Brasília Teimosa: Beleza e aprendizado em fotos

No Recife (PE), um bairro de resistência, fundado por pescadores. Mas que pode ser tragada pelo “Novo Atlântico”, projeto da especulação imobiliária. Uma fotógrafa o registra, não o que falta, mas pelo que excede: o lazer, as subjetividades, o “vulgar”

BRASÍLIA TEIMOSA / STUBBORN BRASÍLIA, 2005-2007. Série de 22 fotografias / series of 22 photographs. Impressão fotográfica sob plexiglass / lightjet print mounted on plexiglass. 20 x 30 cm, 30 x 45 cm, 50 x75 cm. Recife, Brasil.
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Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS), com o título “‘Teimosia e aprendizado social”. Para ler outros textos da BVPS por nós publicados, clique aqui.

A foto acima faz parte de uma série criada pela fotógrafa Bárbara Wagner chamada Brasília Teimosa. Nela, um rapaz de óculos escuros, dorso nu, aparece ostentando seu carro de cor amarela forte, estacionado (vistosamente) em uma praia, e circundado por pessoas que trabalham ou aproveitam as areias quentes de Recife.

A imagem lembra (apenas vagamente) uma outra, mais afastada no tempo, histórica, digamos assim, feita para figurar como propaganda do governo Juscelino Kubitschek, que procurava atrair, no final da década de 1950, a população mais vulnerável do Nordeste para o novo empreendimento que, entre outros, objetivava a construção de uma nova capital modernista para o Brasil.

Ake Borglund. Brasília, 1957.
Ake Borglund. Brasília, 1957.

Na primeira foto oficial, vemos essa migração forçada e sem recursos, tomada por de trás, mas sob a aura de uma espécie de “missão civilizatória”. Na segunda, temos um trabalhador negro visto de frente, com suas trouxas sendo carregadas nas costas e nos braços, suas roupas simples, e em destaque uma seta que indica o caminho de BRASÍLIA, com os dizeres: “A nova capital do Brasil: Brasília alguns contra muitos a favor todos BENEFICIADOS” (conforme texto original).

Os dois anúncios não escondem a classe social da população engajada no projeto: são pobres, vindos do Nordeste para tentar a sorte na cidade grande. Depois chamados de candangos, eles durante muito tempo permaneceriam silenciados nas fotos que mostravam uma cidade grande, modernista, monumental. Nelas, apenas as elites dirigentes estão presentes e são elas que passariam a viver, a partir de 1964, nas avenidas planejadas por Niemeyer e Lúcio Costa, para bem representar a nova capital (Espada, 2010; Holston, 2010; Schwarcz; Kossoy, 2012).

Thomas Farkas, Brasília, 1959. Fonte: Instituto Moreira Salles.
Marcel Gautherot, Brasília, 1958.

Nas poucas imagens que restaram acerca das moradias provisórias, e dos acampamentos feitos de materiais frágeis, construídos paralelamente ao erguimento de Brasília, o contraste entre realidades é evidente. Assim como é clara a tentativa de representar essas pessoas sempre a partir da marca constitutiva da desigualdade e do anonimato.

Não por coincidência, data de 1944 a obra de Portinari chamada Os retirantes; tela que se transformou numa espécie de ícone perverso dessas populações migrantes, famílias inteiras unidas pela fome, pelos corpos esquálidos e encobertas pela falta de identidade. Ou melhor, expostas tão somente a partir de sua identidade regional reiterada, conferindo ao Nordeste a imagem da pobreza e da inviabilidade perversa.

Cândido Portinari, Os retirantes. 1944. Masp.

Já na imagem feita pela fotógrafa Bárbara Wagner, que faz parte da série chamada Brasília Teimosa, o ambiente é outro, com a população levando engradados e outros objetos nas costas, mas dedicando-se a seu próprio lazer, e não mais (apenas) condicionada pela rotina dura do trabalho e da pobreza. A pobreza deixa de ser espetáculo.

Tudo junto e separado, a foto traz uma situação também muito diversa dos cartões postais do litoral brasileiro – até por conta da história da ocupação dessa área. Brasília Teimosa situa-se na zona sul do Recife, entre o bairro do Pina e o Porto de Recife, em uma área conhecida por seus arrecifes que correm em linha contínua e paralela à orla.

