e com participação popular?
Deixando de lado, por hora, as divergências de tática e estratégia da esquerda socialista frente ao social-liberalismo, gostaríamos apenas de chamar atenção para alguns dados que já registram que a chamada “transformação digital da saúde” não é um mar de rosas tal como Nassif pinta. Para tanto, é simples, basta lembrarmos de um personagem central da história: os trabalhadores da saúde.
Todos os sistemas de saúde ao redor do mundo estão correndo para desenvolver e adotar tecnologias digitais em seus processos de trabalho e, como de praxe, a promessa vinda dos negócios é mais eficiência, mais produtividade, menos burocracia e, de quebra, dizem eles, profissionais liberados para se dedicar ao que realmente importa – cuidar de pessoas. A realidade, no entanto, revela-se bem mais complexa. Evidências começam sugerir ou demonstrar que essas mesmas tecnologias podem aprofundar e criar novas formas de precarização das condições de trabalho – sempre variando segundo a função, formação, gênero, raça, localização, nível de experiência e contexto institucional.
Peguemos o caso dos registros eletrônicos de saúde (RES), do qual o Prontuário Eletrônico faz parte como um dos protagonistas da digitalização e datificação. Uma meta-análise de 2024 revelou que 40,4% dos profissionais de saúde apresentam burnout diretamente associado ao uso desses sistemas. Para quem gasta mais tempo em tarefas administrativas digitais, a probabilidade de desenvolver burnout aumenta em 2,43 vezes. As causas são conhecidas: documentação excessiva, design inadequado dos sistemas, problemas de usabilidade, sobrecarga, horas extras e fadiga por alertas.
Esse impacto também é sentido em outro estudo feito com os serviços de atenção primária nos EUA. Em alguns casos, diz o estudo, os profissionais podem despender aproximadamente duas horas documentando cada hora de atendimento direto ao paciente, ampliando o tempo em atividades administrativas.
Para enfermeira/os, a situação tem mais detalhes. Embora as tecnologias possam facilitar comunicação e acesso à informação, também intensificam a carga cognitiva e criam novos estressores ocupacionais. Um estudo pioneiro realizado na Alemanha analisou as relações de trabalho com base no tecnostress, em curtas palavras, nos fatores que produzem estresse a partir do uso das Tecnologias da Informação e Comunicação, diminuindo a satisfação no trabalho e o compromisso organizacional. O estudo então identificou que a sobrecarga de informações e comunicação devido às tecnologias digitais que exigem que os funcionários trabalhem mais rapidamente, e as situações em que os trabalhadores aumentam os esforços para aprender e compreender as novas tecnologias, ambas estão significativamente associados ao burnout dos enfermeiros.
Em suma, as consequências da “saúde digital” para a saúde dos trabalhadores podem ser de muito sofrimento e adoecimento. E entrevistas como a de Nassif são oportunidades valiosas para ponderar também essas questões.
Se o jornalista esqueceu dos médicos e enfermeiros, não poderia ser diferente quanto a um outro degrau da divisão técnica do trabalho: os agentes comunitários de saúde (ACS). Um estudo qualitativo com os ACS revelou sinais de que o uso de tablets na coleta de dados vem transformando também negativamente as suas atividades. O resultado tem sido o afastamento desses profissionais de suas funções essenciais de promoção e prevenção para focar na alimentação de bases de dados, na produção de dados. Em outras palavras, a tecnologia que deveria potencializar o trabalho comunitário, acaba burocratizando-o e alienando-o ainda mais. Os agentes relatam que agora passam mais tempo olhando para telas do que para as pessoas de suas comunidades – já não bastava a estrutural desvalorização da função.
