A Universidade entre o Eros e as planilhas
Em meio a uma crise que se arrasta, há duas visões em jogo. Expressará a escola o amor pelo conhecimento, praticado por quem rejeita ser seu senhor? Ou será espaço de competição, viciado pelos jogos de poder e o pensamento instrumental?
Publicado 25/08/2025 às 20:06 - Atualizado 25/08/2025 às 20:20

Ser professor é ser grego. Receber alguém em uma universidade ou academia é ser ateniense […]. Não foi a democracia ateniense que fascinou o pensamento ocidental, mas a arte e a ciência grega
(George Steiner).
A Universidade nasceu no Jardim de Academus a partir das ideias de Platão. Face ao trauma da condenação à morte de Sócrates, “o homem mais sábio de seu tempo”, Platão conclui que o diálogo de Sócrates com seus interlocutores na praça púbica não basta para desfazer preconceitos, fundamentalismos religiosos e ódios étnicos. Não é suficiente “conversar para pensar bem, agir bem e se consolar”. Por isso, fundou a primeira Universidade, para a dedicação aos estudos e ao pensamento livre, que começaram pela recusa em reduzir a reflexão à escolha dualista. O pensamento por exclusão, rígido e esquematizador, que não interroga suas próprias premissas, é o grau zero da inteligência, o que torna possível a injustiça e todas as formas de tirania (Platão, 2023). Assim, Platão inscreveu no frontispício de sua Academia “não entre quem não conhecer geometria”. Não a geometria que esquadrinha o espaço, que abole as distâncias, tudo reduzindo a um ponto de proximidade, abstraindo-o de suas caraterísticas enigmáticas e qualitativas. Não o “espírito geométrico”, mas o “espírito de geômetra”, que por amor busca o conhecimento e o inteligível porque não é seu possuidor e senhor. Pelo medium do sensível, familiar e conhecido, e nele nos comunicamos com aqueles objetos que têm em si vestígios do invisível, como os números e figuras matemáticas. Como observa Bernard Stiegler:
[trata-se] do amor por objetos que não existem e que, no entanto, dão à existência estes saberes sublimes pelos quais se abrem o fazer, o viver e esta forma particular de atenção que se denomina contemplação(theorein), de que procedem o saber-fazer, o saber-viver e os saberes teóricos, em que se projetam diversas formas de amor do conhecimento (designado, quando tomado e contemplado em seu conjunto, sophia – e então fala-se em filosofia), amor da ciência e amor da arte. (Stiegler, 2006, p. 61)
A crise da Universidade contemporânea deve-se à perda desse horizonte fundador, com a “queda do valor Espírito” em “baixa na cotação”, à “frieza burguesa” que tornou Auschwitz possível, assim como outras formas diversas de barbárie. Porque, quando sofremos, somos todos desesperados, trágicos, bíblicos, Adorno procura o que nos separou e produziu a perda da capacidade do maravilhamento e de amar (Adorno, 2008).
Com efeito, em A Ética Protestante e o Espírito do capitalismo, Weber identifica no protestantismo, na Reforma ou no luteranismo, que se encontra nas origens de uma “República das Letras”, já que, graças à invenção da Imprensa, em meados do século XV, abriu-se o acesso aos livros, em particular aos fiéis. A ele sucedeu um “novo espírito” o do “desencantamento do mundo”, da racionalização e intelectualização das atividades humanas, o que significou, simultaneamente, uma nova definição da Razão, não mais associada à vida mundana e ao culto religioso, mas ao cálculo, que, no século XIX, consagrou-se no lema de Benjamin Franklin “tempo é dinheiro”:
subitamente, em um dado momento, a vida tranquila terminou […]. Um jovem, de família de empresários, foi até o campo: selecionou cuidadosamente os tecelões que ele queria empregar; cria e agrava sua dependência, aumenta o rigor do controle de seus produtos, transformando-os, assim, de camponeses em operários. Por outro lado, ele muda os métodos de venda, entrando o mais possível em contato direto com os consumidores […]; adapta a qualidade dos produtos aos gostos e necessidades de sua clientela, […] reduzindo os preços, aumentando o número de negócios. A consequência de tal processo de racionalização não tardou a se manifestar: os que não acertavam o passo eram eliminados. O idílio desmoronava sob os primeiros golpes da concorrência. (Weber, 2020, p. XX)
A esse processo Horkheimer e Adorno denominaram “reificação” da razão. Período do capitalismo industrial, da produção em série, do estoque e do longo prazo, sua racionalidade é instrumental, quantificadora, visando, primordialmente, o capital e sua valorização. Mas havia ainda tempo livre para, depois da jornada extenuante, trabalhadores pudessem frequentar seus espaços de fé, à distância das horas alienadas às máquinas e seu funcionamento. Já o capitalismo contemporâneo é “sem espírito”, não somente pelas transformações ligadas às novas tecnologias, à financeirização e endividamento de Estados, sociedades e indivíduos, mas sobretudo por ser o do curto prazo e do descartável, colonizador de todas as esferas da existência e hostil à “vida do Espírito”. Contrária, porém, à razão instrumental, que é subjetiva, tem-se a Razão Objetiva, que não é instrumento de dominação e de poder sobre todas as coisas, e sim a da contemplação e da emancipação, no sentido de que ela torna possível diminuir o poder da contingência sobre a vida de cada um:
A Razão objetiva visa […] a idéia do bem supremo, o problema do destino humano e a maneira de realização de seus fins últimos […]. Ela é acessível àquele que assume o esforço do pensamento dialético [como Sócrates], ou àquele que, de maneira idêntica, é capaz de Eros (Horkheimer, 2005, p. 168).
Para a razão instrumental, ao contrário, “saber é poder”. Digital, midiática, tecnológica, ela abole distâncias temporais e espaciais, expropriando os indivíduos dos usos de seu tempo, de sua vida e de seu livre-arbítrio, submetendo-os a controles permanentes, provocando disfunções nas instituições públicas, na Universidade e entre seus membros, destruindo valores comuns compartilhados, experiências, formas de convivência, solidariedades geracionais, base da identidade profissional. Reestruturações permanentes, mudanças curriculares constantes, controles de “produção” destituem a Universidade de sua autonomia e de suas maneiras de organização do tempo da docência e da pesquisa, do saber-fazer e do saber-viver daqueles que a constituem:
essas avaliações destroem todos os espaços que escapariam ao olhar inquisitorial das tutelas, estabelecendo a era da suspeita generalizada que contribui para a desinstitucionalização [das instituições], à destruição dos espaços que escapam à formatação (Gaillard, 2017, p. 123)
Estabelece-se, pois, uma nova metafísica das relações humanas, uma vez rompidos os laços da convivência e da confiança, vínculos de phylia, constituídos ao longo do tempo. Além do que os indivíduos são privados de suas competências e habilidades, a Universidade formando para a desprofissionalização das profissões, ao “treinamento”, sob o imperativo da adaptação a regras desagregadoras e à terceirização, tudo resultando na “formação continuada”. Estado de minoridade, a ele ficam reduzidos os profissionais, supostos incapazes de desenvolvimentos ao longo da vida acadêmica; com a deslegitimação de seus conhecimentos, o estado de heteronomia afeta as relações entre professores, estudantes e funcionários:
O campo das [inscrições institucionais] é massiva- mente impactado pelas mutações e pelo movimento de desinstitucionalização em curso. Ele está em luta contra duas fontes principais de desvinculação: a que os usuários presentificam, por um lado, e a que decorre das incidências das mutações sociais e das ameaças que fazem pesar sobre as organizações institucionais […]. O registro contábil tomou o lugar do trabalho de simbolização, em uma verdadeira crise da instituição. Os ‘gestores’ suplantaram direções carismáticas e sua função de ordenamento das coisas em um sentido […], com o estabelecimento de procedimentos cada vez mais constrangedores que, por sua vez, conduzem a ‘processos sem sujeito’ em um universo caracterizado por uma ausência de quem responda (Gaillard, 2008, p. 10).
