A esquerda israelense sob fogo cruzado
Ocultadas pela mídia brasileira, multiplicam-se as manifestações contra o genocídio em Telaviv e outras cidades. Um dos movimentos reúne israelenses e palestinos. Nossa colaboradora descreve a cena – e polemiza com artigo em que apontamos oposição ao sionismo em Freud, Arendt e Einstein
Publicado 03/09/2025 às 19:23 - Atualizado 03/09/2025 às 19:30

Por Débora F. Lerrer
No dia 17 de agosto, o Fórum das Famílias dos sequestrados convocou uma Greve Geral que se tornou a maior manifestação de Israel desde o 7 de outubro de 2023 e da mais longa guerra desencadeada nesta região desde complexa e conflituosa fundação deste estado-nação. Mesmo não contando com o apoio da Hisdradut, a principal central sindical de Israel, o ato reuniu mais de 500 mil pessoas desesperadas contra a continuidade da guerra e, enfim, informadas da fome que se alastra por Gaza. Até então a mídia israelense não difundia as informações espalhadas por todo globo terrestre sobre o desastre humanitário em curso no enclave palestino hoje praticamente destruído.
Nesta última terça, 2 de setembro, houve a maior convocação de reservistas para o Exército de Israel desde o 7 de outubro, com o objetivo de invadir a Cidade de Gaza. No entanto, muitos reservistas pediram isenção e as unidades têm registrado menor comparecimento do que em convocações anteriores. Os movimentos de recusa a servir nunca foram tão grandes na história de Israel. O 900º soldado caído na guerra foi o brasileiro Ariel Lubliner, no dia 30 de agosto. E a foto de seu filho de 9 meses ao lado do local onde ele foi enterrado teve grande repercussão no país.
Atualmente, mais de 70% da população israelense quer o fim da guerra, mas o governo extremista de Benjamin Netanyahu segue se fazendo de surdo. É de fato muito difícil tirar um governo de extrema-direita do poder, ainda mais que esta direita foi construindo sua hegemonia a partir do medo real de uma vizinhança historicamente pouco amistosa. E no território, onde nasceu há milênios a explosiva combinação de monoteísmo com messianismo, o fanatismo religioso pode ser ainda pior.
A manifestação do domingo, dia 17, só foi a maior até agora, mas é fato que todas as semanas há manifestações contra a guerra e o governo isralense, geralmente nos sábados à noite, que é dia de descanso. Domingo, que é a segunda-feira deles, é que requer um esforço consistente de mobilização. No caso do dia 17, para um país de 9 milhões de pessoas, foi como se 10 milhões de brasileiros tivessem ido para as ruas.
Mas talvez a maior novidade no cenário israelense seja o movimento social Standing Together, que reúne israelenses e palestinos. No dia 26 de agosto, ele reuniu mais de 100 mil pessoas em Tel Aviv, após um dia de distúrbios de Haifa a Jerusalém.
Vendo que os números nas ruas não fazem grande diferença para o governo Netanyahu, a tendência é que aumente a temperatura, visto que a esquerda israelense está em uma encruzilhada existencial. Jovens ativistas do Standing Together, por exemplo, invadiram a transmissão ao vivo do programa Big Brother israelense para protestar contra a guerra. Com seu país acusado internacionalmente de genocídio por uma guerra que não apoiam, os israelenses de esquerda são um dos grupos mais isolado do mundo. E se não lutarem, não vão sobreviver politicamente em um país cada vez mais dominando por uma direita criminosa, que é, de fato, o maior perigo existencial de Israel.
Freud, Arendt e Einstein: intelectuais anti-sionistas?
Uma das formas mais manjadas de manipular informações é pinçar frases fora de um contexto mais abrangente. Qualquer afirmação sobre a relação de intelectuais judeus de peso e influência mundial como Sigmund Freud, Albert Einstein e Hanna Arendt em relação ao sionismo, quando se apoia em algumas cartas e escritos, apaga estas nuances. Este método reproduz a forma de enquadramento da realidade que a chamada imprensa burguesa usa e abusa para noticiar, por exemplo, a luta pela reforma agrária no Brasil.
Como se sabe, os sem-terra geralmente são apresentados como foras-da-lei, porque o jornalismo brasileiro raramente informa a seus leitores e telespectadores que as terras que eles supostamente invadem não são nem privadas nem produtivas. A maioria dos imóveis rurais ocupados por movimentos de sem-terra, como o MST, ou são públicas e irregulares, por serem griladas, ou são de proprietários endividados com o Banco do Brasil. E óbvio, todas são improdutivas, pelo índice de produtividade de 1975, ou arrendadas a terceiros, situações que legitimam perante a Constituição de 1988 as ocupações destes imóveis para pressionar pela reforma agrária. Em suma, são terras usurpadas do Estado ou usadas para extrair renda por seus proprietários, mas não diretamente exploradas por eles. No entanto, o fato de a imprensa não acentuar em suas manchetes o roubo organizado promovido por uma associação de donos de cartórios, políticos, juízes e empresários de vastos domínios territoriais desde a Lei de Terras de 1850, impede que a população brasileira mude sua perspectiva. Afinal, o Estado brasileiro se nega a criar uma governança fundiária e resolveu delegar a entes privados a ocupação de seu território imenso, o que gera crimes ambientais e conflitos violentos, cujas vítimas preferenciais são os trabalhadores, lideranças populares e ativistas.
