Elogio ao desfrute da vida, num mundo brutal
Seria a alegria alienante, face ao sofrimento coletivo? Em meio à visita a um museu, um crítico do capitalismo conclui que não. A luta não necessita da culpa. E nos momentos raros de plenitude estão sinais de que as misérias de hoje passarão
Publicado 22/08/2025 às 19:22 - Atualizado 22/08/2025 às 19:31

Por Douglas Rushkoff, em seu substack | Tradução: Rôney Rodrigues
Tenho me sentido muito bem ultimamente.
Tive algumas semanas boas. Conheci pessoas interessantes, tive algumas conversas profundas. Dancei. Fui ao Museu Metropolitan com uma amiga. E em cada uma dessas ocasiões, senti que vivenciava um profundo sentimento de gratidão por ter a oportunidade de fazer essas coisas. Me diverti tanto. E sinto que há mais por vir.
No entanto, preciso me perguntar: é certo sentir-me assim quando parece que tudo está desmoronando? Quando há tanta dor e sofrimento acontecendo? Famílias sendo separadas pela ICE (Imigração) na Califórnia? Outras sendo famintas no Oriente Médio, bombardeadas na Ucrânia — sem mencionar as zonas de guerra que geralmente não viram notícia, como as de Camarões, Congo, República Centro-Africana — só para citar algumas que começam com C.
Aqui nos EUA, saibam ou não, milhões correm o risco de afundar ainda mais na pobreza, e 18 milhões de lares sofrem atualmente com insegurança alimentar. Mudança climática, erosão do solo, deslocamento contínuo de povos indígenas, avanço da agricultura industrial e da mineração sobre as florestas tropicais ou zonas úmidas remanescentes. Microplásticos e produtos químicos permanentes… Mas, mais importante, o horror real e em tempo vivo experimentado por outros seres humanos neste exato momento, enquanto eu me sento aqui no meu lugar feliz, engajado com vocês — uma comunidade que prezo — discutindo os desafios e oportunidades que mais nos importam.
No meio de tanto trauma indizível (na verdade, um trauma bastante dizível), é certo experimentar momentos de alegria e conexão, ou mesmo mera gratidão por estar vivo e respirar?
Acho que sim.
Acho que, se temos sorte suficiente, até mesmo privilégio suficiente — e sei que é uma palavra carregada — para termos encontrado um ponto quente em um oceano frio de desespero, temos que pelo menos nos permitir experimentar a abertura e a gratidão que vêm com isso. Por estar, enquanto durar, simplesmente bem.
Desde que — e aqui está a ressalva ética, eu acho — desde que seja a alegria da conexão com o todo, e não o alívio de ter se desconectado temporariamente da maneira como as coisas são, ou de ter estrategizado alguma “vitória”. Claro, conquistas são ótimas e tudo mais, e se você estudou e foi bem numa prova, ou teve sucesso nos negócios, ou trabalhou duro e agora pode saborear o fruto desse esforço, claro. Vá em frente.
Mas estou falando mais sobre o tipo de dádiva que simplesmente aparece. O modo como a neve simplesmente cai e silencia a cidade. Um momento de beleza que simplesmente se desdobra para você. O modo como a retidão essencial da natureza ou o padrão dos momentos se alinham. Um abraço do seu amor. Um momento de reconhecimento com um amigo. Um pôr do sol com seu cachorro… menos algo que você conquistou e mais um presente dos deuses. Totalmente imerecido. Não merecido. Dádiva.
Esses tipos de momento — o que os cristãos outrora entendiam como “graça”, esses momentos que geram uma sensação de admiração que abre o coração — não devem ser negados em seu reconhecimento e apreciação. A culpa e a vergonha que acompanham tais momentos de graça são naturais. Justificadas, até. Eu era a criança que, no seu aniversário, sentia que a única coisa apropriada para se desejar ao assoprar as velas era o fim da fome no mundo. Como ouso desejar outra coisa? E ainda sou assim hoje sempre que algo ótimo acontece. Mesmo agora, escrevendo para vocês deste apartamento seguro e com ar-condicionado, com uma cadeira de escritório decente e vocês de fato lendo. Quão grande é isso?
