Uma Só Saúde e Saúde Coletiva: diálogo possível?

Sanitaristas brasileiros são críticos ao conceito disseminado pela OMS que une saúde humana, animal e ambiental. Mas é possível aproveitar brecha aberta pela consulta pública para um Plano de Ação Nacional – e aproximá-lo da realidade e das necessidades do SUS

Criança em uma canoa na comunidade rural de Surara, às margens do rio Purus, no estado do Amazonas. Créditos: Daniel Tregidgo/Pesquisa Fapesp
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Está aberta consulta pública sobre o Plano de Ação Nacional de Uma Só Saúde – versão estratégica. Trata-se de uma proposta alinhada à aliança quadripartite global (OMS, OIE/WOAH, FAO e PNUMA), adaptando ao contexto brasileiro as seis linhas de ação propostas pelo Painel de Especialistas de Alto Nível em One Health (OHHLEP). O Plano visa contribuir com a prevenção e o controle das ameaças à saúde humana, animal, vegetal e ambiental por meio de ações estratégicas nacionais voltadas à implementação da abordagem integrada, intersetorial e transdisciplinar de Uma Só Saúde.

Certamente, a construção deste Plano demonstra que o governo brasileiro não se manteve alheio às discussões internacionais e à busca por alguma forma de governança global — cada vez mais difícil — que colocou a abordagem da Saúde Única no centro das negociações do Tratado de Pandemias e, possivelmente, também nas discussões previstas para a COP-30.

Contudo, essa iniciativa reacende controvérsias no campo da saúde, especialmente entre sanitaristas e estudiosos da Saúde Coletiva da América Latina. De fato, a agenda da Uma Só Saúde – termo adotado pelo governo brasileiro possivelmente já para evitar controvérsias – não é consensual entre os diversos atores que administram, pesquisam e militam pelo fortalecimento do sistema público de saúde no Brasil. As tensões decorrem, sobretudo, das diferentes compreensões sobre a concepção ampliada de saúde, determinação da saúde, modelos de desenvolvimento e formas de governança intersetorial.

Por exemplo, em 2024, atento à série de iniciativas daquele ano com o objetivo de consolidar a abordagem de Uma Só Saúde no Brasil, o Cebes publicou dois textos para discussão (1, 2). Em posicionamento público, esta histórica entidade apresentou uma crítica veemente à forma como essa agenda vem sendo incorporada no país. Segundo os autores, embora a interdependência entre saúde humana, animal e ambiental seja reconhecida pela Saúde Coletiva, a proposta da Saúde Única revela limitações paradigmáticas importantes, incluindo fragilidades para enfrentar as causas estruturais das crises climática, ambientais e sanitárias, assim como para promover o fortalecimento do SUS.

De modo geral, uma das raízes do incômodo reside na frágil problematização das dimensões sociais, econômicas e políticas, elementos centrais para a tradição da saúde coletiva brasileira. Embora existam divergências epistemológicas e conceituais internas entre sanitaristas — como evidenciam os debates recentes sobre a noção de determinação social da saúde (1, 2) ou sobre a ainda tensa incorporação de perspectivas decoloniais e interseccionais — há um traço que parece consensual: a saúde coletiva funda-se em uma discussão crítica e aprofundada sobre a interrelação saúde e sociedade. É nesse compromisso que ela busca sua identidade e distinção frente a outras abordagens de saúde pública.

Por outro lado, a abordagem da Saúde Única ganhou projeção internacional no contexto da pandemia de COVID-19 e do agravamento da crise climática. As sobrepostas catástrofes sanitárias e ambientais que marcaram os últimos anos impõem, de forma incontornável, a necessidade de reposicionamento dos governos e da sociedade quanto às suas estratégias de prevenção, vigilância e resposta a riscos complexos à saúde. Nesse cenário, a dimensão ambiental assume um novo lugar, sendo incorporada com mais ênfase nas agendas sanitárias de vários países.

Embora historicamente contemplada pela Saúde Coletiva e pelo SUS, a questão ambiental talvez não tenha recebido a atenção proporcional à sua relevância na determinação dos processos de saúde e doença. Sua importância estratégica tem ganhado centralidade mais recentemente no campo da Saúde Coletiva, que, no entanto, não abdica de perspectivas críticas ao buscar correlacionar a dimensão ambiental aos modelos de desenvolvimento, sempre à luz de princípios democráticos e de justiça social. Essa perspectiva reforça alguns argumentos de que a Saúde Coletiva constitui uma epistemologia do Sul Global, suficientemente sólida para não se submeter ao encantamento acrítico por soluções formuladas a partir de paradigmas do Norte.

Apesar disso, é possível afirmar que alguns sanitaristas mais atentos já perceberam que não basta apenas reagir passivamente à proposta que chega de forma avassaladora. Há chamados internos para que a Saúde Coletiva se posicione ativamente diante da necessidade de integração das dimensões humana, animal e ambiental — por meio de proposições crítica e contextualizada, assim como participe da Consulta Pública.

Enquanto nenhuma conciliação imediata seja possível entre alguns partidários no conflito, ainda é tempo de buscar um plano que dialogue melhor com os problemas de saúde do país, integrado aos princípios do SUS. É intrigante, por exemplo, a escassez de proposições relacionadas a outras políticas de saúde e organização do SUS. Até agora o plano não apresenta uma proposta forte de integração entre vigilância em saúde e atenção em saúde, particularmente nos territórios de atuação das equipes de Saúde da Família.

É importante notar que a elaboração do plano se destaca pela sua ampla articulação intersetorial, envolvendo oito ministérios e cerca de 70 instituições na sua formulação. Contudo, embora com limitada representação de entidades ligadas ao direito à saúde e ao fortalecimento do SUS, como o Conselho Nacional de Saúde. É hora de se ampliar o debate.

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