Desfeita a autoridade acadêmica, estabelece-se uma “Escola da suspeita” e da competição, cuja lógica é a eliminação do concorrente, a igual título das leis que regem o mercado. A Universidade cultural foi substituída por aquela “funcional”, com seu ideário de gestão de recursos, ditos humanos, em uma relação custo-benefício, o mínimo de tempo e um máximo de resultados. E, como empresa, a educação foi desalojada pelos esportes. Estes não representam mais um divertimento prazeroso, mas uma indústria, a da euforia e do entretenimento, o esporte substituindo a Escola, calendários alterados pelas datas atléticas ou outros espetáculos. Isso também significa que a Escola e a Universidade, sob o impacto da indústria da cultura, passam a reproduzir em seus espaços o que está na mídia, mimetizando-a, para “evitar a evasão” de estudantes, sob os auspícios dos ritmos de consumo e da obsolescência programada de seus saberes. A indústria cultural invadiu a Universidade, com impactos sobre o conjunto de sua experiência e saberes canônicos, estes fundamentados pela história e pela aura do tempo. A indústria cultural, através de seus estereótipos, dissolve a ideia de autoridade intelectual acadêmica, a que não significa poder, mas uma responsabilidade, a da transmissão de conhecimentos e experiências, atenção a sua complexidade, em um mundo de que desaparecem nuances entre as coisas.
Susan Sontag abre um processo contra a Universidade e o humanismo, acusando a Europa e a cultura ocidental de ser responsável por barbáries:
A verdade é que Mozart, Pascal, a álgebra de Boole, Shakespeare, o regime parlamentar, as igrejas barrocas, Newton, a emancipação das mulheres, Kant, Marx, os ballets de Balanchine não compensam o que esta civilização particular derramou sobre o mundo. É a raça branca e só ela – suas ideologias e invenções – que erradica as civilizações autônomas por todas as partes, que transtornou o equilíbrio ecológico do planeta e que agora ameaça a própria vida. (Sontag, 1967, p. 57)
Contrário a esse juízo generalizador, característico da formação de preconceitos, e contra a ideia de que a Europa e o Ocidente são o emblema da opressão, Castoriadis observa:
Que pensar, na China imperial, do destino das pessoas comuns classificadas em nove categorias, das prostitutas aos mendigos, dos bárbaros do Sul e aos escravos de nascença? Que pensar, na África como na Ásia do Sudeste, da prática da excisão que mutilou e mutila ainda hoje milhões de mulheres? Que pensar do que acontece hoje nas etnias Nuba e Dinka escravizadas no Sudão, como testemunha a jovem Mende Nazer, violentada aos doze anos e vendida depois como escrava a Cartum? E da prática da lapidação em certos países islâmicos? E da tradição jurídica saudita que corta a mão de ladrões e decapita com uma espada? (Castoriadis, 1996, p. 235)
A crise do ideário humanista e iluminista, que compreendia a cultura como uma barreira contra todas as formas de obscurantismo, de preconceito e intolerância, abala a Escola e Universidade, por ser crise da ideia de Cultura.
Com efeito, foram europeus e americanos os protagonistas que puseram em questão os princípios de sua herança cultural em obras como Dead White Europeanm Males. Na contestação dos estudos que compõem as humanidades universitárias, revela-se a condição antropológica do presente, bem como o ideal de indivíduo que hoje a Educação valoriza. Assim, em 1990, a Universidade de Princeton decidiu suprimir a unidade curricular “Cultura Ocidental”, substituída por “Cultura, ideias e valores”:
[esta nova disciplina] compreendia a substituição das obras clássicas pelas feministas recentes, pelas que tratam das culturas africanas, hispânicas, asiáticas e indígenas. O exemplo dos cultural studies que se generalizaram evidencia a mudança nos rumos da cultura ocidental […]. Ela [a disciplina Cultural Studies] não se abre mais às outras culturas, como o fazia a antropologia, perde-se em si mesma […]. A openess school, que pretendia abrir a cultura a todos os comportamentos e a todas as ideologias, tornou-se a caricatura da verdadeira abertura: ‘o que foi anunciado como grande abertura é na realidade um grande fechamento. (Mattéi, 2011. p. 177)
Em meio à deriva de sua identidade de seus princípios, a Universidade testemunha uma crise cultural cujos membros não concebem mais sua finalidade, nem a natureza do saber a ser produzido e transmitido: “quando laboratórios de pesquisa colocam primordialmente a questão de sua classificação pelo CNRS(Capes) do que é determinado a pesquisar e em prazos pré-estabelecidos, quando a política universitária se exaure em jogos de poder, a instituição é tomada pelo pensamento instrumental.” (Zawadzki, 2002, p. 5). Concebida como modernização da universidade, este ideário se projeta como uma nova teodicéia, universalizando modos de pensar que ignoram discordâncias, através de dados técnicos impostos a toda a instituição, contrariando a vida psíquica dos indivíduos que a compõem:
[a universidade] utiliza um pensamento analógico, com suas variações infinitas, [e não digital, cuja variação repete a base 0-1]. No verdadeiro sentido do termo, não conhece apenas dois valores, mas uma infinidade de graus de valor, desde o nada até o perfeito, sem que haja oposição de categorias […]. O raciocínio de Sócrates oudeis ekon amartanei, segundo o qual ninguém faz o mal voluntariamente, é notavelmente revelador do que é uma verdadeira consciência moral do indivíduo e de uma sociedade de indivíduos (Simondon, 1989, p. 259).