E embora isso traga à mente os muitos que não estão nesta posição — aqueles que ainda não têm um público para sua expressão, ou não têm acesso à tecnologia, ou à educação, ou à comida, ou à sua terra, ou a um dia sem violência — isso não é razão para não vivenciarmos o momento em que estamos agora. Porque eles também estão neste momento. Como ousamos nos recusar a reconhecer e apreciar a dádiva que temos, quando a temos, face ao que aqueles sem ela estão experienciando?
Não é como se fôssemos alheios. Poucos de nós correm o risco de aspirar a um… vamos chamar de “estilo de vida Mar Lago”, onde a alegria de alguém é baseada em manter os muros de separação entre si mesmo e aqueles que explora. Fumando charutos com a elite e celebrando a própria separação que conseguiu criar entre sua própria experiência e a de todos os outros. Vitória ou domínio sobre um “outro”, cuja derrota ou posição inferior é a única medida de sucesso.
Não, a alegria de que falo é exatamente o oposto. Não a alegria do triunfo ou da dominação, mas a alegria de se sentir conectado a todos e a tudo mais. Não a alegria de ganhar o jogo de futebol, mas de operar em harmonia sem palavras com os outros membros da sua equipe. Aquele estado de êxtase/fluxo coletivo ou pelo menos conectado. Não é às custas dos outros. Ele requer os outros.
Mas se você, como eu, sente pontadas de culpa ou vergonha sempre que se sente muito bem, mesmo durante tempos de trauma coletivo como este, a primeira coisa a lembrar é que — no mínimo — você está se reabastecendo e se restaurando para o bom trabalho. Até mesmo um ativista incurável ou agente de mudança precisa reabastecer seu tanque prânico.
Há uma ótima citação sobre isso do colunista e podcaster Savage Love, Dan Savage, que circulou no início deste ano. “Durante os dias mais sombrios da crise da AIDS, enterrávamos nossos amigos de manhã, protestávamos à tarde e dançávamos a noite toda. A dança nos manteve na luta — porque era pela dança que estávamos lutando.”
Então sim, não importa o quão ruins estejam as coisas, quantos de nossos companheiros estejam caindo a cada dia, ainda podemos nos aconchegar à noite e nos deleitar com essa conexão. Mesmo quando um membro de uma família está doente ou com dor, eles querem que seus cuidadores saiam, se divirtam e metabolizem toda a frustração e a dor. Isso nos torna mais capazes de servir e estar presentes. Isso nos lembra o que é a “luz”, para que possamos levá-la a lugares onde ela está fraca ou se foi.
Alegria, admiração, sexo, dança, arte são nossas formas de metabolizar, processar, compostar a angústia — em vez de nos afundarmos nela. Como a banda de jazz em um funeral de Nova Orleans, virando a esquina e mudando subitamente de um canto fúnebre para uma catarse dançante e celebratória. É como se estivessem processando e transformando a energia, ditando o ritmo e conduzindo os enlutados e o falecido para o próximo lugar. “Nós dançamos no funeral dele” não significa que o odiávamos, mas que o amávamos. Ainda amamos.
Além disso, somos membros do organismo humano maior, ou do maior organismo do planeta, da vida, ou do próprio cosmos, portanto essas experiências de êxtase, compaixão ou admiração não são apenas nossas. Não estamos apenas nos restaurando para a próxima luta. Estas são oportunidades para metabolizarmos o trauma maior, a dor, a confusão, a mágoa. Ou pense assim: com tanta merda horrível acontecendo ao nosso redor, como ousamos negar a beleza profunda da experiência engajada quando ela nos é oferecida?
Se uma árvore está morrendo, ou sob ataque de um parasita, com muitas de suas folhas e galhos em decomposição, o que dizer das folhas nas extremidades distantes da copa? Aquelas que estão banhadas de luz solar, e ainda saudáveis o suficiente para absorvê-la, fotossintetizar e converter essa energia em nutrição para o resto da árvore? Essas folhas deveriam se encolher diante do processo glorioso e realizar a respiração em um estado comprometido de desespero, ou abraçar a boa sorte de sua circunstância e aceitar plenamente a nutrição em nome de toda a árvore?
