Nem pop, nem tech e nem ogro: o agronegócio é família
Exame de uma construção semântico-ideológica. Como as classes sociais que se beneficiam do atual modelo agrícola agem para apresentá-lo como natural, desejável ou mesmo caminho único. Por que a desconstrução desta cilada não pode ser feita de forma rudimentar
Publicado 26/08/2025 às 15:18 - Atualizado 26/08/2025 às 15:35

Por Joelson Gonçalves de Carvalho
Nos últimos anos, o agronegócio tem sido representado de forma dual no imaginário social brasileiro. De um lado, emerge como protagonista de campanhas publicitárias milionárias, descrito como “pop”, moderno, tecnológico e responsável por alimentar o mundo. De outro, é denunciado como um ogronegócio — símbolo da violência contra povos do campo, do desmatamento em larga escala e da concentração de terras e riquezas. Essa polarização, embora revele disputas legítimas, tende a obscurecer a complexidade histórica, política e estrutural do fenômeno.
Por isso, torna-se tarefa importante e estratégica examinar o agronegócio em perspectiva crítica, para além da dicotomia entre pop e ogro. Ao resgatar suas origens, rastrear seus sentidos em disputa e revelar as estruturas que o sustentam, é possível compreender como esse modelo busca se naturalizar como “único caminho” ou “único sentido” e o que está em jogo na sua manutenção e expansão.
É fato reconhecido que palavras não são veículos neutros de comunicação. Elas carregam signos, que se transformam conforme o tempo e os contextos sociais. Por outro lado, alguns signos são relativamente estáveis: sua referência material e simbólica pouco se altera ao longo do tempo. Um exemplo deste último caso é a palavra “lápis” que dificilmente apresenta dificuldades sobre seu significado essencial.
Mas nem todos os signos compartilham essa estabilidade semântica. Um exemplo muito interessante e mobilizado mais recentemente é a palavra família Quando a Câmara dos Deputados votou pelo impeachment de Dilma Rousseff, em abril de 2017, família foi uma das palavras mais mobilizadas pelos parlamentares em suas justificativas para votar a favor do afastamento da então presidenta. Evidentemente, tratava-se de um signo carregado de valores morais, religiosos e ideológicos específicos — uma evocação seletiva e excludente, provinda de um modelo normativo de organização social.
A ambiguidade se intensifica quando introduzimos a locução adjetiva família de bem. Essa expressão, embora aparentemente banal, opera como um marcador simbólico de distinção moral. Em discursos públicos e cotidianos, ela frequentemente delimita um tipo idealizado de família — branca, heteronormativa, religiosa, disciplinada — que se coloca em oposição às formas “desviantes” ou “ameaçadoras”. Trata-se de um exemplo evidente de como os significados das palavras são disputados, moldados por conflitos históricos, sociais e culturais.
O mesmo se observa com o termo agronegócio, amplamente disseminado no vocabulário contemporâneo. Ele atravessa políticas públicas, slogans publicitários, materiais didáticos e discursos de organismos multilaterais, sempre envolto em uma aura de modernidade, progresso e eficiência. No entanto, essa aparente neutralidade esconde seu caráter profundamente ideológico. Trata-se de uma designação forjada para apagar antagonismos históricos e camuflar relações de exploração e expropriação no campo. Assim como família, o agronegócio é um campo de batalha semântico. Ambos os termos são mobilizados por diferentes atores sociais para afirmar projetos de mundo antagônicos. De um lado, narrativas que naturalizam desigualdades, ocultam violências estruturais e promovem modelos concentradores de poder. De outro, vozes que disputam esses significados, revelando seus limites, exclusões e contradições.
Compreender essas disputas é essencial para uma leitura crítica dos discursos que moldam a vida social. As palavras importam — não apenas pelo que dizem, mas sobretudo pelo que silenciam. E é nesse silêncio que, muitas vezes, reside o poder de dominação. No caso do agronegócio, o poder econômico, político, coercitivo e, sobretudo, para o tema em tela, o poder ideológico.
A busca do agronegócio por se consolidar como um termo semanticamente estável, positivo e incontestável revela o funcionamento ativo da ideologia. Tal esforço de estabilização discursiva opera, à luz do que Marx nos apresentou, por meio de estratégias como o ocultamento da produção camponesa e de suas formas de organização da produção e vida, relegadas à invisibilidade social, política e econômica. Ao mesmo tempo, promove uma inversão da realidade, atribuindo ao agronegócio — e não à agricultura familiar e camponesa — a geração de trabalho e o dinamismo da economia.
Soma-se a isso a naturalização dos efeitos do capital sobre os territórios: os conflitos fundiários, o extermínio de modos de vida e a concentração de terras passam a ser percebidos como fenômenos naturais, inevitáveis ou até desejáveis, apagando sua origem histórica e suas consequências sociais. Por fim, por meio da universalização de seus valores e práticas, o agronegócio se apresenta como o único projeto possível de desenvolvimento regional e nacional, alinhando em torno de si o Estado, a mídia, a academia e amplos setores da sociedade civil. Assim, o termo agronegócio se transforma em uma metonímia da modernidade e do progresso, ao passo que dissensos, resistências e alternativas são desqualificados como atraso, utopia ou improdutividade.
É nesse contexto que o termo ogronegócio, usado para denunciar um agronegócio violento e insustentável, pode acabar sendo um desserviço ao debate crítico. Ao se criar essa caricatura do “agronegócio do mal”, corre-se o risco de, por oposição, legitimar a ideia de um “agronegócio do bem” — ou, ao menos, de um agronegócio supostamente sustentável e aceitável. Esse neologismo pode simplificar uma realidade complexa e obscurecer as contradições estruturais que atravessam o setor como um todo.
A tentativa de estabilização semântica do termo agronegócio é sustentada por um aparato ideológico sofisticado, que opera por meio de diversas frentes: campanhas midiáticas massivas, legitimação acadêmica e científica realizada por meio de intelectuais orgânicos e, entre tantos outros exemplos, intervenções sistemáticas em planos de ensino e currículos escolares.
Essas estratégias não apenas reiteram o agronegócio como motor do progresso e da modernização, mas o colocam como um consenso social desejável, como se fosse um lápis — um signo estável e pacificado, universalmente aceito, livre de contradições. Ao contrário disso, o que temos é o agronegócio enquanto família de bem, isto é, uma expressão que deve ser desnudada dado que é carregada de disputas. Ao buscar ser lápis, intenta, na verdade, ocultar e inverter a realidade, naturalizando e universalizando um projeto marcado por exclusão, degradação e toda uma gama de violências históricas.
É nesse contexto que a popularização do termo ogronegócio, como um possível contraponto crítico pode, paradoxalmente, reforçar a própria estabilização ideológica aqui denunciada. Ao criar um “lado malvado” do agronegócio, abre-se espaço para que outro lado — higienizado, verde, pop, high tech — seja legitimado como desejável, sustentável e inquestionável. Em outras palavras, o discurso que denuncia o ogro pode contribuir para a consagração do lápis, ajudando o agronegócio a apagar suas próprias contradições. Reconhecer esse jogo é fundamental. Em vez de reforçar a caricatura do ogro, é preciso desnudar as engrenagens ideológicas que o apresentam como natural, inevitável e único. O agronegócio não é lápis. É disputa, é projeto de classe, é campo em permanente conflito e precisa ser enfrentado.
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