O mal-estar de nossa civilização resulta, e muito, da desproporção entre nossa estrutura psicológica assim como a nova realidade técnica a que ninguém mais poderia se furtar e para a qual não estávamos preparados. A vida do espírito suporta mal a rapidez das mudanças que essa civilização exige (Gori, 2022, p. 73). Como escreveu Camus: “o espírito está sempre atrasado com respeito ao mundo. A história se acelera enquanto o espírito medita” (Camus, 2013. p. 83). Por isso, a sociedade que está sendo moldada na digitalização é regressiva, constituindo tecnologias de tomadas de decisão, de controles múltiplos de pensamentos e comportamentos, inviabilizando a individuação, que é o esforço de pensar por si mesmo, pela frequentação dos saberes herdados do passado, capazes, no tempo longo, de se estabelecerem como experiências de vida e de pensamento.
Ser herdeiro significa ser “órfão”, diversamente da recepção passiva do passado como um fardo. De fato, o heres latino tem a mesma raiz do grego cheros que significa “deserto”, “despojamento”, “falta”. Por isso, ser herdeiro só acontece a quem se descobre orphanos. Para se tornar herdeiro, é preciso atravessar o luto da perda e da ausência (Massimo, 2015). Eis a potência da educação humanista, da Bildung, da educação formadora à distância daquela performática:
O que significa exatamente formação? Antes de mais nada, como a própria palavra indica, uma relação com o tempo: é introduzir alguém ao passado de sua cultura (no sentido antropológico do termo, isto é, como ordem simbólica ou de relação com o ausente), é despertar alguém para as questões que esse passado engendra para o presente, e é estimular a passagem do instituído ao instituinte. […] A obra de pensamento só é fecunda quando pensa e diz o que sem ela não poderia ser pensado nem dito […], criando em seu próprio interior a posteridade que irá superá-la. Ao instituir o novo sobre o que estava sedimentado na cultura, a obra de arte e de pensamento reabre o tempo e forma o futuro […], quando o presente é apreendido como aquilo que exige de nós o trabalho da interrogação, da reflexão e da crítica, de tal maneira que nos tornamos capazes de elevar ao plano do conceito o que foi experimentado como questão, pergunta, problema, dificuldade (Chaui, 2003, online).
Razão pela qual a educação e a cultura são iniciação criadora de uma individuação, agora sob os impactos da imediatez do mercado:
o mercado torna-se o único critério de transformação de programas comportamentais, de que sistematicamente toma o controle pelo viés das técnicas de marketing […]. A tomada de controle das indústrias de programas entra inevitavelmente em luta com a instituição de programas, antes decisão e herança da Escola […]; desde a própria origem do Ocidente […]. Na Grécia antiga, pátria da política, da tragédia, da democracia, [estas] se realizam por intermédio do mestre das letras (o institutor). (Stiegler, 2006, p. 166)
E o idioma preserva essa memória, como, no francês, em que professor se diz “instituteur” porque ele “institui” a criança e “sublima” o povo.