A ocupação dessa região, antes denominada de Areal Novo, iniciou-se apenas em 1947. A mudança de nome é uma alusão à Brasília, que, como sabemos, foi inaugurada em 1960, e fora totalmente projetada durante o governo de Juscelino Kubitschek. A “teimosia” fica por conta da força da população, que, ameaçada de expulsão a partir dos anos 1950, quando a área foi designada pelo Estado para a construção de depósitos inflamáveis, perseverou, reconstruindo suas casas de noite para que elas fossem constantemente demolidas, ao longo dos dias. Tudo isso no mesmo contexto da construção da “orgulhosa” Capital Federal.

O contraste entre construção e demolição se colou à história do lugar e de sua época, a ponto de, em 1956, uma jangada com 5 pescadores vindos do local aportar no Rio de Janeiro, para que sua tripulação pudesse assistir à posse de JK como Presidente da República, e assim chamar atenção para a situação dessa comunidade, no Recife.

Essa era uma maneira resiliente de lutar pela igualdade de direitos em um contexto no qual as câmaras, as luzes e a imaginação nacional ainda se concentravam, com grande exclusividade, na região Sudeste. Era também uma maneira de enfrentamento das desigualdades a partir da participação cidadã dessa pequena comunidade em um contexto cívico – a posse de um novo presidente da República.

Ao que tudo indica, pragmaticamente falando, os habitantes da região não foram recebidos pelo Presidente. Mas o gesto simbólico – que ecoava também a luta dos jangadeiros no Ceará pela promoção da abolição ainda em 1886 – se colou ao título popular do local que remete não a uma “Brasília oficial”, mas a uma “Brasília teimosa” no exercício da construção de vocabulários políticos, históricos, sociais e culturais, que assim levam a um “aprendizado social da igualdade” – fazendo dessa luta, um caso exemplar. [1]

Brasília Teimosa é a mais antiga ocupação urbana do Recife, lograda a partir do esforço da própria comunidade, que permaneceu “teimosamente” no local, opondo-se à intervenção de vários grupos sociais com mais cacife econômico e político.[2]

Conta o “Olho da gente” que o morador Almir Ferreira, que vive como pescador e é mais conhecido como Kinca, acompanhou o processo de construção da Vila de pescadores Moacir Gomes, uma das primeiras ocupações que deu origem ao bairro de Brasília Teimosa. Ele relatou que o presidente do Conselho de Moradores da comunidade foi quem os ajudou a conquistar o terreno e como foram os nativos do local que lutaram e conseguiram a liberação do espaço para a construção de suas casas. Um dos principais agentes desse movimento foi, justamente, Moacir Gomes, que acabou dando origem ao primeiro nome da vila.

Antigamente Brasília Teimosa era ocupada apenas por pescadores. Com o passar dos anos, pessoas vindas de outras localidades foram chegando e comprando terrenos, mas o Conselho é ainda formado basicamente por pescadores. O certo é que o bairro da Brasília Teimosa foi construído a partir da luta organizada por seus moradores e foi uma das primeiras áreas a serem urbanizadas com recursos do Banco Nacional de Habitação (BNH), através de um projeto de urbanização não por coincidência chamado de Teimosinho. [3]

No entanto, depois das intervenções urbanísticas organizadas pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), nos anos 1980, e pelo Governo Federal, em 2004, Brasília Teimosa se tornou alvo da expansão imobiliária, a partir de um projeto chamado “Novo Atlântico”, que implicou a construção de uma torre, um grande empreendimento comercial no bairro ao lado (Pina) e a inauguração do Shopping Rio-Mar. Nomes não são apenas nomes e o “Novo Atlântico” pretendia dominar a “Brasília Teimosa”.

Ainda em 2004, uma nova intervenção urbana foi realizada pelo Governo Federal com a construção de uma avenida à beira-mar. Porém, mais uma vez, Brasília Teimosa resistiu e hoje a orla marítima conta com restaurantes típicos e comércio de frutos do mar, com seus moradores dominando a economia local. Como se vê, a comunidade reunida não apostou na manutenção da desigualdade, mas sim nas promessas e janelas de oportunidade de construção de igualdade, num aprendizado coletivo realizado pela própria população local. 

E é esse sentido de “aprendizado” que Bárbara Wagner recupera, mostrando o orgulho e a teimosia do pessoal do bairro em suas fotos, nas quais está presente não o que falta, mas o que excede: o lazer, a subjetividade, as atividades, as formas de sociabilidade.

A fotógrafa, que mora em Recife desde 1988, chamou de Brasília Teimosa a essa série de 22 fotos realizadas ao longo dos anos de 2005 e 2007, sempre aos domingos. Por isso, e como ela define: “A atenção está na representação de classe e status através da posse”.[4] O certo é que, na fotografia de Bárbara, o olhar se volta para o “corpo popular” e suas estratégias de subversão a partir da visibilidade.