Afinal, o resto da árvore quer clorofila ou glicose ou seja lá o que for, contaminada pelo equivalente arbóreo de hormônios do estresse, ansiedade e mais tristeza? Ou essas partes que sofrem querem os sinais mais saudáveis, transmitidos com alegria e encorajadores de vida, crescimento e sustentabilidade daquelas partes que são saudáveis? Mesmo que essas partes continuem seguindo sem elas? Quando você morrer um dia, será mais importante que seus filhos estejam verdadeiramente felizes e prosperando do que que tenham chorado o suficiente por você. Isso é o que ajudará você a partir.
Mas divago.
Pensei sobre tudo isso quando estava no museu com uma amiga outro dia. Estávamos na nova ala do Museu Metropolitan com arte da África, das Américas antigas e do Pacífico. E toda a experiência foi transcendente. Talvez seja a palavra errada. Foi somática, encarnadora, aterradora. Sim, também com a culpa, vergonha e tristeza inerentes sobre quantos desses artefatos foram removidos das pessoas e dos lugares aos quais pertenciam — talvez sob coerção.
E todos esses fatores — a beleza e as circunstâncias que levaram àquele momento — me moveram para uma experiência realmente profunda de apreciação. Por um lado, apenas estar naqueles espaços tremendos, tetos altos, luz natural, e cercado por outros humanos curiosos, até mesmo guardas do museu que não queriam nada além de nos ajudar a encontrar o que procurávamos e alcançar estados de admiração. Com todos os seus problemas — e vou chegar a alguns deles — esta era a civilização ocidental em seu melhor. Uma instituição pública de pague-quanto-quiser que funcionava tão bem que transbordava.
Mas foi o trabalho em si — ou talvez eu deva chamá-lo de brincadeira em si — que realmente me tocou. A maneira como esses diversos povos expressavam sua realidade, sua representação da forma humana e seu lugar na natureza. Nada era colocado em um pedestal ou separado. Tudo estava dentro e era parte do tecido natural. Não que essas pessoas não tenham vivido vidas mais difíceis do que a maioria de nós pode imaginar, mas elas também expressavam a alegria inata da encarnação, uma consciência da natureza cíclica desta realidade. Havia progresso e movimento, mas não do tipo que entendemos em uma cultura inteiramente linear. Não um progresso em direção a algum futuro novo e melhorado, longe deste momento. Era o progresso da iteração, de obter um conhecimento mais profundo do que é, e aprender a se relacionar e trocar energia com tudo o mais – em vez de tentar domá-lo ou dominá-lo.
Artefato após artefato, cada um emanando a alegria inata e pressuposta de fazer parte desta dança às vezes dolorosa, às vezes extática.
Ocasionalmente, eu espreitava além de um arco para uma galeria vizinha de estátuas gregas ou romanas. E nada contra os antigos gregos ou nosso próprio caminho civilizacional, mas me senti bastante repelido pela obra. Eles tinham mais precisão anatômica objetificada, com certeza. Mas era quase como uma competição para ver quem poderia melhor identificar e representar perfeitamente uma forma humana idealizada, mantendo simultaneamente uma verossimilhança perfeita. Um pouco como um efeito especial caro de filme da Marvel ou um deep fake de avatar de IA. Hiper-real de modo impossível. E as próprias formas foram colocadas em pedestais. Para serem admiradas lá em cima por sua capacidade de elevar-se da matéria terrena para modelos puros de beleza idealizada, representados em detalhes perfeitamente objetificados.
No entanto, elas eram bastante mortas. Apesar de toda sua precisão e verossimilhança — como uma Gray’s Anatomy dos deuses — elas perderam a essência. Em seu esforço para aperfeiçoar a forma humana distinta da natureza, eles acabaram sacrificando a essência viva de seus sujeitos por esses ideais objetificados. Tão diferentes da carne e da alma quanto as palavras escritas são da fala humana ou, melhor ainda, quanto um resumo de email é de grunhidos e gemidos.