A civilização moderna só se interessa pela ideia de futuro. Trata-se, porém, de um futuro sem qualquer fundamentação, uma vez que esta só se constrói com as experiências do passado. Este desenraizamento moderno anula as “raízes espirituais” da Educação e da Universidade, afetando sua dimensão crítica e o benefício da dúvida acerca da doxa dominante e das incertezas da vida. Como escreve Bernard Stiegler: Nunca se decide a maneira como se vive: reproduz-se modos de vida – que herdamos pelos que nos são próximos, que se adotou pela educação ou sob a influência de culturas vindas de longe e por todo tipo de vetores: circulação de mercadorias ou pessoas, evangelização, nova técnicas ou ideologias, indústrias culturais. O processo de individuação é um processo de adoção. As grandes civilizações se constituíram inventando modos de vida novos, que elas fizeram outras sociedades adotarem, adotando, por sua vez, modos de vida estrangeiros […]. O Império da China, em que hoje se desenvolve uma nova forma do capitalismo […], foi desde sua origem o fruto de um tal processo de adoção, que se formou há mil anos entre inúmeras etnias que a precederam no território que é hoje a China contemporânea […]. Alexandre, o Grande, herdeiro da escrita ideogramática dos impérios ditos hidráulicos (Egito e Mesopotâmia) a transforma em escrita alfabética via os Fenícios. Quando Alexandre conquistou aqueles de quem ele era herdeiro, adotou a religião egípcia e fez com que os egípcios adotassem a sua. É assim que se pode ver, na necrópole de Alexandria, um túmulo ornamentado de baixos-relevos representando Perséfone e Hades, na parte superior e, na parte inferior, Isis e Osíris” (Stiegler, 2006. p. 43-44)
Nesse horizonte, a educação humanista, a da Weltkiltur, lembra o caráter matricial das grandes obras, base da “civilização dos costumes”. Nesse sentido, a referência é Jakob Burckhardt que, em suas Considerações sobre a História Universal, bem como em A Cultura do Renascimento, trata de “grandes” obras e “grandes autores”, a cultura devendo integrar a educação e formar o indivíduo e fortalecer a política. Aqui não se confundem “grandeza” e “poder”:
grandeza é a soma global da personalidade de um indivíduo que nos parece grande, que continua a exercer influência mágica sobre todos nós através dos séculos e dos povos, muito além das fronteiras da simples tradição. Ao afirmarmos que a grandeza é algo único e insubstituível não resulta disso um esclarecimento. Um grande indivíduo é aquele sem o qual o mundo nos pareceria incompleto, porque determinadas grandes ações só poderiam ser possíveis por ele, no interior de seu tempo e de seu ambiente, sendo inconcebíveis sem ele. Há um provérbio que diz ‘nenhum homem é indispensável’, mas, justamente, os poucos que o são, são grandes (Burkhardt, 2000, p. 46).
Único e insubstituível significa um indivíduo cuja força moral e intelectual diz respeito à humanidade como um todo, a povos e culturas, e, assim, ao universal heterogêneo. Como escreve Ernani Chaves: “Aqui nos deparamos com a idéia de ‘Umgestalten’, de ‘remodelação’, de ‘modificação’, de uma ação que ‘transforma’, que é capaz de instituir, em meio à ‘heterogeneidade’ do universal, uma ‘unidade’ que organiza essa ‘heterogeneidade’ (Chaves, 2000, p. 46). Desse modo, privilegiam-se artistas, poetas, pesadores e pensadoras – que se pense em Hipácia, Christina da Suécia, Santa Teresa d´Ávila, Maria Zambrano, Simone Weil e Hannah Aredt, entre outras, a tradição nos advindo do passado. Como “remodelação” ela é, pois, criação. Criação no sentido em que todos os grandes trabalhos são obras de humanização a favor de Eros e do autoconhecimento. Ésquilo e Platão, Rafael e Copérnico, Galileu e Kepler são “grandes”, mas não os grandes navegadores, à exceção de Colombo, porque a América poderia ser descoberta pelos europeus, mesmo se Colombo tivesse morrido recém-nascido. Mas a Transfiguração de Rafael não teria sido pintada, se ele não a tivesse feito (Chaves, 2000).