É mais ou menos este procedimento de elipses significativas que se baseia artigo de Roberto Montoya sobre os intelectuais que afirmou serem anti-sionistas. Por exemplo, o livro Moisés e o Monoteísmo, Esboço de Psicanálise e outros trabalhos (1937-1939) é a última obra do “pai da psicanálise” e reúne textos de Freud escritos bem depois da carta que Montoya se utiliza para afirmar que Freud era anti-sionista, datada de 1930. Ou seja, antes de Hitler chegar ao poder e de Freud vivenciar os distúrbios fascistas que ocorriam na Áustria, que culminaram com a ocupação nazista em Viena e a fuga com sua família para Londres. Importante destacar que, segundo nota do editor inglês, ao contrário de outros trabalhos, Moisés e o Monoteísmo é um texto irregular, que demorou quatro anos para ser finalizado por Freud, o qual tinha dúvidas se sua argumentação estava equilibrada e não queria provocar a hierarquia católico-romana.
Ele mesmo admite isso na Nota Preliminar II, onde apresenta seu “terceiro e conclusivo ensaio” sobre Moisés — para ele, um egípcio –, explicando que os dois prefácios anteriores eram diferentes: se contradiziam e se anulavam porque “ocorreu uma mudança fundamental nas circunstâncias do autor” que até então estava “vivendo sob a proteção da Igreja Católica” e, portanto, temia que a publicação deste ensaio “resultasse na perda desta proteção e conjurasse uma proibição sobre o trabalho dos adeptos e estudiosos da psicanálise na Áustria”. Precisamente nesta terceira parte, Freud, que afirma não se sentir à vontade no campo da psicologia grupal, tenta explicar o fenômeno intenso e permanente, que era “o ódio do povo pelos judeus”. Uma de suas explicações fundamentais é o fato de os povos do norte da Europa, como os germânicos, serem provavelmente “mal batizados” por terem sido convertidos ao cristianismo à força. Como este processo foi feito a partir dos Evangelhos, uma história que se passa entre judeus, deslocaram esse ressentimento para o povo de onde se originava o cristianismo. Outra razão é o fato de os judeus serem uma minoria nos países que viviam, e o ódio ao diferente fortalece o sentimento comunal de um grupo. Para agravar, não eram mais tão diferentes assim dos povos entre os quais viviam há séculos na Europa, provocando uma intolerância mais intensa do que se houvesse diferenças fundamentais. Algo que explica a extrema rivalidade existente entre colorados e gremistas no Rio Grande do Sul, ou entre paulistas e cariocas.
Para Freud, os motivos mais profundos do ódio aos judeus estavam enraizados “nas mais remotas eras passadas” e operavam “desde o inconsciente dos povos”, embora não parecessem razoáveis. Primeiro o repúdio à circuncisão, que lembra a “temida castração” e, a seguir, o ainda não superado “ciúme para com o povo que se declarou o filho primogênito e favorito de Deus Pai”.
Ou seja, em sua última obra, o ateu Freud se dedica a compreender as fontes do ódio coletivo crescente na Europa, que desembocaria na “solução final” dos nazistas para a “questão judaica” dois anos depois. Difícil imaginar que, neste contexto, mantivesse a mesma posição de uma carta de 9 anos antes. Afinal, naquele período, a grande massa de judeus da Europa não tinha para onde ir. Era um salve-se quem puder, como ele mesmo havia sentido na pele poucos meses antes. Freud podia rejeitar a ideia de um Estado judaico, mas não um canto mais ou menos pacífico para seus conterrâneos. Em que pese a ofensa que isso representava para os árabes-palestinos, os judeus estavam engajados em construir uma sociedade diferente naquela esquina do mundo, baseada nos kibutzin, cooperativas agrícolas criadas por movimentos socialistas judaicos formados por jovens vindos sobretudo do Império Russo, que na época incluía também a Polônia.
No caso de Einstein, Montoya usa cartas e manifestações de diversos períodos, em que o físico se declara contra a ideia de um Estado Judaico e repudia as atividades do Irgun, grupo terrorista liderado por Menahen Begin, que originou o Likud, partido de Netanyahu. Mas Begin não era um “procer” do sionismo, ao contrário do que afirma Montoya. Ele era uma liderança terrorista, da extrema-direita judaica, que ocupava um lugar muito marginal no sionismo da época, dominado pelo Ben Gurion e o Partido Trabalhista de Israel, o Mapai. A primeira lista de parlamentares eleitos para o Knesset em 1948 era liderada pelo partido de Gurion e por outro mais à esquerda, que representava os socialistas dos kibutzin. Ou seja, a maioria eleitoral entre os judeus na época era de esquerda. Foi Ben Gurion que resolveu compor o governo com outros partidos mais ao centro e à direita, definindo a trajetória que desembocou no militarismo israelense. Por outro lado, a chegada dos 700 mil judeus vindos dos países do Oriente Médio e, mais recentemente, dos judeus russos, pós-queda da União Soviética empurrou o pêndulo para a direita.