Bárbara atuava até então como fotojornalista, cumprindo com o chão diário de uma redação. Por lá, desenvolveu a técnica, mas também a leitura crítica de estereótipos visuais tão presentes nos noticiosos diários.  Nas palavras da artista, ela pretendia “explorar o clichê até desalinhá-lo”. Suas lentes captavam, pois, não apenas a miséria, mas, sobretudo, a riqueza da cultura popular e de suas tradições.

Dá-se, assim, a construção de uma outra experiência de Nordeste, com as fotos de Bárbara Wagner entregando um olhar quase barroco, excessivo, que retrata dignamente pessoas que juntaram liberdade com necessidade, compromisso com as escolhas que precisaram fazer.

As tradições populares do Nordeste acabam se apresentando, pois, como uma espécie de escola da arte para ela, não pela exaltação do folclore e dos aspectos puramente carnavalesco ou pitorescos, mas a partir do conhecimento que essa comunidade produz com sua própria corporalidade, das formas que desenham ao ocupar os modos de produção local, do ritual e do espetáculo que criam. O suposto é que há muito trabalho investido em todos esses espaços da convivialidade. Mesmo aos domingos…

Bárbara realiza uma espécie de etnografia, de não ficção e de ficção, que se pauta em sua experiência como jornalista – e na urgência de observar os fatos –, mas também na linguagem do ensaio visual, que propositadamente recorta, seleciona o olhar e imprime argumentos. Além do mais, a fotógrafa tem muito de antropóloga, ao criar um método de abordagem condicionado pela busca do encontro e pelo respeito diante das pessoas fotografadas. A artista engaja as pessoas que quer retratar, permite que elas próprias atuem, fazendo da sua obra um “documentário de ficção”.    

BRASÍLIA TEIMOSA / STUBBORN BRASÍLIA , 2005-2007. Série de 22 fotografias / series of 22 photographs. Impressão fotográfica sob plexiglass / lightjet print mounted on plexiglass. 20 x 30 cm, 30 x 45 cm, 50 x75 cm. Recife, Brasil.

A série Brasília Teimosa elabora questões raramente focadas diretamente pela mídia, que em geral prefere estigmatizar as opções de gosto, de consumo e de comportamento vivenciadas em bairros de classe popular. Pois, para Bárbara, o interesse parece se centrar na sabedoria existente por detrás da assim chamada “vulgaridade” dessas pessoas, e que diz respeito a políticas de orgulho e não de vitimização.

Na foto acima, vemos quatro protagonistas retratados em situações plenas, exibindo suas roupas, revelando seus corpos, posando em frente a seus carrões. As cores são fortes, as expressões felizes mostram outras estéticas que não pedem a nossa licença para serem reveladas.

BRASÍLIA TEIMOSA / STUBBORN BRASÍLIA , 2005-2007. Série de 22 fotografias / series of 22 photographs. Impressão fotográfica sob plexiglass / lightjet print mounted on plexiglass. 20 x 30 cm, 30 x 45 cm, 50 x75 cm. Recife, Brasil.

Termino esse ensaio com essa foto de duas crianças negras, que nos encaram fixamente enquanto observamos seus corpos, suas vestes, sua situação de classe. Com seus corpos exuberantes, cabelos pintados e bem cortados, maios e adereços na moda, eles não devolvem a representação construída sobretudo pelas elites do Sudeste acerca do Nordeste – por tanto tempo representado a partir das imagens de migrantes esquálidos.

Nessa foto, os dois meninos retratados vivenciam sua infância, com seus corpos ainda molhados e recém-saídos da água, junto com outros corpos que também aproveitam o sol para se divertir em um domingo de descanso.

Em vez das formas retas e modernistas de Brasília, a Brasília Teimosa de Bárbara Wagner é barroca e arredondada, não por falta, mas por excesso.  


Notas

[1] Instituto Igualdade: Instituto Nacional de Aprendizado Social e Promoção da Igualdade (INCT/CNPq).

[2] Confira aqui.

[3] Vide, “O Recife sem palafitas”. Recife, 2019.

[4] Bárbara Wagner. Brasília Teimosa, 2007.

Referências

ESPADA, Helouise (org.). (2010). As construções de Brasília. São Paulo, Instituto Moreira Salles.

HOLSTON, James Holston. (2010). A cidade moderna; uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo. Companhia das Letras.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; KOSSOY, Boris. (2012) Um olhar sobre o Brasil: a fotografia na construção da imagem da nação. 1833 – 2003. Madri; Rio de Janeiro: Fundación Mapfre; Objetiva.

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