Alguns mais ligados às novas novidades que pululam semanalmente dirão que não há com que se preocupar, pois com os novos “Prontuários por voz” – de tipo multilingual automatic speech recognition – esse trabalho todo também será automatizado, capturando a voz e preenchendo as “planilhas” sozinho. O que é sem dúvidas um dispositivo primoroso. Mas, para os tecnosolucionistas vale considerar, primeiro: até isso ser disseminado, mantidas as coordenadas atuais, muitos trabalhadores já terão caído de esgotamento. Segundo: quando isso acontecer, como toda tecnologia nova, ela terá qualidades diferentes e com preços diferentes, logo, chegará de modo desigual aos serviços e às diferentes ocupações, mantendo os mesmos riscos ditos acima para boa parte das ocupações.
Terceiro, e sobretudo, em todos os séculos de vigência do capitalismo, não há qualquer sinal de que um novo processo de automação do trabalho tenha levado “naturalmente” o/a trabalhador/a a mais tempo livre. Muitíssimo pelo contrário, a pressão dos andares de cima foi e tem sido desde sempre a mesma: sugar o máximo de trabalho vivo. Quando os computadores e a internet chegaram no postinho, o discurso era o mesmo: maior eficiência com mais qualidade de trabalho. Onde? Quando? Alguém viu? Atualmente a duração média das consultas varia de 48 segundos na periferia do sistema, como visto em Bangladesh, a 22,5 minutos nos seus centros de excelência, como na Suécia. Para qual lado da balança vocês acham que a “saúde digital” vai pesar?
Ademais, isso não apenas prejudica uma boa clínica, mas fere diretamente a capacidade das equipes de saúde de planejarem e avaliarem seus processos de trabalho a partir das necessidades da população sob seus cuidados. Para começar, os dados produzidos, registrados pelos trabalhadores, não retornam para eles mesmos como intelecto coletivo para melhorarem suas condições de trabalho – como aperfeiçoarem o planejamento e a execução de suas funções. Além disso, esses dados também podem ser utilizados como novos meios de vigilância e controle sobre eles.
Ainda sem dados particulares sobre o campo da saúde propriamente, é isso que apontam alguns novos relatórios sobre os impactos da IA no mundo do trabalho. Segundo eles, a chamada “gestão algorítmica” intensifica o monitoramento dos trabalhadores, promove individualização excessiva e competição interna, reduzindo autonomia e fragmentando ainda mais a solidariedade coletiva. Além de abrir espaço constante para os riscos de novas formas de discriminação e opressão contra os lados mais vulnerabilizados da classe trabalhadora, como as mulheres, idosos, racializados e LGBTQI+ devido a vieses algorítmicos. E, logicamente, jogando ainda mais brasa na pressão pelas metas e seus indicadores.
A chegada dessas tecnologias ocorre em contextos estruturais de pressão organizacional constante para aumento de produtividade e redução de custos, sem consideração adequada sobre os impactos nas condições de trabalho e segurança do cuidado ao usuário. E o agravante é que isso não é a exceção de uma empresa ou outra. É a regra, ou melhor, a lei tendencial do capital – elevada à última potência nas ultimas décadas.
É preciso insistir, nas sociedades reféns do acúmulo infinito de capital: a lei é que as tecnologias são erigidas para sugar trabalho vivo. Os saberes e práticas dos profissionais são cristalizados em máquinas – no caso atual em máquinas estatísticas – ao mesmo tempo em que precarizam as atividades que se fazem necessárias para operar essas mesmas máquinas. A inovações que deveriam liberar tempo para cuidado ao paciente, ao contrário resultam em maior tempo gasto em tarefas para administrar máquinas.
Assim, se o objetivo central é reduzir os custos de produção ao máximo, além de eliminar trabalho vivo, uma das consequências desse imperativo é a reorganização da divisão técnica do trabalho, posto que um minuto de uma médica é mais caro do que o da enfermeira, este mais do que o da técnica de enfermagem, este mais do que o da… De tal modo, a linha de produção capitalista termina por rebaixar as exigências de qualificação e, consequentemente, da qualidade dos serviços. Ao fim, pelas leis da concorrência entre os capitalistas, a tendência é a desvalorização e precarização desigual e combinada de todas as ocupações – inclusive a médica.