É fato que Israel tomou mais terra do que havia previsto a partilha promovida pela ONU, depois que ganhou a Guerra de 1948. Também não permitiu que os 700 mil palestinos retornassem a suas casas. Tudo isso fez a animosidade crescer com o mundo árabe e com os clãs palestinos deslocados. Mas, na época, dentro da sociedade israelense foi como uma troca. Vocês expulsaram os judeus da sua vizinhança, e nós os árabes da nossa. Foram decisões políticas lamentáveis, baseadas num nacionalismo étnico importado da Europa e, portanto, racista.
É importante destacar que a declaração de Balfour foi muito mal recebida pela população árabe porque suas lideranças sonhavam com uma unidade territorial em toda a região. Uma espécie de Grande Síria agora não mais controlada pelo Império Turco, mas pelas lideranças árabes do Levante. Mas foram os franceses e os ingleses que impediram isso. Fato é que a melhor forma de você dominar um território é semeando a cizânia entre seus habitantes. Isso provocou a violência entre palestinos e judeus já nos anos 1920, insuflados por esta extrema-direita árabe que organizou dois “pogroms” contra famílias judias que viviam havia séculos em Jerusalém, Hebrom e Sefed (Sfat), em 1922 e 1929. Só por conta destes dois episódios é que a minoria judia que vivia na então Palestina se bandeou para o sionismo ocidental e nacionalista de Ben Gurion. Havia, sim, um choque cultural entre os judeus oriundos da Europa Oriental, com a população árabe e judia local.
Outra ausência importante do cenário do artigo de Montoya é o levante palestino de 1936 contra o mandado britânico. Violentamente reprimido pelos ingleses, foi esta revolta que fez Londres adotar o “Livro Branco”. No entanto, esta vitória custou que a maior parte da liderança política palestina fosse morta ou exilada. Enquanto isso, os judeus integraram ao Exército Britânico para lutar contra o nazismo. Os ingleses exigiam a participação de árabes nestas brigadas, mas a maioria desertava. Foi graças a esta curta experiência e treino britânico que surgiu o embrião das Forças de Defesa de Israel. Ok, eles hoje fazem uma guerra suja em Gaza. Mas é fato que os judeus que viviam em Israel desde fins do século XIX eram oriundos de países diferentes e não tinham experiência militar. Quem controlava militarmente a região eram os soldados ingleses e franceses. E demorou bastante para os ingleses toparem treinarem judeus. Na prática, eles só entraram na guerra em 1944. Enquanto isso, o “Livro Branco”, que revogava a “Declaração de Balfour”, impedia a chegada e a compra de terras por judeus na Palestina, fechando mais uma alternativa para milhares deles se safarem dos massacres coletivos sofridos por comunidades judias ao longo do avanço nazista pelo leste europeu e das câmaras de gás. Afinal, o assassinato industrializado de 500 mil judeus húngaros em dois meses em Auschwitz ainda não foi superado por nenhum dos genocídios recentes. Talvez o ocorrido em Ruanda seja o mais próximo, mas ocorreu em quase quatro meses.
Hanna Arendt, quando fugiu da Alemanha em 1933 e foi para Paris, dedicou-se a trabalhar em organizações que ajudavam refugiados judeus a emigrar para a Palestina e proporcionava ajuda legal a antifascistas. Este período em que foi “apátrida” – pois só recebeu cidadania norte-americana em 1951 – foi o qual ela mais se engajou politicamente e seu foco era a política judaica por que, como concluiu ela: “quando uma pessoa é atacada como judia, ela deve defender-se como judia”. Arendt almejava ver florescer na pátria dos judeus os elementos que formavam sua teoria política: novas formas sociais, conselhos políticos locais, uma federação e a cooperação internacional, longe do chauvinismo nacionalista que acabou se cristalizando em Israel. No final dos anos 40, ela se aliou a Judah Magnes, que fundou um partido na Palestina chamado “Ikhud” (Unidade), em 1942, que defendia um Estado binacional, no qual nem judeus nem árabes seriam minorias e ambos teriam direitos iguais. Depois de publicar O sionismo reconsiderado, em 1944, Arendt publicou em 1948, o artigo “Para salvar a pátria judaica, ainda há tempo”. Ela, para quema organização política do mundo pós-guerra ou iria assumir a forma de impérios, ou de federações, achava que os judeus só tinham oportunidade de sobrevivência se fossem formadas federações. Nesta época, para baixar a fervura na região, Arendt passou a defender ideia de que uma curadoria temporária da ONU, para antecipar a condição de Estado, prevenindo a divisão e detendo a ascendência de terroristas judeus e árabes ao poder, possibilitando, assim, o surgimento de uma federação por acordos entre judeus e árabes. Ou seja, Arendt defendia um corrente sionista que foi derrotada, o que não significa que tivesse deixado de defender a uma pátria para os judeus.
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