O humanismo não significa, no entanto, esquivar-se de que Auschwitz foi possível ao som de Wagner e Bach. É neste âmbito que se inscreve a declaração de Adorno, que se converteu em aforismo, na sentença:
Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro. […]. Essa situação de disseminação da barbárie, a ponto de enredar o gesto estético, corrói ou devora [anfressen] inclusive a possibilidade de que se tenha consciência dos motivos que impossibilitam a escrita de poemas (Adorno, 1998, p. 26)
Essa “máxima” significa dizer que “faz parte da filosofia não tomar nada literalmente, pois a filosofia não consiste em statements of fact”, como se se devesse acreditar inapelavelmente no que está afirmando. É preciso estar atento “menos ao que o aforismo afirma e mais ao que ela revela”. Se não fosse isso, a conclusão seria a de uma acusação, sem apelo, da poesia e do poeta. Essa acusação dirigida à poesia e aos poetas, visa, antes, os torturadores de Auschwitz e não os poetas. Para compreender esta questão, Adorno, em sua Dialética Negativa, se refere ao terremoto de Lisboa de 1755 e a Auschwitz em 1945, que revelou ao mundo o horror dos campos de extermínio. Cada um desses dois acontecimentos abalou sua época, mas com consequências opostas para a poesia e para a literatura, o terremoto de Lisboa tendo provocado na Europa uma copiosa publicação de poemas, em particular o de Voltaire e o de Rousseau e suas visões totalmente opostas.
Tudo se transformou em dois séculos; e após a Segunda Guerra, a poesia já se encontrava privada daquela potência de consolação que exercera por gerações. E isto porque o que está em questão é a ideia de cultura que destituiu a poesia, a literatura e as humanidades, substituídas pela pseudo-aura da indústria cultural, agora sob os auspícios do “crítico de jornal” e da civilização técnica. Com o que se revela a reviravolta, a um só tempo, da história da literatura e das Humanidades. Porque a literatura há muito perdera seu prestígio social, Adorno reflete, em primeiro plano. Sobre a política cultural nazista – que se fundava principalmente na música, no cinema e nas artes do espetáculo em geral (que se lembre os nazistas não prezavam a literatura e queimavam livros). A barbárie não estava na poesia, mas em sua ausência. Porque houve poesia após Auschwitz, em Auschwitz, sobre Auschwitz, ela é testemunha de uma civilização perdida. Razão pela qual – e diversamente do que afirmava Walter Benjamin quando escreve que
não há nenhum documento de cultura que não seja também um documento de barbárie”, George Steiner anota: “nós somos criaturas ao mesmo tempo frustradas e consoladas pelo chamado de uma liberdade que está fora de nosso alcance. A experiência da liberdade só se manifesta em um único domínio. Em uma única esfera da condição humana, ser é ser livre. E isto se dá em nosso encontro com a arte e a literatura […]. Nossa época tem medo do mistério. Ela recusa todo acesso à obra prima, por medo de ver sua vida modificada por ela. É a tirania do cotidiano que prevalece sobre o amor do eterno (Stenner, 2003. p. 14-15-17)
Camus vem a complementar: “vivemos em uma época na qual Racine se envergonharia de Bérénice e Rembrandt se penitenciaria de ter pintado A Ronda Noturna” (Camus, 1949, p. 2-4).
A Universidade humanista é espaço deformação e ampliação dos horizontes do mundo, de que a leitura e estudo de autores do passado, em grego ou latim, é uma primeira experiência de alteridade, distante e próximo daquele mundo que nos é familiar. Como observa Massimo Recalcati:
faz parte da Bildung o abandonar a família, a língua que falamos em casa, aquela que a criança aprende com a mãe, a língua cheia de afetividade, sem universalidade, com respeito à qual se dá um salto quando se entra na Escola, salto que é um trauma necessário à humanização, à desmaternalização da língua no encontro com a língua do alfabeto […]. A dificuldade de aprendizado nessa fase da vida é por vezes resistência contra este afastamento da ‘íngua materna’ da família até que se dê o corte simbólico, a necessidade de se separar de um saber próximo demais para aceder ao saber mais longo da língua alfabética. É essa perda que permite o acesso ao conhecimento. (Recalcati, 2014, p. 43)
Diferentemente do confinamento isolacionista em uma “origem”, a Escola e a Universidade constituem o alargamento da vida e do conhecimento. O que é um encontro de Amor, no sentido que lhe confere Platão. Ele é desejo de conhecimento. Refletindo sobre O Banquete de Platão, Marcílio Ficino anota: “o Amor precede o mundo, desperta o que está adormecido, ilumina o que é obscuro, ressuscita o que está morto, dá forma ao que é informe e perfeição ao imperfeito” (Ficino, 2021, p. 141). Na Escola e na Universidade esse encontro com Eros se faz principalmente com o Mestre e através dos livros. O mestre é aquele que transmite um ensinamento, que “deixa em nós um sinal inesquecível, como um Amor. Nas mãos do Mestre um livro nos mostra que existem outros mundos, abrindo e dando forma a nossa vida. Ao fazer o comentário de uma obra, comentário que clarifica o que se lê, o mestre desfaz sua obscuridade e suas dificuldades. O professor tem assim a custódia, não de um saber definitivo, mas do texto que parece escrito em uma língua estrangeira e que, pelo milagre da transmissão através de seu comentário, torna-se compreensível, [considerando] também o momento crucial de sua interrupção, em um ponto de intensidade quando o Mestre diz:
este aspecto, não é possível explicá-lo, não sabemos o que Platão quis dizer, ou Santo Agostinho quando perguntava: ‘mas o que fazia Deus antes da criação do mundo?’ A única resposta possível é ‘não sei’ […]. Um Mestre é aquele de quem não esquecemos o nome, que deixou uma marca que não é intelectual, pois podemos ter esquecido o conteúdo das aulas; o que não se esquece é o fascínio, a presença, o estilo, a voz […]. O professor sabe onde há uma vírgula, um ponto-e-vírgula, reticências, dando alma ao desejo de saber, transferindo-o aos alunos. Übertragung quer dizer: um transpor e um transportar no sentido erótico de um enamoramento, e esse encontro amplia a experiência do mundo. (Recalcati, 2014, p. 30).
A leitura é uma forma de relação que implica o tempo, o cuidado, a atenção, o amor pelo detalhe, pela pontuação, pela nota de rodapé. Como o corpo, o livro é iniciação ao discurso amoroso. Trata-se do erotismo da leitura e não consumo imediato, alucinatório do objeto, mas um longo caminho: “Transformar um livro em um corpo é a definição do amor” (Recalcati, 2014, p 32).
Eis a importância dos textos clássicos, os que se tornam clássicos, aqueles que são inexauríveis, aos quais voltamos sempre porque não se desvendam nunca por inteiro seus arcanos e, assim, são sempre novos e atuais, como Antígona de Sófocles. Esta é a personagem condenada à morte e a ser enterrada viva, por dar uma sepultura ao corpo do irmão, violando a interdição da Lei. Enfrenta o poder da Razão de Estado que proibia o ritual fúnebre de Eteocles e Antígona é a expressão do amor bem como do universal heterogêneo de todos os tempos e espaços:
Há Antígonas japonesas, chinesas […] africanas. […]. Não existe uma língua […], nem um país que não criem a figura de Antígona. Pol Pot enterra vivos [seus opositores] […]. [Antígonas] são os corpos dos estudantes massacrados em Tien An Men, que não foram devolvidos às famílias.1 Alguns dentre aqueles pais arriscaram suas vidas ao invocarem numa praça os nomes de seus filhos. Eis a quintessência da universalidade. Quer o drama grego assuma formas particulares, quer exista uma intensa localização na língua grega, mesmo milhões e milhões de pessoas que não sabem uma palavra em grego e que jamais ouviram falar de Sófocles viveram com seus próprios olhos e em suas almas o drama de Antígona[…]. Eu soube que o que há de mais perigoso na China é murmurar, na praça Tien An Men, o nome de um filho cujo corpo desapareceu. Eis o drama de Antígona, em sua acepção moderna. (Steiner, ANO, p. 122-123)
Nesse sentido, o universal tem origem e vocação humanista, em que se inscrevem os valores da Educação e da Universidade. Devem resistir às imposições da aceleração do tempo, da técnica, do mercado e da indústria da cultura. Resistir é reexistir, a fim de continuar existindo em sua identidade, sempre híbrida e inconclusa.
Porque a Escola e a Universidade são o locus da humanização e porque a contemporaneidade anti-intelectual, a da “semi-formação”, decreta que a “verdadeira cultura é inacessível às grandes massas” por ser ela “eletista”, a reposta da Universidade nos vem de Adorno, quando nos significa que os deserdados da cultura são os verdadeiros herdeiros da cultura (Adorno, 2008).
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