A “saúde digital”, portanto, nesses moldes, aponta para o recrudescimento da desvalorização dos trabalhadores, e a subordinação do cuidado ao trabalho “intelectual” rotinizado, maquínico. Jogando o paciente real na competição por tempo com o avatar dos sistemas digitais. (Não duvidemos disso, pois isso só não acontecerá se houver luta política).
Já há sinais nesse sentido, o que alguns pesquisadores denominam de deskilling. Trata-se do processo pelo qual há a degradação progressiva das competências e qualificações profissionais, como a clínica, causada pela dependência excessiva de tecnologias digitais automatizadas. Este fenômeno foi empiricamente documentado em 2024, quando um estudo clínico com 1.400 colonoscopias revelou que médicos experientes apresentaram queda de 20% na detecção de adenomas após apenas três meses usando assistência de IA. Segundo o conjunto da literatura, o deskilling manifesta-se através de múltiplos mecanismos: atrofia por desuso de habilidades diagnósticas, erosão da confiança no julgamento clínico próprio, e substituição de competências cognitivas centrais por algoritmos. As competências mais vulneráveis incluem exame físico, diagnóstico diferencial, julgamento clínico e comunicação médico-paciente.
Uma vez, em sala de aula, ouvi (Leandro) da professora Lilia Schreiber que a industrialização da medicina havia transformado o médico em “operador de protocolos”. Uma expressão para designar a tecnificação do processo de trabalho em saúde e a consequente transformação do profissional em um executor mecânico de condutas padronizadas, enquanto o paciente se reduz a um corpo-objeto onde se dá a doença e, consequentemente, o ato médico. Com essa “saúde digital” a caminho, o protocolo agora automatizado transformará o profissional em um operador de prompts da IA, que passará a raciocinar por ele – à semelhança da metáfora de Marx sobre o trabalhador como apêndice da máquina.
Dos impactos na saúde dos trabalhadores à degradação das suas competências não dá, portanto, para pintar um mar de rosas. Se, logicamente, não podemos esperar que a defesa dos trabalhadores da saúde venha dos nossos adversários e inimigos políticos, enquanto ficarmos reféns do pacto de silêncio do progressismo, quem trará as reflexões e críticas? E, sem elas, como serão pautadas e criadas saídas a curto, médio e longo prazo? Como educaremos as novas gerações de profissionais?
Com efeito, hoje não conseguiremos barrar com todas as nossas forças a agenda de “transformação digital da saúde” que não se preocupa com os trabalhadores da saúde. Mas, hoje mesmo algumas ações já poderiam estar sendo realizadas para que amanhã e depois de amanhã a correlação de forças mude. Poderíamos, por exemplo, destinar recursos e especialistas para pesquisas sobre os impactos da “saúde digital” no mundo do trabalho em saúde; recursos e especialistas para construir políticas de design participativo de construção de soluções efetivamente a favor do SUS e seus trabalhadores; recursos e especialistas para provisão de treinamento e educação – crítica – em literacia digital para os trabalhadores; recursos e vontade política para ter canais de comunicação e jornalismo robustos que estimulem e favoreçam o pensamento crítico sobre “saúde digital”; bem como maior vontade política em ver as categorias da saúde organizadas e mobilizadas para debater e pautar saídas que atendam aos seus interesses e anseios.
Entretanto, pouco1 ou nada disso está de fato na agenda do SEIDIGI, do Ministério e da Presidência. E só as vozes críticas poderão fazer com que um dia estejam!
1 Vale a pena citar a iniciativa do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde: Informação e Saúde Digital (PET-Saúde/I&SD), uma oportunidade que poderá ser aproveitada com fôlego como espaço de criação de experiência nesse sentido.
Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras