SUS: desprivatizar é possível – e necessário
Pesquisador elenca as formas de infiltração do setor privado no sistema público, tendência crescente que fragmenta o atendimento à população. Ele debate: é urgente começar a reverter esses processos, caminho único para garantir que a Saúde seja de fato universal
Publicado 05/09/2025 às 12:00
Leonardo Mattos em entrevista a Gabriela Leite, para a série SUS 35 anos
Aqueles que lutam por um Sistema Único de Saúde (SUS) que reduza as desigualdades ao invés de expandi-las há muito denunciam as pressões no sentido da privatização do sistema. Mas há também de se pensar nas formas de desprivatizá-lo, estratégias para tornar públicos os componentes que foram entregues a corporações e que, com isso, fragmentam o sistema e prejudicam a população.
Quem faz esse alerta é Leonardo Mattos, coordenador do Observatório da Desprivatização da Saúde e do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES/UFRJ), ligado à pesquisadora Ligia Bahia. Ele foi o entrevistado da semana para a série SUS 35 anos, que antecede o seminário que Outra Saúde organiza para os dias 18 e 19 de setembro (inscreva-se e participe gratuitamente).
“Para termos um SUS de fato universal no Brasil, vamos precisar desprivatizá-lo”, ele defende, “uma coisa não é possível sem a outra, precisamos levar essa conclusão às últimas consequências em termos de projetos, de propostas e de elaboração política”.
Para isso, é necessário compreender de que formas o setor privado se infiltra no sistema público. Leonardo, que também é professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da UFRJ, lista quatro deles. A primeira forma de privatização se dá no âmbito dos recursos e do financiamento da saúde. Hoje, os gastos no país com o setor equivalem a 9,7% do PIB, mas o investimento público corresponde a apenas cerca de 40% desse total – ou 4% do PIB. “Em outros sistemas de saúde universais, isso chega a 80% ou mais”, explica Leonardo.
“Essa composição de gastos é um problema estrutural que vem persistindo ao longo do tempo. Ao olhar para os gastos em saúde, já podemos entender que o financiamento desse sistema está muito desequilibrado”, alerta o pesquisador. Os 5,7% de gastos privados são despendidos principalmente pelas famílias, com medicamentos e seguros de saúde. O que nos leva à segunda forma de privatização do sistema: a saúde suplementar.
Historicamente, o setor de prestação de serviços médicos privados via operadoras de saúde atende cerca de 25% da população brasileira – que tem uma clientela composta sobretudo pelas classes mais altas e pelos empregados no mercado de trabalho formal. “É importante lembrar que esses planos de saúde têm muitos incentivos, principalmente via isenções de impostos de pessoas físicas e jurídicas. Quer dizer: há financiamento público para o setor privado”, alerta Leonardo.
Essa distorção do financiamento é “uma fonte de inúmeras distorções e desigualdades”. Um mercado de planos de saúde dessas proporções provoca também a fragmentação do sistema, segundo o pesquisador. “Temos elementos para pensar que esse mercado é grande demais, gera muita desorganização, muita ineficiência e gera também uma prática médica que não está adequada à nossa realidade.”
O terceiro modo de infiltração privada no SUS acontece na prestação de serviços. O Brasil tem uma ampla gama de serviços privados em todos os níveis de atenção e graus de complexidade, explica Leonardo – e o sistema público depende fortemente deles para o atendimento da população. Basta ver que o programa Agora Tem Especialistas, do Ministério da Saúde, procura se valer amplamente desses prestadores para oferecer consultas, exames e cirurgias à população – secundarizando a expansão desses serviços no SUS.
Isso quando as empresas não se engendram na própria gestão do sistema de saúde, como acontece na Atenção Primária à Saúde, com as Organizações Sociais de Saúde (OSS). São entidades contratadas sobretudo pelas prefeituras para administrar o atendimento à população. Com dinheiro público e atendendo a uma racionalidade neoliberal, impõem metas de trabalho desajustadas da real necessidade dos territórios e não raro precarizam seus funcionários.
Como um todo, esses fatores contribuem para ampliar ao menos três grandes problemas, segundo Leonardo. Geram um sistema de saúde fragmentado e segmentado; impedem que o Brasil tenha um sistema orientado pelas necessidades de saúde, territorializado e regionalizado; e contribuem para o subfinanciamento histórico do SUS, fragilizando a oferta de serviços à população.
A privatização da saúde obviamente não começou com o SUS, explica Leonardo, a sua criação apenas reacomodou a privatização sob novas bases. “O sistema de saúde brasileiro apresenta uma tendência de privatização histórica que se aprofundou muito durante a ditadura militar, e que persiste até hoje”, e não foi interrompida pela Reforma Sanitária. Mas o Sistema Único de Saúde possibilitou a desprivatização de alguns setores cruciais, segundo ele, a exemplo do Programa Nacional de Imunizações, da expansão da Atenção Primária por todo o país e do Sistema Nacional de Transplantes, com uma fila unificada para todos os pacientes.
Mas como e por onde começar a reverter os processos de privatização acima elencados? Leonardo defende que comecemos a olhar para experiências no Sul Global, para pensar alternativas do Sul para o Sul. Ele sustenta que é preciso observar experiências da América Latina, mas também de países da África e da Ásia. “Nenhuma dessas experiências vai nos dizer o que temos que fazer aqui no Brasil, mas vão nos mostrar que é possível colocar a desprivatização na agenda, para que possamos conquistar vitórias maiores.” O sentido não é só aumentar o público, mas diminuir o setor privado, defende o pesquisador – e tanto a nossa história quanto a de outros países mostra que é possível.
Isso não vai acontecer num passe de mágica, reconhece Leonardo.
Mas é preciso ver o sistema como um todo para pensar possibilidades. E isso não acontecerá sem mobilização popular: “Precisamos construir uma agenda ampla, complexa e que vai exigir um debate muito forte e sincero entre nós e com o conjunto da sociedade”. Um dos desafios do momento, para ele, é convencer o maior número de pessoas da importância da desprivatização. “Eu não acredito que vamos fazer mudanças profundas no sistema de saúde – ou na nossa sociedade – se não tivermos forças políticas capazes de mobilizar as pessoas para um projeto melhor de sociedade, com justiça social, soberania e direito universal à saúde de fato”, finaliza.
Créditos da imagem: HealthcareBrew
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