As lições amargas da derrota na Bolívia

Divisões entre a esquerda foram principal causa – mas são apenas parte da explicação. Governos progressistas pararam na metade do caminho

Com Antonio Martins

Que as derrotas sirvam ao menos para não repetir o que as produziu. De todos os países que passaram por governos de centro-esquerda – pela chamada “Onda Rosa”, na América do Sul – a Bolívia é certamente o mais pobre. Lá, a colonização deixou marcas mais paralisantes que em qualquer outro lugar. E, ao mesmo tempo, foi talvez o país que mais aprofundou mudanças neste século, o que foi mais adiante. Viveu a emergência dos indígenas como ator social destacado; a redução de quase 25% na desigualdade de renda, quando medida pelo Índice de Gini; a nacionalização do lítio e das reservas de gás; as mudanças urbanas em La Paz e em especial na região do El Alto.

Tudo isso está em questão após as eleições presidenciais deste domingo (16/8), em que dois candidatos de direita – um deles, mais extremado – passaram ao segundo turno. A derrota vai deflagrar, por certo, uma bateria de avaliações. A esquerda se dividiu em três. Há uma tendência natural de cada ator culpar os demais. Será preciso escutar isso tudo para compor uma imagem mais ampla do cenário.

Mas vale atentar para uma análise publicada às vésperas das eleições (quando o cenário já estava claro) no jornal mexicano La Jornada. Seu autor é Álvaro Garcia Linera, que foi vice-presidente do Evo Morales nos seus dois mandatos. Suas observações mais destacadas não chegam a ser originais. Porém, o texto é extremamente útil, porque alude a fenômenos que vão muito além da Bolívia, que dialogam com processos em curso em toda a América Latina – inclusive no Brasil, que ele cita nominalmente.

Garcia Linera lembra que, diante da derrota, há sempre a tentação dos olhares superficiais e vitimistas. Muita gente alega: “a direita domina as redes sociais, é violenta, controla instrumentos decisivos das estruturas de poder mesmo quando perde o governo”. Tudo isso é verdade, ele reconhece, mas é preciso, segundo ele, enxergar além: a esquerda perde as eleições quando ela deixa de cumprir um programa constante e incessante de mudanças. Em países tão colonizados e desiguais quanto os da América Latina, a transformação, uma vez iniciada, não pode estancar.

Num retrospecto alentado, Garcia Linera relembra que, em todos esses países da “Onda Rosa”, líderes de esquerda emergiram diante do primeiro fracasso do projeto neoliberal – aquele que se escancarou com as crises cambiais da segunda metade dos anos 1990 e o fim das promessas idílicas de uma “globalização feliz”.

Esses líderes de esquerda ou centro-esquerda fizeram, num primeiro momento, mudanças redistributivas – pequenas mas de enorme efeito simbólico. Iniciaram ”programas sociais”, aliviaram moderadamente as condições de vida da maioria, Pesou a seu favor o ineditismo. As maiorias, acostumadas sempre a perder e a viver pior, de repente tiveram algum alívio.

Isso repercutiu, prossegue a análise. Quase todos os governantes da “onda rosa” se reelegeram e ou elegeram sucessores, derrotando oponentes oligárquicos com votações às vezes impressionantes. Mas chegou um momento de estafa – quando essas primeiras mudanças, importantes inclusive porque mobilizam a sociedade, esgotam-se. A partir de certo momento, a conquista alcançada passa a fazer parte da paisagem, já não mobiliza nem mantém fidelidade política. As maiorias querem mais – querem mudanças mais profundas.

Inclusive porque a desigualdade permanece. Embora arranhada, pelos “programas sociais”, ela continua a chocar. Primeiro, porque as maiorias olham para sua própria condição social, que continua precária, e a comparam com a riqueza exuberante de uma pequena minoria. Segundo, porque em certos casos (como o brasileiro), os países não se livraram da dependência. Por isso, a emergência de condições internacionais menos favoráveis faz a própria sensação inicial de alívio refluir.

E faltam reformas para impedir que uma pequena minoria continue capturando a riqueza social. Álvaro Linera fala, por exemplo, do governo de Alberto Fernandes na Argentina – que acabou levando à vitória de Milei, porque se rendeu ao Fundo Monetário Internacional e realizou um governo marcado por empobrecimento e inflação. Aborda também da deriva da Dilma Rousseff, após ceder, em seu segundo governo, a um ajuste neoliberal no seu segundo governo, comandado pelo Joaquim Levi. Ela se divorcia de sua base quando ataca as conquistas sociais do período anterior e, ao perder este apoio, torna-se vulnerável a uma campanha virulenta da direita, que desembocará no impeachment

Na Bolívia, prossegue Garcia Linera, o atual presidente, Luís Arce – escolhido diretamente por Evo Morales, de quem foi ministro da Economia – fez um governo tecnocrático, sem preocupação com as grandes maiorias e, em especial, sem alento. Faltou a disposição de continuar renovando o programa, de acenar às maiorias com um horizonte político novo, de mostrar que uma sociedade mais justa era possível, desde que se mexesse nas estruturas que perpetuam o poder das oligarquias

É, evidentemente, muito difícil, porque ao longo de séculos as elites na América Latina tornaram-se extremamente hábeis em defender seus privilégios. Souberam criar, desde a Colônia, instituições que funcionam como blindagem poderosa, a defender seus privilégios. Jamais se empenharam – como destaca Luiz Filgueiras num texto recente – na tarefa da construção nacional, pois esta implicaria alguma noção de igualdade, de futuro compartilhado e de direitos inalienáveis. Foram capazes, acima de tudo, de contar com a força da ideologia que leva os de baixo a se enxergarem não como injustiçados, mas incapazes e impotentes.

Ainda assim, o desfecho deste domingo na Bolívia parece revelar – em especial para um Brasil que agora volta a flertar com a ideia de soberania – é que não é possível, à esquerda, viver sem horizonte político. De que forma apresentar, nas eleições de 2026 e nas lutas políticas quotidianas, algo além do já alcançado? De que maneira encontrar, na estrutura das classes sociais e da política, brechas que permitam romper as linhas de força da dominação? É este esforço que, se bem sucedido, permitirá não sucumbir.

Outras Palavras é feito por muitas mãos. Se você valoriza nossa produção, seja nosso apoiador e fortaleça o jornalismo crítico: apoia.se/outraspalavras

Leia Também: