Gaza: O assassinato da memória

Após bombas, massacres na fila por comida e fome… escavadeiras demolem uma das cidades mais antigas do mundo. A memória do genocídio é uma ameaça mortal a Israel – que por isso tenta apagá-la. Para justificar, a partir da negação histórica, sua vitimização eterna

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Por Chris Hedges, com tradução em A Terra é Redonda

Enquanto Israel marca em sua lista as atrocidades semelhantes às nazistas contra os palestinos, incluindo a fome em massa, se prepara para mais uma:  a demolição da Cidade de Gaza, uma das cidades mais antigas da Terra. Equipamentos pesados de engenharia e escavadeiras blindadas gigantescas estão demolindo centenas de edifícios severamente danificados. Caminhões de cimento estão despejando concreto para preencher túneis. Tanques israelenses e caças bombardeiam bairros para expulsar os palestinos que permanecem nas ruínas da cidade para o sul.

Levará meses para transformar a Cidade de Gaza em um estacionamento. Não tenho dúvidas de que Israel replicará a eficiência do general da SS nazista Erich von dem Bach-Zelewski, que supervisionou a obliteração de Varsóvia. Ele passou seus últimos anos em uma cela de prisão. Que a história, pelo menos em termos desta nota de rodapé, se repita.

Conforme os tanques israelenses avançam, os palestinos estão fugindo, com bairros como Sabra e Tuffah sendo limpos de seus habitantes. Há pouca água limpa e Israel planeja cortá-la no norte de Gaza. Os suprimentos de comida são escassos ou com preços exorbitantes. Um saco de farinha custa $22,00 por quilo, ou sua vida. Um relatório publicado na sexta-feira pela Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC), a principal autoridade mundial em insegurança alimentar, confirmou pela primeira vez uma fome na Cidade de Gaza. Diz que mais de 500 mil pessoas em Gaza estão enfrentando “fome, destituição e morte”, com “condições catastróficas” projetadas para se expandir para Deir al-Balah e Khan Younis no próximo mês. Quase 300 pessoas, incluindo 112 crianças, morreram de fome.

Líderes europeus, junto com Joe Biden e Donald Trump, nos lembram da verdadeira lição do Holocausto. Não é “Nunca Mais”, mas sim “Não Nos Importamos”. Eles são parceiros plenos no genocídio. Alguns torcem as mãos e dizem estar “horrorizados” ou “entristecidos”. Alguns condenam a fome orquestrada por Israel. Alguns poucos dizem que declararão um estado palestino.

Isto é teatro Kabuki – uma forma, quando o genocídio acabar, para esses líderes ocidentais insistirem que estavam do lado certo da história, mesmo enquanto armavam e financiavam os assassinos genocidas, enquanto assediavam, silenciavam ou criminalizavam aqueles que denunciavam o massacre.

Israel fala em ocupar a Cidade de Gaza. Mas isso é um subterfúgio. Gaza não deve ser ocupada. Deve ser destruída. Apagada. Varrida da face da Terra. Não deve sobrar nada além de toneladas de destroços que serão laboriosamente removidos. A paisagem lunar, desprovida de palestinos, é claro, fornecerá a fundação para novas colônias judaicas.

“Gaza será inteiramente destruída, civis serão enviados para… o sul para uma zona humanitária sem Hamas ou terrorismo, e de lá começarão a sair em grande número para países terceiros”, anunciou o Ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, em uma conferência sobre o aumento de assentamentos judaicos na Cisjordânia ocupada por Israel.

Tudo que me era familiar quando vivi em Gaza não existe mais. Meu escritório no centro da Cidade de Gaza. A pensão Marna na Rua Ahmed Abd el Aziz, onde após um dia de trabalho eu tomava chá com a mulher idosa que a possuía, uma refugiada de Safad no norte da Galileia. Os cafés que frequentava. Os pequenos cafés na praia.

Amigos e colegas, com poucas exceções, estão no exílio, mortos ou, na maioria dos casos, desapareceram, sem dúvida enterrados sob montanhas de destroços. Em minha última visita à Casa Marna, esqueci de devolver a chave do quarto. Número 12. Estava presa a um grande oval de plástico com as palavras “Marna House Gaza” nele. A chave está na minha mesa.

A imponente fortaleza Qasr al-Basha na Cidade Velha de Gaza – construída pelo sultão mameluco Baibars no século XIII e conhecida por sua escultura em relevo de dois leões se enfrentando – se foi. Assim como o Castelo Barquq, ou Qalʿat Barqūqa, uma mesquita fortificada da era mameluca construída em 1387-1388, segundo uma inscrição acima do portão de entrada. Sua ornamentada caligrafia árabe no portão principal uma vez dizia: “Em nome de Alá, o Mais Gracioso, Mais Misericordioso. As mesquitas de Deus devem estabelecer orações regulares, e praticar caridade regular, e não temer ninguém exceto Deus.”

