Por trás do estranho glamour do MEI
Relatos da “geração empreendedora”. Com pernoites no escritório, muitos guardam para si a dor e a insegurança. Têm ansiedade crônica de não conseguir se aposentar. Não tiram férias – e falta com atestado médico justifica demissões. Outro mito: o enriquecimento
Publicado 14/08/2025 às 14:10 - Atualizado 14/08/2025 às 15:07

Ana, assessora de imprensa MEI, mas que atua presencialmente na Faria Lima, não vê a hora da sexta feira chegar ao fim, depois de uma semana toda de trabalho pesado. “Hoje vamos ficar mais, mas a boa notícia é que eu vou pagar a pizza”, anuncia o CEO, depois de uma jornada irregular de 8 horas, já que PJ supostamente não cumpre horário. Supostamente, porque Henrique, redator lá na Berrini, praticamente bate ponto, ficando das 8h às 17h, presencialmente, quatro vezes na semana. Bruna, social media, precisava de mais de uma fonte de renda para sustentar as contas – mas, sem flexibilidade, trabalha quase que de “forma exclusiva”, mesmo sendo uma prestadora de serviços. Não consegue se impor porque precisa do emprego, e sofre constantes ameaças de dispensa, que não sabe se são ou não verdadeiras, já que o desligamento deste tipo de contrato é quase que imediato e sem ressalvas. Atualmente, a “pejotização” é o modelo mais popular em veículos de comunicação, segundo o Portal Comunique-se, com 54,1% dos profissionais trabalhando como PJ, e em agências, esse número chega a 61,5%.
Para comunicadores que não trabalham em redações e assessorias, 47,7% também atuam como PJ. A contratação CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) ainda representa uma parcela significativa, com 44,1% dos profissionais trabalhando com carteira assinada. E alguns combinam os dois modelos de trabalho, porque para a maioria dos atuantes na área, uma única fonte de renda não é suficiente.
Movimento virou moda entre jovens com sonho de enriquecer
Segundo o Glassdoor, o salário de um profissional de comunicação atuando como PJ (Pessoa Jurídica), no Brasil, pode variar bastante, dependendo da experiência, especialidade, localização e porte da empresa. “É possível ter uma ideia da faixa salarial, que geralmente fica entre R$ 4.000 e R$ 22.000 ou mais, com médias salariais de R$ 7.000 a R$ 8.000 para alguns cargos”, registram. Mas a autora que vós fala, por exemplo, atua em uma agência na Barra Funda ganhando 3 mil reais, assim como meus colegas daqui e de outras agências na capital. A realidade é outra: vendem o modelo PJ como menos burocracia e mais renda e na realidade recebemos exploração e nenhum direito.
O glamour do MEI e o discurso do “empreendedor de si mesmo”
Nos últimos anos, principalmente após a pandemia, houve um boom de formalizações como Microempreendedor Individual (MEI) — impulsionado por campanhas públicas, conteúdos nas redes sociais e cursos de “empreendedorismo digital”. Dados do Portal do Empreendedor mostram que o número de MEIs no Brasil ultrapassou 15 milhões em 2024, com mais de 1 milhão de novos registros só no primeiro semestre daquele ano.
Esse movimento é especialmente forte entre os jovens: segundo levantamento do Sebrae-SP, 44% dos MEIs têm até 34 anos, sendo que muitos deles estão em áreas como comunicação, marketing digital, design, estética e tecnologia. Pesquisas qualitativas do Data Favela e do próprio Sebrae indicam que o discurso dominante nas redes sobre “ser dono do próprio negócio”, “viver de propósito” e “trabalhar com liberdade” influencia diretamente as decisões dessa geração. O MEI é apresentado como um símbolo de autonomia, quando, muitas vezes, é a única alternativa diante da falta de vagas com carteira assinada.
A geração Z, formada por jovens nascidos entre 1995 e 2010, cresceu vendo os pais lidando com desemprego, chefes abusivos e instabilidade mesmo com carteira assinada. Para muitos, o contrato CLT passou a ser visto como sinônimo de estagnação. Em pesquisa feita pela PwC em 2023, 52% dos jovens brasileiros disseram que pretendem “empreender” nos próximos 5 anos. Só que esse empreendedorismo, na maioria das vezes, acontece por necessidade, o que especialistas chamam de empreendedorismo por sobrevivência.
Essa escolha forçada vem sendo mascarada por um discurso motivacional que glamoriza o PJ e o MEI, enquanto ignora o abandono de direitos. Isso gera um preconceito reverso, onde pedir carteira assinada soa como “acomodação” ou “medo de arriscar”. Muitos jovens sequer conhecem seus direitos trabalhistas ou sabem que podem estar em um vínculo fraudulento.
Influencers e o empreendedorismo de palco
O crescimento de influenciadores que vendem cursos de “liberdade financeira” e “7 dígitos com o seu talento” alimenta a ideia de que o MEI é um caminho garantido para o sucesso, quando a realidade mostra outra coisa. Segundo o Sebrae, 61% dos microempreendedores individuais ganham até 2 salários mínimos por mês, e mais de 80% não têm qualquer tipo de reserva financeira. A taxa de mortalidade das microempresas é alta: em até 5 anos, metade dos CNPJs são encerrados.