Estou voltando para a celebração fecunda e regenerativa do amor, da vida, da morte e do renascimento. É disso que preciso agora, enquanto observo minha civilização finalmente colher os retornos cármicos de séculos de guerra, escravidão e dominação, e lentamente acordar para a verdade de que estivemos em uma missão equivocada de escapar da própria fonte de toda alegria e florescimento.
E uma galeria adiante daquela, era tudo aquela coisa europeia de Jesus. Deixando o próprio Jesus de lado, a arte e as representações curadas para aquela galeria em particular eram sobre escuridão, dor e sofrimento. Tristeza perpétua. Por que me abandonaste? E naquele momento, eu senti: a vida já é difícil o suficiente. Estou voltando para a celebração fecunda e regenerativa do amor, da vida, da morte e do renascimento. É disso que preciso agora, enquanto observo minha civilização finalmente colher os retornos cármicos de séculos de guerra, escravidão e dominação, e lentamente acordar para a verdade de que estivemos em uma missão equivocada de escapar da própria fonte de toda alegria e florescimento.
Encontrar uma bolsa de êxtase ao longo do caminho, mesmo nas circunstâncias mais terríveis, não é apenas um privilégio, mas uma obrigação. É o caminho para nos reconectarmos e reconectar todos ao mundo que tentamos e falhamos em controlar. Seu profundo senso de retidão, enraizamento e fluxo não é um indulgence, mas uma bússola.
Joseph Campbell foi rotulado como um New Ager inútil por resumir essa sabedoria comum como “siga seu êxtase”. Aleister Crowley tentou expressá-la como “faze o que tu queres”. Ram Dass nos disse para “estar aqui agora”, o que incluiria, é claro, os momentos de alegria.
E eu entendo. Soa e parece egoísta. Siga seu êxtase? E se nosso êxtase for algum tipo de momento canibalístico tipo Yellow Jackets, banquetear-se com a carne e a dor de outro. E, em alguns casos, verdade seja dita, às vezes é. Tem que comer. Tem que cortar uma árvore. Tem que tomar para viver. Bem, pelo menos podemos fazer que nem Hiawatha e agradecer à árvore por oferecer sua madeira para nossa canoa, e ao pássaro por contribuir com seu corpo para nosso metabolismo. Se apenas fizermos isso conscientemente, não estamos tanto tomando, mas participando dessa coisa toda que está acontecendo dentro e ao nosso redor.
Quanto mais apreciamos, menos queremos tomar – menos precisamos tomar. Porque a forma como aprendemos a assimilar em nossa sociedade? Tem menos a ver com participar dos grandes ciclos das coisas do que com extrair o suficiente para nos isolarmos desses ciclos. Congelamos, armazenamos, economizamos e investimos como valores admirados, tributos à nossa capacidade de nos tornarmos independentemente ricos. Quanto mais coisas ou valor conseguimos extrair e isolar do grande turbilhão das coisas, mais seguros nos sentimos. Preferimos colocar algo natural em um pedestal como uma deusa que podemos possuir ou pelo menos adorar, em vez de um ser vivo com seu próprio espírito com o qual podemos nos misturar.
Assim, passamos a equiparar momentos de alegria com isolamento e egoísmo ou, pior, com a dívida cármica por qualquer coisa terrível que devemos ter feito – pelo menos indiretamente – para aproveitar aquele néctar doce.
Mas eu lhe prometo: se você está realmente saboreando esse néctar doce, apreciando-o em toda a sua essência, deixando que ele o abra para a consciência de toda a cadeia do ser que o trouxe até você, com a plena noção de que você não o possui nem o controla, de que ele está apenas passando por você, usando-o para se transformar em algum outro estado? Se a sua experiência de êxtase é compatível e complementar a essa compostagem e regeneração de tudo? Então está mais do que certo.
Por todos os meios: deleite-se naquela bolsa de alegria quando a encontrar. Isso é bom para todos e para tudo.
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