Cinema: Shakespeare na Pavuna

Os enforcados aborda de modo franco e contundente o jogo do bicho (e sua promiscuidade com outros poderes). Entre a tragédia e sátira sócio-política, o clima é de volatilidade: a lealdade é a virtude mais proclamada e a menos segura no terreno movediço das relações humanas

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Entra na segunda semana em cartaz um filme que merece mais atenção do que tem recebido: Os enforcados, de Fernando Coimbra. São vários filmes num só: thriller policial, tragédia shakespeariana (Macbeth + Hamlet) e sátira sócio-política, tudo isso amarrado num roteiro preciso e filmado com competência virtuosística.

A ação acompanha o casal formado por Valério (Irandhir Santos) e Regina (Leandra Leal), que moram numa mansão com vista para o mar, mas têm negócios na Zona Norte do Rio, onde ele lava o dinheiro do jogo do bicho controlado pelo tio (Stepan Nercessian) e dirige a escola de samba (fictícia) Unidos da Pavuna.

Lealdade e traição

Valério, na verdade, é sócio do tio, que, segundo ele desconfia, teria matado seu pai para ficar com o negócio. Segue-se daí uma intrincada trama marcada pela tensão confiança/traição, com esses dois termos mudando de sinal a todo momento.

A certa altura, todos parecem uns aos outros (e ao espectador) como traidores em potencial: os comparsas da banca do bicho, o motorista e segurança negro do casal (Thiago Thomé), a mãe de Regina (Irene Ravache) e o próprio casal. Lealdade é a virtude mais proclamada e a menos segura nesse terreno movediço. Para complicar, a mansão do casal passa por uma reforma que parece interminável.

No desdobramento dessa trama acontece de tudo, de corpo emparedado a canibalismo, de mutilação a roubo de cadáver, mas tudo de acordo com uma lógica implacável – mediante a devida suspensão da descrença demandada por esse gênero de narrativa, a um passo da fábula e do grand-guignol.

De cabeça para baixo

O texto impresso na tela na abertura, dando conta da tradição da sakaia (ou saceia), festa babilônica em que um criminoso era alçado a rei por cinco dias e depois açoitado e enforcado, remete não apenas ao “nosso” carnaval, mas ao destino dos personagens e ao próprio eixo dramático do filme, marcado pelo signo da inversão.

Não é casual que, ao jogar as cartas de tarô para ver o destino da filha, a mãe de Regina vire justamente a carta do enforcado. “Mas ele é enforcado de cabeça para baixo?”, pergunta Regina. “Desse jeito não vai morrer asfixiado, mas de inanição.”

A cartomante de butique vivida por Irene Ravache é um dos polos cômicos do filme, mostrando-se muito mais pragmática do que mística. Todo o elenco, aliás, é muito eficiente e equilibrado, com destaque, claro, para a fabulosa atuação de Leandra Leal e Irandhir Santos.

Do ponto de vista da encenação e da decupagem, alguns momentos são primorosos, como o plano-sequência do atentado a tiros sofrido por Regina, em que tudo é filmado de dentro do carro da vítima, desde antes do emparelhamento do outro veículo na avenida até a chegada do auxílio do motorista/segurança. Mesmo levando em conta a possível utilização de tecnologia digital, é um verdadeiro tour de force, coreografado e atuado com precisão, sem falar da sutileza da manipulação do som.

O pecado da competência

Paradoxalmente, essas próprias virtudes do filme foram vistas como problemas por uma parte da crítica, que torceu o nariz para uma obra “bemfeita demais”, o que faria sentido se o esmero técnico e estético eclipsasse o drama narrado ou os temas tratados.

Mas absolutamente não é isso que acontece: poucos filmes brasileiros recentes abordaram de modo tão franco e contundente a promiscuidade entre bicheiros, policiais, milicianos, políticos, empresários e escolas de samba. E com um envolvente conflito humano central que transita da psicologia à moral, sem deixar de lado a ironia e o humor, que dá a última palavra na fala final de Regina. É pouco?

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