A Grande Mesquita Omari na Cidade de Gaza, o antigo cemitério romano e o Cemitério de Guerra da Commonwealth – onde mais de 3.000 soldados britânicos e da commonwealth da Primeira e Segunda Guerra Mundial estão enterrados – foram bombardeados e destruídos, junto com universidades, arquivos, hospitais, mesquitas, igrejas, casas e blocos de apartamentos. O Porto de Anthedon, que data de 1100 a.C. e uma vez forneceu ancoragem para navios babilônicos, persas, gregos, romanos, bizantinos e otomanos, jaz em ruínas.

Eu costumava deixar meus sapatos em uma prateleira perto da porta da frente da Grande Mesquita Omari, a maior e mais antiga mesquita de Gaza, no Bairro Daraj da Cidade Velha. Lavava minhas mãos, rosto e pés nas torneiras de água comuns, realizando a purificação ritual antes da oração, conhecida como wudhu. Dentro do interior silencioso com seu piso azul acarpetado, a cacofonia, ruído, poeira, fumaça e ritmo frenético de Gaza se dissipavam.

A destruição de Gaza não é apenas um crime contra o povo palestino. É um crime contra nosso patrimônio cultural e histórico – um ataque à memória. Não podemos entender o presente, especialmente ao reportar sobre palestinos e israelenses, se não entendemos o passado.

A história é uma ameaça mortal para Israel. Ela expõe a imposição violenta de uma colônia europeia no mundo árabe. Revela a campanha implacável para des-arabizar um país árabe. Sublinha o racismo inerente em relação aos árabes, sua cultura e suas tradições. Desafia o mito de que, como disse o ex-primeiro-ministro israelense Ehud Barak, os sionistas criaram “uma vila no meio de uma selva”. Zomba da mentira de que a Palestina é exclusivamente uma pátria judaica. Relembra séculos de presença palestina. E destaca a cultura alienígena do sionismo, implantada em terra roubada.

Quando cobri o genocídio na Bósnia, os sérvios explodiram mesquitas, removeram os restos e proibiram qualquer um de falar sobre as estruturas que haviam destruído. O objetivo em Gaza é o mesmo, apagar o passado e substituí-lo por mito, para mascarar os crimes israelenses, incluindo genocídio.

A campanha de apagamento bane a investigação intelectual e impede o exame desapaixonado da história. Celebra o pensamento mágico. Permite que os israelenses finjam que a violência inerente que está no coração do projeto sionista, remontando à desapropriação de terras palestinas nos anos 1920 e às campanhas maiores de limpeza étnica de palestinos em 1948 e 1967, não existe.

Por esse motivo, o governo israelense proíbe comemorações públicas da Nakba, ou catástrofe, um dia de luto para palestinos que buscam lembrar os massacres e expulsão de 750.000 palestinos realizados por milícias judaicas em 1948 por essa razão. Os palestinos são até mesmo impedidos de carregar sua bandeira.

Esta negação da verdade histórica e identidade histórica permite que os israelenses se revolquem em vitimização eterna. Sustenta uma nostalgia moralmente cega por um passado inventado. Se os israelenses confrontarem essas mentiras, isso ameaça uma crise existencial. Os força a repensar quem são. A maioria prefere o conforto da ilusão. O desejo de acreditar é mais poderoso que o desejo de ver.

O apagamento calcifica uma sociedade. Fecha investigações por acadêmicos, jornalistas, historiadores, artistas e intelectuais que buscam explorar e examinar o passado e o presente. Sociedades calcificadas travam uma guerra constante contra a verdade. Mentiras e dissimulação devem ser constantemente renovadas. A verdade é perigosa. Uma vez estabelecida, é indestrutível.

Enquanto a verdade estiver escondida, enquanto aqueles que buscam a verdade forem silenciados, é impossível para uma sociedade se regenerar e se reformar. O governo Trump está em sintonia com Israel. Também busca priorizar o mito sobre a realidade. Também silencia aqueles que desafiam as mentiras do passado e as mentiras do presente.

Sociedades calcificadas não conseguem se comunicar com ninguém fora de seus círculos incestuosos. Negam fatos verificáveis, a fundação sobre a qual o diálogo racional acontece. Este entendimento estava no coração da Comissão de Verdade e Reconciliação da África do Sul. Aqueles que cometeram as atrocidades do regime do apartheid confessaram seus crimes em troca de imunidade. Ao fazer isso, deram às vítimas e aos vitimizadores uma linguagem comum, enraizada na verdade histórica. Só então a cura foi possível.

Israel não está apenas destruindo Gaza. Está destruindo a si mesmo.

Chris Hedges é jornalista. Autor, entre outros livros, de Empire of illusion: the end of literacy and the triumph of spectacle (Nation books).[https://amzn.to/463ydXE]

Tradução: Ricardo Kobayaski.

Publicado originalmente no substack do autor: The Chris Hedges Report.

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