Abrir um MEI não é só emitir nota fiscal. É arcar com impostos mensais, contratar contador em alguns casos, pagar o próprio INSS e assumir riscos jurídicos sozinho. Muitos jovens não se preparam para isso e a narrativa popular tem ocultado este detalhe. Grandes emissoras, que por questão de processo não cito o nome, tem produzido reportagens sobre a “geração empreendedora” e a “modernidade do mercado de trabalho” ajudando, de forma sutil, que quem realmente tem poder consiga mão de obra barata. Esses jovens não percebem que quando prestam serviços recorrentes a uma empresa como MEI, sob subordinação, com jornada fixa e sem autonomia real, estão sendo usados para burlar a CLT.
Vozes que ecoam só na própria cabeça
Realizei um levantamento rápido em um grupo de networking, em que obtive respostas de 20 comunicadores, como os do começo desta reportagem, que guardam para si a dor da insegurança. Mantenho suas identidades em segredo e todos os nomes nesta reportagem são meramente ficcionais, mas os relatos não poderiam ser mais verdadeiros — e merecem ser ouvidos, pelo menos uma vez.
Roberta, com 33 anos de experiência e mais de 30 atuando como PJ, diz já ter se conformado com a precarização dos contratos. “Maior ganho financeiro versus falta total de direitos”, resume. Lucas, 9 anos como PJ, fala sobre a ansiedade crônica de nunca conseguir se aposentar. Daniela, com apenas um ano e meio de mercado, carrega o medo constante de ser enganada ou descartada do dia para a noite. Paulo, que saiu do regime PJ e voltou à CLT, relembra episódios de burnout que foram ignorados pelos gestores. Carla, 10 anos atuando como PJ, define a experiência como “traumatizante”.
Mas há mais. Juliana, de 27 anos, conta que foi demitida após um atestado médico de quatro dias e passou cinco anos sem férias de verdade. A demissão veio sem aviso, sem direito a rescisão. Gabriela relembra que sofreu humilhações públicas por parte da equipe gestora de uma agência, ao ponto de pedir demissão por não aguentar mais os “ultimatos e ameaças constantes”, mesmo após tentarem segurá-la com um contrato piorado. Ela aceitou, mas foi substituída na semana seguinte.
Beatriz compartilhou que trabalhava em uma empresa onde os funcionários, também PJs, dormiam nas salas da firma, em jornadas exaustivas que eram romantizadas pela liderança. Já na agência em que Patrícia atuava, a ordem era clara: trabalhar nos feriados sem remuneração adicional, “vestir a camisa”, “ser dono do próprio negócio” — tudo isso sendo chamada de prestadora de serviços, mas com jornada e subordinação claras.
Há ainda histórias como a de Marcelo, que abandonou sua pequena editora para aceitar um contrato promissor com uma agência. Poucos meses depois, foi dispensado após o cliente sair, ficando sem a empresa, sem o trabalho e com uma filha recém-nascida nos braços. “Foi desesperador”, ele relata. O sentimento de abandono e impotência é recorrente — de adoecer sem cobertura, de não poder engravidar, de não conseguir construir qualquer segurança mínima, muito menos emocional.
E há, também, o que não cabe em análise técnica, como o depoimento de Joana: “Tive burnout no fim do ano passado, e fui demitida depois que xinguei o dono da agência e ele descobriu. O principal que sinto é ódio de playboy arrombado. Se quiser me entrevistar, vou achar o máximo.”
O PJ, quando imposto, não só esvazia a dignidade do trabalho. Ele destrói em silêncio. E tudo isso, até aqui, tem sido contado apenas entre amigos próximos, grupos de WhatsApp e, às vezes, na terapia — quando há dinheiro ou tempo para isso.
Quem mais sofre com a pejotização?
Mulheres, negros, mães solo, profissionais mais velhos e iniciantes na carreira — todos mais vulneráveis à chantagem emocional e financeira do mercado. Segundo dados do Dieese, essas populações têm mais dificuldade em se impor contra exigências abusivas. O modelo PJ, ao não garantir licença-maternidade, cobertura previdenciária e estabilidade, aprofunda desigualdades.
Além disso, o impacto futuro é devastador: o trabalhador PJ precisa contribuir voluntariamente com o INSS, algo que, com salários achatados, se torna inviável. Projeções apontam que milhões de PJs não terão renda suficiente para se aposentar — criando uma bomba-relógio social.
Quem lucra com isso?
Empresas que usam o modelo para cortar custos trabalhistas. Governos que flexibilizam sem criar rede de proteção. Plataformas e consultorias que vendem o discurso da “liberdade empreendedora” enquanto enriquecem explorando mão de obra barata e descartável.
O que fazer?
É fundamental abrir espaço para o debate sobre a pejotização e seus impactos, pois silenciar essa realidade favorece apenas quem lucra com a exploração. É urgente cobrar fiscalização ativa da Receita Federal e do Ministério do Trabalho para que vínculos empregatícios disfarçados sob a máscara de contratos PJ sejam punidos, garantindo que as empresas não escapem de suas responsabilidades. Também é essencial pressionar sindicatos e conselhos profissionais a oferecerem suporte jurídico e psicológico para esses trabalhadores, que muitas vezes se veem isolados, inseguros e desamparados diante de abusos. No campo legislativo, apoiar propostas que equiparem os direitos dos PJs aos de trabalhadores CLT — como a contribuição compulsória do contratante para o INSS, o direito a férias e ao 13º salário — é uma forma de corrigir distorções e oferecer um mínimo de segurança para quem já atua em condições frágeis. Mas, além de medidas formais, é preciso falar sobre o tema, romper o silêncio e encarar a pejotização como ela é: um problema público e estrutural.
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