Jaguar e o certo por linhas para lá de tortas

Cartunista que se foi neste domingo, aos 93, ridicularizou militares e expôs desigualdades e a poesia do cotidiano. Um dos fundadores do Pasquim e dono de fígado de aço, acreditava que a vida intelectual se funde com o inconformismo

Foto: Foto: Associação Brasileira de Imprensa
.

Perdemos Jaguar. Perdemos Sérgio Magalhães Gomes Jaguaribe, um daqueles gênios que aparecem muito de vez em quando na vida cultural. Jaguar foi o cartunista – juntamente com Ziraldo – que mais profundamente captou a alma brasileira nas artes gráficas. Elevou a bobagem à categoria de grande arte, levou ao ridículo generais e altos burgueses no golpe de 1964, destroçou mentiras da grande mídia e retratou os prejudicados pela nossa desigualdade como nenhum outro.

Nada escapava do artista que desenhava certo por linhas para lá de tortas. Um dia alguém escreverá uma tese sobre “o universo jaguariano”, que incluirá o mundo de pobreza e violência dos subúrbios, os comezinhos detalhes do cotidiano, como impagáveis aposentados de chinelos de dedos e meias, peladas com bola de capotão, padres de rala piedade, bobes em profusão nos cabelos de madames e minudências afins. Nada escapava a um traço desconjuntado e detalhista de um artista de olho apuradíssimo que nunca estudou desenho.

Suas ilustrações para todos os livros de Stanislaw Ponte Preta mostraram ao mundo as verdadeiras caras de Rosamundo, Primo Altamirando e Tia Zulmira. Foi tão agudo que cada vez mais acho que Stanislaw só escrevia depois de Jaguar criar graficamente a ambientação de cada crônica. Raras vezes a simbiose entre escrita e traço foi tão sublime.

E havia o Jaguar da porradaria pura. A melhor definição de Arnaldo Jabor, dono de fúria incurável contra a esquerda é sua: “Ele é um rebelde a favor”. Alugou um fardão da Academia Brasileira de Letras e muniu-se de uma caixa de ovos para recepcionar o entreguista-mor Roberto Campos (Bob Fields) em 1999, em sua posse como imortal. Desencontraram-se na porta da entidade, para infelicidade de nosso herói.

Jaguar foi um dos criadores do Pasquim (1969), integrando uma trupe composta por gigantes como Ziraldo, Millôr, Tarso de Castro, Claudius, Ivan Lessa e Henfil. Deu à luz a Sig (Sigmund Freud), ratinho verde com patas de elefante, elevado a mascote infernal do semanário que capitaneou por 22 anos, até o naufrágio, em 1991.

Realizei uma longa entrevista com Jaguar para a revista Atenção!, em 1997. Na verdade, tentei. Fui à sua casa, em Copacabana, no meio da manhã e acompanhei (mal) um footing etílico pelo bairro até o cair da noite. Saí trançando pernas e com dificuldades para reunir cacos de gravações feitos ao longo do dia. Parei na quinta ou sexta dose de não me lembro mais o quê, enquanto o mais ilustre dos Jaguaribe reinava impávido, com seu motor a álcool.

Jaguar nunca se filiou a partido algum, era um carioca (nascido em Santos) de rara cordialidade, que virava um vulcão diante de bobagens e injustiças. Foi brizolista a vida toda. Seguia a linha de que vida intelectual se funde com inconformismo sempre. Uma vez, Millôr o definiu como a rara combinação de “gênio e idiota”. Quase saiu briga: “Chamar de idiota, tudo bem, mas de gênio, jamais! Detesto ironia”.

Foi-se aos 93. Ou aos 23, como gostava de proclamar. Nascido em 29 de fevereiro do bissexto 1932, garantia só comemorar aniversário a cada 4 anos. Estava mais do que certo.

Adeus meu camarada. Sua falta abre um déficit incomensurável na vida brasileira.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *